Filosofia e Teologia na Idade Média (FTIM)

 

 

PROGRAMA

 

Introdução

 

1. Filosofia e cristianismo: cruzamentos patrísticos

1.1. O cristianismo como filosofia: S.Justino

1.2. Fé, razão e iluminação divina: S. Agostinho

1.3. Antecedentes da questão da existência de Deus: S. Justino e S. Agostinho

 

2. Diacronia da questão disputada da existência de Deus

2.1. A teologia sola ratione de S. Anselmo

2.2. S. Anselmo e o seu argumento único

2.3. Gaunilo contra Anselmo

2.4. Boaventura por Anselmo

2.5. Tomás de Aquino contra Anselmo

2.6. Duns Escoto por Anselmo

2.7. Guilherme de Ockham por Anselmo contra Escoto

 

3. Explosão do sentido para além da letra

3.1. A metateologia de Pseudo-Dionísio Areopagita

3.2. A tradição dos 4 sentidos da Bíblia: S. António

3.3. A exegese simbólica da filosofia: S. Boaventura

3.4. Novas exegeses não confessionais de textos confessionais

 

AVALIAÇÃO

 

A classificação final do aproveitamento individual no seminário depende da realização dos seguintes elementos obrigatórios:

1) Apresentação oral do trabalho em projecto (45%) — título, resumo e abstract, índice de tópicos a desenvolver, bibliografia — durante o período lectivo, e previamente agendada;

2) Arguição oral da apresentação de outro trabalho em projecto (10%), durante o período lectivo, e previamente agendada;

3) Trabalho concluído e escrito (45%), a ser enviado em data a agendar.

 

Opções de trabalho:

a) S. Justino, Diálogo com Trifão; Apologias I-II;

b) S. Agostinho, De Magistro; Confessionum;

c) S. Agostinho, De Trinitate I, VIII-XIII;

d) S. Agostinho, De Libero Arbitrio II; S. Anselmo, Proslogion

e) S. Anselmo, Monologion; Proslogion;

f) S. Anselmo, Proslogion; Gaunilo, Pro Insipiente; S. Anselmo, Responsio Editoris;

g) S. Anselmo, Proslogion; S. Boaventura, Quaestiones Disputatae de Mysterio Trinitatis, q.1, a.1;

h) S. Anselmo, Proslogion; S. Tomás de Aquino, Summa contra Gentiles I, cc.10-15; Summa Theologiae I, q.2;

i) S. Anselmo, Proslogion; João Duns Escoto, Tractatus de Primo Principio;

j) Dionísio Pseudo-Areopagita, Nomes Divinos; Teologia Mística;

k) S. António, selecção de sermões;

l) S. Boaventura, Itinerarium Mentis in Deum; De Reductione Artium ad Theologiam;

m) S. Agostinho, Confissões; Les Aveux (Trad.: F. Boyer).

Qualquer destas opções deve ser acompanhada pela consulta de dois comentadores especializados, mediante pesquisa bibliográfica na Biblioteca da FLUL.

 

BIBLIOGRAFIA

 

Links de acesso a textos filosóficos patrísticos e medievais

 

VÁRIOS

Christian Classics Ethereal Library: www.ccel.org/ccel/schaff/anf01.html

 

Bibloteca Augustana: https://www.hs-augsburg.de/~harsch/augustana.html#la

Documenta Catholica Omnia: https://documentacatholicaomnia.eu/_index.html

 

AGOSTINHO

 https://www.augustinus.it/

 https://www.augustinus.it/links/inglese/index.htm

 

TOMÁS DE AQUINO

 https://www.thomasinstituut.org/thomasinstituut/scripts/index.htm 

 https://www.corpusthomisticum.org./.

 

 

Estudos

 

BALTHASAR, H. Urs Von. Gloria. II. Milão: Jaca Book, 1985.

EVANS, G. R. Philosophy and Theology in the Middle Ages. Londres / Nova Iorque: Routlege, 1993.

LUBAC, H. de. Exégèse Médiévale. Les quatre sens de l’Écriture. Ie, tt.I-II, IIe, tt.I-II. Paris: Aubier, 1959-1964.

XAVIER, M.L. A Questão de Deus na História da Filosofia. Vols. I-II. Apoio FCT/CFUL. Sintra: Zéfiro, 2008.

XAVIER, M.L. A Questão da Existência de Deus. Uma Disputa Medieval. Sintra: Zéfiro, 2013.

 

Sobre Manuel da Costa Freitas: ofm.org.pt/noticias/recordando-o-pe-costa-freitas/

 

AULAS  

 

Aula nº1 (16/09/23)

Apresentação e introdução ao programa.

Avaliação (ver acima)

 

 

Aula nº2 (23/09/23)

1. Filosofia e cristianismo: cruzamentos patrísticos

1.1. O cristianismo como filosofia: S.Justino. O Logos patrístico: o Logos joanino em S. Justino (Logos seminal e Logos total), Clemente de Alexandria (revelações filosófica, profética e poética do Logos) e S. Agostinho (Verdade e Mestre Interior). A conversão de Justino e o cristianismo como filosofia irredutível ao platonismo. A afinidade entre filosofia e religião: a questão partilhada da extensão da providência divina.

Sugestão de leitura:  “Filosofia e Cristianismo. Ligações estruturantes” (2016) 

 

 

Aula nº3 (30/09/23)

1.2. Fé, razão e iluminação divina: S. Agostinho. Da fé no visível à fé no invisível. A questão do primado da fé ou da razão. O paradoxo da fé. A fé subjectiva. A trindade da fé. Iluminação divina: a doutrina do Mestre interior. Ostensão sensível e ostensão inteligível. A Verdade interior e Cristo-Mestre.

Sugestão de leitura: “Subjectividade e objectividade da fé. Uma reflexão augustiniana” (2005)

 

Iluminação divina

A doutrina do Mestre interior

 

Verdade interior

«Ag.- Por conseguinte, acerca das cores, certificamo-nos por meio da luz; acerca das outras realidades que sensoriamos por acção [através] do corpo, certificamo-nos por meio dos elementos deste mundo, ou dos mesmos corpos que sensoriamos, e também dos próprios sentidos, de que a mente usa como intérpretes para conhecer essas realidades. Quanto às realidades que inteleccionamos, certificamo-nos consultando a Verdade interior por meio da razão (interiorem Veritatem ratione consulimus). – […]. Com efeito, todas as coisas que percebemos, ou as percebemos pelos sentidos do corpo ou pela mente. Denominamos as primeiras sensoriais; as segundas, inteligíveis; ou, para falar à maneira dos nossos autores, denominamos carnais as primeiras; espirituais as segundas.» De Magistro. 12, 39 (PE, c.12, p.93, ll.9-21).

«Ag.- […]. – Ora, acerca de todas as coisas que inteleccionamos, não consultamos alguém que fala e produz um som for a de nós, mas a Verdade que preside interiormente à nossa mente, […].» De Mag. 11, 38 (PE, c.11, p.92, ll.35-37); «Ag.- […]. Todo aquele, porém, que as pode intuir [as coisas que são intuídas pela mente], esse interiormente é discípulo da Verdade, […].» De Mag. 13, 41 (PE, c.13, p.95, ll.21-23); «Ag.- […], então aqueles que são chamados discípulos consideram consigo mesmos se se disseram coisas verdadeiras, e fazem-no contemplando, na medida das próprias forças, aquela Verdade interior de que falámos.» De Mag. 14, 45 (PE, c.14, p.97, ll.34-35, p.98, l.1).

«Ag.- […]. – Quando, porém, se trata de coisas que vemos (quae mente conspicimus) por meio da mente, isto é, por meio do intelecto e da razão (id est intellectu atque ratione), falamos realmente de coisas que contemplamos (quae praesentia contuemur) presentes nessa luz interior da Verdade, de que é iluminado e goza (fruitur) aquele que se denomina homem interior.» De Mag. 12, 40 (PE, c.12, p.94, ll.9-12).

Cristo-Mestre

Cristo, mestre de oração: «Ag.- E não te embaraça que o Mestre supremo (summus magister), quando ensinava os discípulos a rezar, ensinou determinadas palavras? Com isto, parece nada mais ter feito que ensinar como se deve falar na oração. – Ad.- Isso não me causa dificuldade absolutamente nenhuma. Não foram palavras que Ele lhes ensinou mas, por meio de palavras, realidades expressas pelas quais eles mesmos recordassem a quem (a quo) e o que (quid) deveriam pedir (esset orandum), ao rezarem no íntimo da consciência, como se disse.» De Mag. 1, 2 (PE, c.1, p.59, ll.4-11).

Cristo, admonitor (avisador) verbal da sua presença na interioridade humana: «Ad.- […]. Se realmente se dizem coisas verdadeiras, só o ensina Aquele que, quando falava de fora (cum foris loqueretur) [e não: quando nos falavam de fora], advertiu de que habitava no interior.» De Mag. 14, 46 (PE, c.14, p.98, ll.33-35).

Cristo, admonitor (avisador) da sua presença interior, por via da admonição verbal humana: «Ag.- […]: “não chamemos mestre a ninguém na terra, pois o único Mestre de todos está nos céus” [Mat. 23, 8-10]. O que quer dizer “nos céus”, Ele próprio o ensinará, Ele que também pelos homens, por meio de sinais e de fora, nos incita a que nos voltemos para Ele no nosso interior, para sermos ensinados.» De Mag. 14, 46 (PE, c.14, p.98, ll.15-20). 

O Mestre interior, Verdade ostensora dos inteligíveis no homem interior: «Ora, acerca de todas as coisas que inteleccionamos, não consultamos alguém que fala e produz um som fora de nós, mas a Verdade que preside interiormente à nossa mente (ipsi menti), sendo talvez incitados pelas palavras a consultá-la. E aquele que é consultado, ensina: é Cristo, de quem se disse que habita no homem interior [Ef. 3,16‑17], e é “o poder incomutável de Deus e a sempiterna Sabedoria” [1 Cor. 1,24]. A esta, de facto, toda a alma racional a consulta; […].» De Mag. 11, 38 (PE, c.11, p.92, ll.35-39, p.93, ll.1-2).

O Mestre interior, Verdade reguladora dos nossos juízos de verdade: «Ag.- […]. Todo aquele, porém, que as pode intuir (cernere) [as coisas que a mente pode intuir (quae mente cernuntur)], esse interiormente é discípulo da Verdade, e exteriormente é juiz daquele que fala, ou melhor, da mesma locução, […].» De Mag. 13, 41 (PE, c.13, p.95, ll.21-25).

Neoplatonismo e cristianismo na origem da doutrina augustiniana da iluminação

«Muitas vezes e insistentemente afirma Plotino, desenvolvendo o pensamento de Platão, que a alma, que se crê seja a alma do mundo, não recebe a sua felicidade de fonte diversa da nossa; e esta fonte é uma luz distinta da alma, a qual criou a alma, e cuja iluminação inteligível a fez inteligivelmente resplandecer. Fez também uma comparação entre estes seres incorpóreos e os corpos celestes esplêndidos e graciosos: Deus seria o Sol e a alma a Lua. Julga‑se, de facto, que a Lua é iluminada por acção do Sol. Assim, pois, para este grande platónico, a alma racional – digamos antes intelectual e este género, no seu pensamento, encerra também as almas dos seres imortais e bem‑aventurados, cujas residências ele coloca, sem hesitar, nas moradas celestes – não tem acima de si qualquer outra natureza além da de Deus, que fez o mundo e por quem ela própria foi feita. E que esses seres celestes não têm outra fonte de vida feliz e de luz para entenderem a verdade, que não seja a que nós temos, - também ele [Plotino] o diz, no que está de acordo com o Evangelho onde se lê: “Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era João. Veio como testemunha para dar testemunho da luz, para que todos por seu intermédio cressem n’Ele. Ele não era a luz mas devia dar testemunho da luz. Havia uma verdadeira luz que ilumina todo o homem que vem a este mundo.” (Jo. 1, 6‑10). Esta distinção basta para mostrar que a alma racional ou intelectual, tal como a refere João, não podia ser por si a própria luz, mas que a participação em uma outra luz, a verdadeira, a tornava luminosa. O próprio João o confessa quando o testemunha dizendo “Todos nós recebemos da sua plenitude” (Jo. I, 16).» DCD X, 2 (A Cidade de Deus. Trad. de J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp.887-888).

«E, primeiramente, querendo mostrar‑me quanto resistes aos soberbos e, pelo contrário, dás a tua graça aos humildes, e com quanta misericórdia tua foi indicado aos homens o caminho da humildade, porque o teu Verbo se fez carne e habitou entre os homens (Jo. 1, 14), proporcionaste‑me, por intermédio de um certo homem inchado de enormíssimo orgulho [Teodoro?], uns certos livros dos Platónicos traduzidos da língua grega para a latina, e aí li, não exactamente nestas palavras, mas com muitas e variadas razões, que, no conjunto, se argumentava isto mesmo (sed hoc idem omnino multis et multiplicibus suaderi rationibus): no princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus e Deus era o Verbo: este estava, no princípio, junto de Deus; todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito; o que foi feito é vida nele, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, e as trevas não a dominaram (Jo. 1, 1‑5); e que a alma humana, embora dê testemunho da luz, todavia ela própria não é a luz, mas o Verbo, Deus, é que é a luz verdadeira, que ilumina todo o homem que vem a este mundo (Jo. 1, 8‑9); e que estava neste mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu (Jo. 1, 10). Mas que veio para o que era seu e os seus não o receberam, e que a todos quantos o receberam deu‑lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, a eles que crêem no seu nome (Jo. 1, 11‑12), isso não o li eu aí.» Conf. VII, 9, 13 (Confissões. Edição bilingue, tradução e notas de Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina Pimentel, introdução de Manuel da Costa Freitas, notas de âmbito filosófico de Manuel da Costa Freitas e de José Rosa. Lisboa: INCM, 2000, pp.289‑291)

 

 

Aula nº4 (7/10/23)

1.3. Antecedentes da questão da existência de Deus: S. Justino e S. Agostinho. S. Justino e a questão do politeísmo ou monoteísmo. S. Agostinho e a questão da existência de Deus, a propósito da origem do livre arbítrio. O conhecimento da existência de Deus através do conhecimento da Verdade. Antecedentes augustinianos de S. Anselmo: a noção de insuperável e o terceiro erro sobre Deus. A diferença de S. Agostinho: sem aversão à infinitude.

Sugestão de leitura: M. Manuela Brito Martins, “A Prova da Existência de Deus em Santo Agostinho (De Libero Arbitrio) e em Santo Anselmo (Proslogion).” Philosophica 34 (Lisboa, 2009): 75-91.

 

 

1. S. Justino e a questão do politeísmo ou monoteísmo

 

Filosofia e religião cruzavam‑se em áreas de interesse comum, como as da reflexão teológica e ética. Questões pertinentes da filosofia sobre a divindade eram, segundo Justino, a questão da unicidade ou da multiplicidade divina, bem como a questão da extensão da providência divina ao particular (Diálogo com Trifão, 1). Justino considera, porém, que a tradição da filosofia grega não foi muito longe no aprofundamento destas questões, e não é sem argumentação que ele indica as suas decisões no âmbito das mesmas questões.

Com respeito à questão da unicidade ou multiplicidade divina, a filosofia do cristianismo pronuncia‑se, pela voz do ancião, a favor da unicidade divina. É a questão do monoteísmo ou politeísmo, i.e., a questão de saber se há um só Deus ou se há múltiplos Deuses. Caracterizando a divindade pelo atributo de incriado, o ancião argumenta por redução ao absurdo: supondo por hipótese que há dois incriados, haveria que investigar a causa da diferença entre os dois, o que conduziria a admitir um terceiro incriado; depois haveria que investigar as causas das diferenças entre o terceiro e os dois primeiros, o que conduziria a admitir mais incriados, e assim por diante, num regresso ao infinito (Diál. Trif. 5). A hipótese de haver mais do que um incriado implica a inconveniência lógica de uma regressão ao infinito na investigação das causas das diferenças entre os múltiplos incriados. Este procedimento ilustra bem que, a propósito de uma das questões basilares de teologia filosófica, o cristianismo de Justino está ainda longe de se assemelhar a uma teologia dogmática, comportando‑se de facto como uma filosofia que assume o ónus da prova.

 

 

2. S. Agostinho e a questão da existência de Deus

 

2.1. A questão da existência de Deus a propósito da origem do livre arbítrio

 

SANTO AGOSTINHO, De Libero Arbitrio II

 

«5. EVÓDIO - Todavia, bem que eu admita estas verdades com fé inquebrantável, uma vez que ainda as não admito por conhecimento (cognitione), investiguemos como se tudo fosse incerto. Efectivamente, vejo que pelo facto de ser incerto que a vontade livre tenha sido dada para se proceder rectamente, já que por ela podemos também pecar, torna-se igualmente incerto que devesse ter sido dada. [...]

AGOSTINHO - Uma coisa ao menos é para ti certa — que Deus existe (Deum esse).

EVÓDIO - Também isso o admito inquebrantavelmente, não todavia por intelecção (non contemplando), mas sim por assentimento [testimonial] (sed credendo).

AGOSTINHO - Pois bem, supõe que algum daqueles insensatos (insipientium) de que está escrito — disse o insensato no seu coração: não há Deus (Sl. 13, 1; 52, 1) — te dissesse isto mesmo. [Supõe] que ele não estivesse resolvido a assentir contigo [por testemunho] (tecum credere) ao que tu assentes (quod credis), mas sim a saber se era verdade o que admites. Abandonarias esse homem, ou acharias que era teu dever convencê-lo por algum meio daquilo, que tens por inabalável? Isto principalmente no caso de ele não pretender negar obstinadamente, mas sim conhecer o assunto diligentemente.

[...]

AGOSTINHO - Dá-se pois o caso de entenderes que sobre a questão — se Deus existe — basta não havermos temerariamente dijudicado que se devia acreditar [por testemunho] de homens tão notáveis. Então sobre as presentes matérias, que consideradas como incertas e manifestamente desconhecidas, nos propusemos indagar, peço que me digas por que razão não achas que de modo semelhante se deve de tal maneira acreditar na autoridade desses homens, que não nos importemos mais com a investigação delas.

EVÓDIO - É que nós pretendemos conhecer racionalmente (nosse) e inteleccionar (intellegere) aquilo a que assentimos.» SANTO AGOSTINHO, O Livre Arbítrio, II, 2, 5 (Tradução do original latino com introdução e notas por António Soares Pinheiro. Braga: Faculdade de Filosofia, 1986, pp.82-84).

 

2.2. O conhecimento da existência de Deus através do conhecimento da Verdade

 

AGOSTINHO, Soliloquia

 

«RAZÃO. Dizes tu com certeza que queres conhecer a alma e Deus? – AGOSTINHO. Esse é todo o meu propósito. – R. Nada mais? – A. Nada absolutamente. – R. Então, não queres compreender a verdade? – A. Como se pudesse conhecer aquelas realidades a não ser através desta. – R. Portanto, primeiro deve ser conhecida esta pela qual podem ser conhecidas aquelas. – A. Nada a opor. – R. Vejamos, então, primeiro, como há duas palavras, “verdade” e “verdadeiro”, se te parece que por estas palavras são significadas duas coisas ou uma. – A. Parecem duas coisas. Assim como uma coisa é a castidade e outra o casto, e esta distinção vale em muitas outras qualidades, assim creio que uma coisa é a verdade e outra aquilo que é dito verdadeiro. – R. Qual das duas consideras ser superior? – A. A verdade, penso. De facto, não é a castidade pelo casto, mas pela castidade que se faz o casto; assim também, se algo é verdadeiro, é-o pela verdade. – 28. R. Mas então, quando alguém morre casto, pensas que também morre a castidade? – A. De modo algum. – R. Portanto, quando perece algo que é verdadeiro, não perece a verdade. – A. No entanto, como é que perece algo verdadeiro? De facto, não vejo como. – R. Admira-me a tua questão: não vemos nós ante os nossos olhos milhares de coisas perecerem? A não ser, porventura, que consideres que esta árvore, ou é uma árvore, mas não é verdadeira, ou então por certo não pode perecer. De facto, mesmo que não creias nos sentidos e possas responder que ignoras completamente se é uma árvore, ainda assim, não negarás, como suponho, que é uma árvore verdadeira, se é uma árvore: isto não se julga pelo sentido, mas pela inteligência. Se é uma falsa árvore, não é uma árvore; se é uma árvore, é necessário que seja verdadeira. – A. Concedo isso. – R. E também isto: não concedes que a árvore é deste género de coisas que nascem e perecem? – A. Não posso negar. – R. Conclui-se, portanto, que algo que é verdadeiro perece. – A. Nada contraponho. – R. Então, não te parece que a verdade não perece ao perecerem as coisas verdadeiras, tal como a castidade não morre ao morrer alguém casto? – A. Isto já o concedo, e fico muito expectante sobre aquilo a que pretendes chegar.» AGOSTINHO, Solilóquios (Soliloquia) [Sol.] I, 15, 27-28 (texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 5. Paris: Desclée, De Brouwer et Cie., 1948, pp.78-82. Tradução nossa).

 

«R. Se este mundo permanecer sempre, é verdade que o mundo permanecerá sempre? – A. Quem duvidará disso? – R. Então, se não permanecer, não é verdadeiro que o mundo não permanecerá? – A. Nada oponho. – R. E então, quando perecer, se perecer, não será verdadeiro que o mundo pereceu? Pois enquanto não é verdadeiro que o mundo acabou, o mundo não acabou: com efeito, repugna que o mundo tenha acabado e não seja verdadeiro que o mundo tenha acabado. – A. Concedo isso. – R. E isto: parece-te que algo possa ser verdadeiro, caso a verdade não exista (ut veritas non sit)? – A. De modo algum. – R. Por isso, a verdade existirá, mesmo que o mundo pereça. – A. Não posso negar. – R. Então, se a própria verdade acabar, não será verdadeiro que a verdade acabou? – A. E isto quem o negará? – R. O verdadeiro não pode existir (esse), se a verdade não existir (si veritas non sit).» IDEM, Sol. II, 2, 2 (BA 5, p.90).

«R. Tanto quanto me lembro, concluímos que a verdade não pode perecer porque não só se todo o mundo perecer, mas também a própria verdade, será verdadeiro que o mundo e a verdade pereceram. Nada, porém, de verdadeiro sem a verdade. De modo nenhum, por isso, a verdade perece. – A. Percebo isto, e muito me admiraria se fosse falso. – R. Vejamos, então, outro ponto. – A. Deixa-me considerar um pouco, peço-te, não vá eu passar pela vergonha de voltar de novo a este ponto. – R. Então não será verdadeiro que a verdade pereceu? Se não for verdadeiro, então não pereceu. Se for verdadeiro, donde será verdadeiro após o ocaso da verdade, quando já nenhuma verdade existe? – A. Nada mais tenho a pensar e a considerar. Passa a outro ponto. Faremos certamente o que pudermos para que homens doutos e prudentes leiam estas linhas e corrijam a nossa temeridade, se alguma houver. Eu nem agora nem alguma vez julgo poder encontrar algo que se diga contra isto.» IDEM, Sol. II, 15, 28 (BA 5, pp.140-142).

 

«R. Define, então, o verdadeiro. – A. O verdadeiro é aquilo que é tal como parece ao cognoscente, se este quiser e puder conhecer. – R. Não será, por isso, verdadeiro aquilo que ninguém pode conhecer? Por conseguinte, se o falso é aquilo que parece diferente daquilo que é, então, se esta pedra parecer pedra a um e madeira a outro, a mesma coisa será falsa e verdadeira? – A. A primeira pergunta perturba-me mais: como é que, se algo não pode ser conhecido, por isso se faz que não seja verdadeiro. Pois que uma coisa seja simultaneamente verdadeira e falsa não me inquieta demasiado. De facto, vejo uma coisa, comparada com diversas outras, ser simultaneamente maior e menor. Mas isto acontece porque nada é por si maior ou menor. Estes são nomes de comparação. – R. Mas se dizes que o verdadeiro nada é por si, não receias que se siga que nada seja por si (ut nihil sit per se)? De facto, é porque esta madeira é que é verdadeira madeira. E não pode fazer-se que por si mesma, isto é, sem o cognoscente, seja madeira e não seja verdadeira madeira. – A. Digo, então, e defino assim, sem recear que a minha definição seja desaprovada por ser demasiado breve, pois a mim parece-me que o verdadeiro é aquilo que é (verum mihi videtur esse id quod est).» IDEM, Sol. II, 5, 8 (BA 5, pp.100-102).

 


SANTO AGOSTINHO, De Libero Arbitrio II

 

«AGOSTINHO - [...]. Talvez não possa tornar-se claro para nós se o número está na sapiência, ou deriva da sapiência; ou então, se a mesma sapiência deriva do número, ou está no número; ou finalmente, se é possível mostrar que os dois vocábulos designam uma única realidade. Apesar disso, é sem contestação evidente que uma e outra coisa [a sapiência e o número], são verdadeiras, e incomutavelmente verdadeiras.

XII. 33. Por consequência, de modo algum negarás que existe a verdade incomutável; ela contém [em si] tudo o que é incomutavelmente verdadeiro. Não podes dizer que ela é tua, ou minha, ou de qualquer homem, mas sim que ela, à feição de uma luz que de maneira maravilhosa é [ao mesmo tempo] oculta e pública, está presente e se manifesta em comum a todos os que intuem (cernentibus) as verdades incomutáveis. Ora tudo o que está presente em comum a quantos são dotados de razão e inteligência (ratiocinantibus atque intellegentibus), quem diria que pertence propriamente à constituição de algum deles?

Recordas efectivamente, como presumo, o que pouco antes se expôs sobre os sentidos externos, a saber, que os dados que atingimos em comum pelo sentido dos olhos ou dos ouvidos, como são as cores e os sons, os quais eu e tu vemos ao mesmo tempo ou ao mesmo tempo ouvimos, [esses dados] não pertencem à constituição dos nossos olhos ou ouvidos, mas são comuns para nós, em ordem à sensação (sed ad sentiendum nobis esse communia). Da mesma maneira, por conseguinte, também aquilo que eu e tu intuímos em comum, cada um pela sua mente (illa quae ego et tu communiter propria quisque mente conspicimus), de modo nenhum dirias que pertence à constituição da mente de algum de nós (ad mentis alicuius nostrum naturam). Na verdade, o que vêem ao mesmo tempo os olhos de duas pessoas, não poderás dizer que se identifica com os olhos desta ou daquela, mas sim [que é] uma terceira coisa a que se aplica o olhar de uma e outra. – EVÓDIO – Isso é totalmente óbvio e verdadeiro.

34. AGOSTINHO – Esta verdade, pois, de que há tanto tempo vimos falando, e na qual, sendo uma só, intuímos tão grande número de coisas (in qua una tam multa conspicimus), achas que é mais excelente que a nossa mente, ou igual às nossas mentes, ou até inferior? Se porém fosse inferior, não julgaríamos segundo ela, mas julgaríamos a respeito dela. É assim que julgámos dos corpos, porque são inferiores, e frequentemente dizemos não só que eles são ou não são de certa maneira, mas que deviam ser ou não ser de certa maneira. Igualmente, a respeito dos nossos espíritos (sic et de animis nostris), não só sabemos que o espírito é de certa maneira, mas também, com frequência, que devia ser de certa maneira. – De facto, a respeito dos corpos é assim que julgámos ao dizer – é menos branco do que devia, ou – é menos quadrado; e semelhantemente de muitas outras propriedades. Por sua vez julgámos quanto aos espíritos: é menos dotado (aptus) do que devia, ou – é menos condescendente (lenis), ou – é menos ardoroso (uehemens), segundo se apresentem as nossas maneiras de ser. E julgamos destas realidades segundo aquelas regras interiores da verdade, que intuímos em comum (secundum illas interiores regulas ueritatis quas communiter cernimos); destas porém ninguém de modo nenhum julga. Efectivamente, quando alguém afirma que as realidades eternas são superiores às temporâneas (aeterna temporalibus esse potiora), ou que sete mais três são dez, ninguém diz que assim devia ser; pelo contrário, reconhecendo simplesmente que é assim, não corrige como censor, mas unicamente se regozija como quem depara [com a verdade] (non examinator corrigit, sed tantum laetatur inuentor).

Ora se essa verdade fosse igual às nossas mentes, também ela seria mutável. Com efeito, as nossas mentes ora a vêem mais ora menos, e com isso revelam que são mutáveis; ao passo que ela, estável em si mesma, nem aumenta quando por nós é mais conhecida, nem diminui quando [o é] menos. Permanecendo íntegra e inalterada, recompensa com a visão os que [para ela] se voltam, e pune com a cegueira os que dela se desviam. E que dizer, uma vez que também segundo essa verdade julgamos das nossas mentes, quando de modo nenhum podemos julgar dela? Realmente nós afirmamos: [tal mente] percebe menos do que devia; ou – percebe quanto devia (‘minus intellegit quam debet’ aut ‘tantum quantum debet intellegit’). Ora o espírito (mens) deve entender (intellegere) tanto mais, quanto mais conseguir aproximar-se e aderir à verdade incomutável. Por conseguinte, se [esta] não [lhe] é inferior nem igual, segue-se que é superior e mais excelente.» SANTO AGOSTINHO, O Livre Arbítrio, II, 12, 33-34 (Tradução do original latino com introdução e notas por António Soares Pinheiro. Braga: Faculdade de Filosofia, 1986, pp.129-132).

 

2.3. Antecedentes augustinianos de S. Anselmo

 

A noção de insuperável


«14. AGOSTINHO – E se pudermos encontrar alguma realidade (aliquid), de que sem qualquer dúvida saibas não só que existe, mas também que é preeminente à nossa razão (etiam ipsa nostra ratione praestantius)? Essa realidade, qualquer que ela seja, duvidarás afirmar que é Deus?

EVÓDIO – Se eu pudesse encontrar alguma realidade, mais perfeita do que aquilo que na minha natureza há de mais nobre, não afirmaria imediatamente que ela é Deus. Com efeito, não me parece bem denominar Deus [a um ser] ao qual a minha razão é inferior, mas [a um ser] ao qual nenhum outro é superior (Non enim mihi placet Deum appellare quo mea ratio est inferior, sed quo nullus superior).» IDEM, O Livre Arbítrio, II, 6, 14, p.100.

 

Três erros acerca de Deus

 

«I.1.1. Quem vier a ler o que escrevemos sobre a Trindade deve, antes de mais, saber que o nosso cálamo está vigilante contra as invenções daqueles que, desprezando o fundamento da fé, se deixam enganar por um amor à razão irreflectido e desordenado. Alguns deles procuram aplicar às realidades incorpóreas e espirituais aquilo que, relativamente às realidades corporais, ou conheceram experimentando-o pelos sentidos corpóreos, ou o apreenderam graças à capacidade do engenho humano e à vivacidade da reflexão, ou ainda com a ajuda do saber, a ponto de pretenderem, pelas realidades corporais, medir e representar as realidades espirituais. Há também outros que pensam Deus com os critérios da natureza ou da afeição do espírito humano (secundum animi humani naturam uel affectum), se é que alguma coisa pensam, e, devido a este erro, quando dissertam acerca de Deus, estabelecem no seu discurso princípios errados e falaciosos. Há, ainda, outro género de homens que de facto se esforçam por transcender todo o universo criado, que é sem dúvida mutável, para elevarem o seu olhar para a imutável substância que é Deus: mas, esmagados pelo peso da sua condição mortal, quando não só querem parecer saber o que não sabem, mas também não podem saber o que querem, sustentando temerariamente a presunção das suas opiniões, fecham a si mesmos as vias da inteligência, preferindo não corrigir a sua errónea opinião a mudar a opinião que defendem. Esta é de facto a doença de todos os que pertencem aos três géneros a que me referi: isto é, não só daqueles que pensam Deus segundo o corpo, mas também daqueles que o pensam segundo a criatura espiritual, como por exemplo a alma, e ainda daqueles que pensam Deus, não segundo o corpo, nem segundo a criatura espiritual, e todavia têm uma opinião falsa acerca de Deus, tanto mais afastados da verdade quanto aquilo que pensam não se encontra nem no corpo, nem no espírito feito e criado, nem no próprio Criador. Com efeito, quem imagina Deus branco ou vermelho, por exemplo, erra; e, no entanto, estas cores encontram-se no corpo. E também quem imagina Deus ora esquecendo-se, ora recordando-se, ou coisas do mesmo género, labora igualmente em erro; e, no entanto, estes estados encontram-se no espírito (in animo). Quem julga que Deus é de tal potência que se gerou a si próprio erra tanto mais quanto não só Deus não é assim, mas nem sequer é criatura espiritual ou corporal. De facto, não há absolutamente coisa nenhuma que se possa gerar a si própria para existir.» SANTO AGOSTINHO, Trindade (De Trinitate), I, 1,1 (Edição bilingue, coordenação de Arnaldo do Espírito Santo, introdução e notas de José Maria da Silva Rosa, tradução de Arnaldo do Espírito Santo, Domingos Lucas Dias, João Beato, Maria Cristina Pimentel. Lisboa: Paulinas Editora, 2007, pp.9-11).

 

2.4. A diferença de S. Agostinho: sem aversão à infinitude

«Quanto aos que dizem que nem a ciência de Deus pode abarcar o infinito, só falta, para se afundarem na voragem da sua profunda impiedade, que tenham a ousadia de afirmar que Deus não conhece todos os números. Que eles são realmente infinitos – é absolutamente certo. Porque em qualquer número que julgues ter chegado ao fim, esse mesmo podes tu aumentá-lo, não digo acrescentando-lhe mais um, mas, por maior que seja e por enorme quantidade que expresse, pode, em razão da sua natureza e graças à ciência dos números, duplicar-se e até multiplicar-se. Aliás, cada número está limitado pelas suas propriedades de forma que nenhum pode ser idêntico ao outro. São desiguais e diferentes entre si, cada um deles finito singularmente e todos infinitos como totalidade. Assim Deus não chegaria a conhecê-los todos devido à sua infinidade e a sua ciência apenas abarcaria uma certa quantidade de números ignorando o resto: Qual é o insensato capaz de sustentar uma afirmação destas?» SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus XII, 19 (Trad. de J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, [p.1129].

 

 

Aula nº5 (14/10/23)

2. Diacronia da questão disputada da existência de Deus

2.1. A teologia sola ratione de S. Anselmo. As quatro vias sola ratione do Monologion: a via da bondade (cap.I); a via da grandeza (cap.II); a via da existência (cap.III: leitura partilhada); e a via da perfeição (cap.IV). A distinção entre essência, ser e ente (cap.VI). A crítica da noção de supremo e a separação entre supremo e insuperável (cap.XV).

Sugestão de leitura: M. L. Xavier. A Questão da Existência de Deus. Uma Disputa Medieval. Sintra: Zéfiro, 2013, 13-34 (livro acima disponível).

 

 

A teologia sola ratione de S. Anselmo

 

«Se alguém ignora, ou por não ter ouvido ou por não ter crido, a natureza una, suprema relativamente a todas as coisas que existem, a única que é auto‑suficiente na sua eterna beatitude, que dá e que faz, pela sua omnipotente bondade, com que todas as outras coisas sejam algo e sejam de algum modo bem, e muitos outros dados que cremos necessariamente acerca de Deus ou da sua criatura, considero que de tudo isso, em grande parte, pode persuadir‑se a si mesmo pelo menos só pela razão (sola ratione).» Monologion 1 (Ed. F. S. Schmitt, S. ANSELMI CANTUARIENSIS ARCHIEPISCOPI Opera Omnia, Stuttgart – Bad Cannstatt, 1968, I, p.13, 5-11. Tradução nossa).

 

 

As quatro vias sola ratione do Monologion

 

«Capítulo I

Que existe algo óptimo e máximo e supremo relativamente a todas as coisas que existem

 

[…].

Fácil é, portanto, que alguém diga assim consigo mesmo silenciosamente: como existem coisas tão boas e inumeráveis, cuja grande diversidade experimentamos pelos sentidos corpóreos e discernimos pela razão da mente, não é de crer que existe algo uno, pelo qual sejam boas todas as coisas que são boas, ou são diferentes coisas boas por diferentes razões? Certíssimo e evidente é, para todos os que querem reparar, que todas as coisas que são ditas algo, de modo que são ditas mais ou menos ou igualmente entre si, são ditas por algo, que não é diferente, mas é entendido como o mesmo em diversas coisas quer nelas seja considerado igualmente quer desigualmente. Na verdade, todas as coisas que são ditas justas, quer paritariamente quer mais quer menos umas relativamente às outras, não podem ser entendidas como justas senão pela justiça, que não é uma numa coisa e outra noutra coisa diversa. Portanto, uma vez que é certo que todas as coisas boas, se comparadas umas com as outras, são boas igual ou desigualmente, é necessário que todas sejam boas por algo, que é entendido como o mesmo em diversos bens, embora por vezes pareçam dizer‑se bens diferentes por diferentes razões.

De facto, por uma razão parece dizer‑se que um cavalo é bom, porque é forte, e, por outra, que um cavalo é bom, porque é veloz. Embora pareça que se diz bom pela fortaleza e bom pela velocidade, não parece que a fortaleza e a velocidade sejam o mesmo. Mas, se um cavalo é bom, porque é forte ou veloz, como é que um ladrão forte e veloz é mau? Antes, tal como um ladrão forte e veloz é mau porque é nocivo, assim também um cavalo forte e veloz é bom porque é útil. E, decerto, nada se costuma considerar bom senão por causa de alguma utilidade, como se diz que é boa a saúde e aquilo que favorece a saúde, ou por causa de alguma qualidade nobre, como se estima que é boa a beleza e aquilo que ajuda à beleza. Mas, porque a razão já percebida de modo nenhum pode ser dissolvida, é necessário que todas as coisas úteis ou nobres, se são verdadeiramente boas, sejam boas por isso mesmo, pelo qual é necessário serem boas, todas sem excepção, o que quer que isso seja.

Quem, no entanto, duvidará que isso mesmo, pelo qual todas são boas, é um bem magno? Este é bom por si mesmo, porque todo o bem é por ele. Segue‑se, portanto, que todos os outros bens são por algo diferente daquilo que eles próprios são, e só ele é por si mesmo. E nenhum bem, que é por outra coisa, é igual ou maior do que aquele bem, que é o único que é bom por si. Aquele, de facto, é supremo, o qual sobreleva de tal modo os outros que não tem par nem superior. Mas aquilo que é sumamente bom é também sumamente grande. Existe, portanto, algo uno, sumamente bom e sumamente grande, isto é, supremo relativamente a todas as coisas que existem.» Monologion 1 (Ed. F. S. Schmitt, S. ANSELMI CANTUARIENSIS ARCHIEPISCOPI Opera Omnia, Stuttgart – Bad Cannstatt, 1968, I, p.14, 5‑28; p.15, 1‑12).

 

«Capítulo II

Da mesma coisa

 

Do mesmo modo que se descobriu que algo é sumamente bom, porque todas as coisas boas são boas por algo uno, que é bom por si mesmo, assim também necessariamente se conclui que algo é sumamente grande, porque todas as coisas grandes são grandes por algo uno, que é grande por si mesmo. Digo grande, não quanto ao espaço, como é um corpo, mas tal que, quanto maior tanto melhor é, ou mais digno, como é a sabedoria. E, porque não pode ser sumamente grande senão aquilo que é sumamente bom, é necessário que exista algo máximo e óptimo, isto é, supremo relativamente a todas as coisas que existem.» Mon. 2 (Schmitt: I, p.15, 15‑23).

 

 

«Capítulo III

Que é alguma natureza, pela qual é tudo aquilo que é, e que é por si, e que é suprema relativamente a todas as coisas que são

 

Por fim, não só todas as coisas boas são boas por um mesmo algo, e todas as coisas grandes por um mesmo algo, mas tudo o que é, parece que é por algo uno. Na verdade, tudo o que é, ou é por algo [hipótese 1] ou por nada [hipótese 2]. Mas nada é por nada. Não pode, de facto, pensar‑se que algo seja não por algo. Tudo o que é, portanto, não é senão por algo. Assim sendo, ou é uno [sub-hipótese 1.1] ou é múltiplo [sub-hipótese 1.2], aquilo pelo qual são todas as coisas que são. [Sub-hipótese 1.2] Se é múltiplo, os elementos dessa multiplicidade ou se reconduzem a algo uno pelo qual são [sub-hipótese 1.2.1], ou cada um desses elementos é por si, ou esses elementos são reciprocamente uns pelos outros. Mas, se múltiplos elementos são por um só, já não são todas as coisas por múltiplos elementos, mas antes por aquele uno, pelo qual são estes múltiplos elementos. [Sub-hipótese 1.2.2] Se, no entanto, cada um destes elementos é por si, é decerto alguma força ou natureza de existir por si (natura existendi per se), que eles possuem para serem por si. Não há dúvida, porém, de que esses elementos sejam por esse mesmo uno, pelo qual possuem a capacidade de serem por si. Portanto, mais verdadeiramente são todas as coisas por esse mesmo uno do que por múltiplos, que não podem ser sem esse uno. [Sub-hipótese 1.2.3] Que múltiplos elementos sejam por si reciprocamente, nenhuma razão suporta, porque é uma cogitação irracional, que alguma coisa seja por aquilo ao qual dá ser. Na verdade, nem os relativos são assim reciprocamente uns pelos outros. Quando, de facto, o senhor e o servo se referem um ao outro, os próprios homens que se referem, de modo nenhum são um pelo outro, e as próprias relações pelas quais eles se referem, de modo nenhum são uma pela outra, porque ambas são pelos respectivos sujeitos. [Confirmação da sub-hipótese 1.1] Assim, uma vez que a verdade exclui omnimodamente que sejam múltiplos os elementos pelos quais todas as coisas são, é necessário que seja uno, aquilo pelo qual são todas as coisas que são.

Uma vez, portanto, que todas as coisas que são, são pelo próprio uno, sem dúvida que o próprio uno é por si mesmo. Todas as outras coisas que são, são por algo diferente delas, só ele próprio é por si mesmo. Mas, tudo aquilo que é por algo diferente, é menos do que aquilo pelo qual todas as outras coisas são, e que é o único que é por si. Por isso, aquilo que é por si é em grau máximo relativamente a todas as coisas. Portanto, algo uno é, que é o único que é em grau máximo e supremo relativamente a todas coisas. Ora aquilo que é em grau máximo relativamente a todas as coisas, e pelo qual é tudo o que é bom ou grande, e, de todo o modo, tudo o que é algo, é necessário que seja sumamente bom e sumamente grande, e supremo relativamente a todas as coisas que são. Por conseguinte, algo é, quer seja dito essência ou substância ou natureza, que é óptimo e máximo, e supremo relativamente a todas as coisas que são.» Mon. 3 (Schmitt: I, p.15, 27‑30; p.16, 1‑28).

 

«Capítulo IV

Da mesma coisa

 

Mais. Se alguém observar as naturezas das coisas, sente, quer queira quer não, que elas não são todas pares em dignidade, mas algumas delas distinguem‑se por imparidade de graus. Com efeito, quem duvida de que, na sua natureza, o cavalo é melhor do que a madeira, e o homem mais eminente do que o cavalo, não deve por certo dizer‑se homem. Portanto, como entre as naturezas não se pode negar que umas sejam melhores que outras, não menos a razão persuade de que alguma entre elas é a tal ponto supereminente que não tenha superior a si. De facto, se esta distinção de graus é infinita, de modo que nenhum grau superior aí haja relativamente ao qual não se encontre outro superior, a razão é conduzida a depreender que a multiplicidade de naturezas não tem fim. Isto, porém, ninguém deixa de considerar absurdo, a não ser quem for demasiado absurdo. Existe, portanto, necessariamente alguma natureza, que é a tal ponto superior a uma ou mais naturezas que nenhuma existe à qual se ordene como inferior.

Esta natureza que é tal, [hipótese 1] ou existe só [hipótese 2] ou existem múltiplas do mesmo género e iguais. [Hipótese 2] Se existem múltiplas e iguais: como não podem ser iguais por razões diversas, mas pelo mesmo algo, esse uno pelo qual são igualmente grandes, [sub-hipótese 2.1] ou é isso mesmo que elas próprias são, isto é, a própria essência delas, [sub-hipótese 2.2] ou é diferente daquilo que elas próprias são. [Sub-hipótese 2.1] Mas se nada mais é do que a própria essência delas, como as essências delas não são múltiplas, mas uma só, assim também as naturezas não são múltiplas, mas uma só. Na verdade, entendo aqui que natureza é o mesmo que essência. [Sub-hipótese 2.2] Se, no entanto, aquilo pelo qual múltiplas naturezas são tão grandes, é diferente daquilo que elas próprias são, certamente são elas menores do que aquilo pelo qual elas são grandes. Na verdade, tudo aquilo que é grande por algo diferente, é menor do que aquilo pelo qual é grande. Por isso, não são tão grandes que nada diferente exista maior do que elas. Uma vez que nem por isto que elas são, nem por algo diferente, é possível existirem múltiplas naturezas tais que nada é mais eminente do que elas, de modo nenhum podem existir naturezas múltiplas deste género. Resta, portanto, que existe uma só natureza, que é a tal ponto superior às outras que a nada é inferior. Mas aquilo que é tal, é máximo e óptimo relativamente a todas as coisas que existem. Existe, portanto, alguma natureza que é o supremo relativamente a todas as coisas que existem. Isto, porém, não pode acontecer a não ser que ela própria seja por si aquilo que é, e todas as coisas que existem, sejam por ela mesma aquilo que são. Na verdade, como há pouco a razão ensinou, aquilo que existe por si e pelo qual todas as outras coisas existem, é o supremo de todos os existentes, ou, conversamente, aquilo que é supremo, existe por si, e todas as outras coisas, por ele, ou, então, existirão múltiplos supremos. Mas é evidente que não existem múltiplos supremos. Por conseguinte, existe alguma natureza ou substância ou essência, que por si é boa e grande, e por si é aquilo que é, e pela qual existe tudo aquilo que é bom ou grande ou algo, a qual é o bem supremo, o sumamente grande, o ente ou o subsistente supremo, isto é, o supremo relativamente a todas as coisas que existem.» Mon. 4 (Schmitt: I, p.16, 31‑32; p.17, 1‑33; p.18, 1‑3).

 

A essência, o ser e o ente

«Como é que se deve, então, entender que é por si e de si [a natureza suprema], se não se fez a si mesma, nem foi matéria para si mesma, nem de algum modo se ajudou a si mesma, para ser o que não era? A não ser, talvez, que pareça dever entender-se do modo como se diz da luz, que luz e é luzente por si mesma e de si mesma. De facto, assim como se relacionam entre si a luz, o luzir e o luzente, assim também se relacionam entre si a essência, o ser e o ente, isto é, o existente ou o subsistente. Portanto, a essência suprema, o ser sumamente e o sumamente ente convêm entre si de modo não dissemelhante àquele como convêm a luz, o luzir e o luzente.» Mon. 6 (Schmitt: I, p.20, 11-19).

 

A regra de selecção dos atributos divinos

«Na verdade, quem considerar com rigor um a um, o que quer que seja para além dos relativos, ou isso mesmo é tal que seja omnimodamente melhor do que a sua negação, ou isso mesmo é tal que a sua negação de algum modo seja melhor do que ser isso mesmo. É omnimodamente melhor algo do que a sua negação, como o sapiente do que o não sapiente, isto é, melhor é o sapiente do que o não sapiente. De facto, ainda que o justo não sapiente pareça melhor do que o sapiente não justo, não é simplesmente melhor o não sapiente do que o sapiente. Todo o não sapiente simplesmente considerado, enquanto é não sapiente, é menos do que o sapiente, porque todo o não sapiente seria melhor, se fosse sapiente. De modo similar, é omnimodamente melhor o verdadeiro do que a sua negação, isto é, do que o não verdadeiro; e o justo do que o não justo; e viver do que não viver. Melhor, porém, é a negação de algo de certo modo do que ser isso mesmo, como o não ouro do que o ouro. Na verdade, melhor é, para o homem, ser não ouro do que ouro, embora talvez, para alguma [outra natureza], fosse melhor ser ouro do que não ouro, como para o chumbo. Sendo um e outro, o homem e o chumbo, não ouro, tanto melhor algo é homem quanto seria de natureza inferior, se fosse ouro; e tanto mais vil é o chumbo quanto mais precioso seria, se fosse ouro.» Mon. 15 (Schmitt: I, p.28, 25‑34; p.29, 1‑9).

 

A crítica de supremo (summum)

«Se, de facto, nenhuma destas coisas alguma vez existisse, em relação às quais se diz suprema e maior, ela não seria entendida nem como suprema nem como maior, e nem por isso seria menos boa ou sofreria algum dano na sua essencial grandeza. Isto é manifestamente conhecido, porque não é por outro mas por si mesma que ela é tudo o que ela é de bom e de grande. Se, portanto, a natureza suprema pode ser de tal modo entendida como não suprema que de modo nenhum seja maior ou menor do que quando é entendida como suprema relativamente a todas as coisas: é evidente que supremo não significa simplesmente aquela essência que é omnimodamente maior e melhor do que tudo aquilo que não é o que ela é. Aquilo que a razão ensina acerca de supremo não difere do que se encontra em relativos similares.» Mon. 15 (Schmitt: I, p.28, 13‑23).

 

A separação entre supremo e insuperável

«Só ela é aquela em relação à qual nada absolutamente é melhor, e aquela que é melhor do que todas as coisas que não são o que ela éMon. 15 (Schmitt: I, p.29, 20‑21).

 

 

 

Aula nº6 (21/10/23)

2.2. S. Anselmo e o seu argumento único. Leitura partilhada do texto do argumento do Proslogion (cc.2-3). O nome anselmiano de Deus (aliquid quo nihil maius cogitari possit). Os princípios metafísicos do argumento anselmiano.

Sugestão de leituras, M. L. Xavier. A Questão da Existência de Deus. Uma disputa medieval, sobre: a via única do Proslogion, 34-37; o nome anselmiano de Deus, 38-42; os princípios metafísicos do argumento único, 42-44.

Apresentação de trabalho em projecto: Raoul Andrei Marian (f), com arguição por Sara Marques Nobre

 

 

SANTO ANSELMO

Proslogion 2‑3.

Texto da ed. crítica de F.S. Schmitt (I, pp.101‑103), reprod. em L’Oeuvre d’Anselme de Cantorbéry 1, Paris, Cerf, 1986, pp.244‑248. Tradução nossa. No final de cada referência ou citação, acrescenta‑se a indicação de volume, página e linha da edição crítica.

 

Capítulo II

Que Deus é verdadeiramente

 

Portanto, Senhor, tu que dás a inteligência da fé, dá‑me, na medida do que consideras conveniente, a inteligência de que és como cremos e de que és aquilo que cremos. E decerto nós cremos que tu és algo maior do que o qual nada possa ser pensado (aliquid quo nihil maius cogitari possit). Ou então uma tal natureza não é, porque “disse o insipiente no seu coração: Deus não é” (Sl. 13, 1; 52, 1). Mas certamente este mesmo insipiente, quando ouve isto mesmo que eu digo: algo maior do que o qual nada pode ser pensado (aliquid quo maius nihil cogitari potest), tem inteligência do que ouve; e aquilo de que tem inteligência é no seu intelecto, mesmo se não tiver inteligência de que aquilo é. Uma coisa, de facto, é algo ser no intelecto, outra coisa é inteligir que algo é. Na verdade, quando um pintor concebe aquilo que há‑de fazer, tem decerto no intelecto, mas ainda não tem a inteligência de que é aquilo que ainda não fez. Quando já tiver pintado, tem no intelecto e tem a inteligência de que é, aquilo que já fez. Portanto, também o insipiente está convencido de que algo maior do que o qual nada pode ser pensado (aliquid quo nihil maius cogitari potest) é no intelecto, porque tem inteligência disto quando ouve, e o que quer que seja inteligido é no intelecto. E decerto aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius cogitari nequit) não pode ser só no intelecto. Se, de facto, é só no intelecto, pode pensar‑se que é também na realidade, o que é maior (Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re, quod maius est). Se, portanto, aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius cogitari non potest) é só no intelecto, aquilo mesmo maior do que o qual não pode ser pensado (id ipsum quo maius cogitari non potest) é aquilo maior do que o qual pode ser pensado. Mas certamente isto não pode ser. Existe (existit), portanto, sem dúvida, no intelecto e na realidade, algo maior do que o qual não pode ser pensado (aliquid quo maius cogitari non valet).

 

Capítulo III

Que não se pode pensar que não é

 

O que é tão verdadeiramente que nem sequer se pode pensar que não é. Na verdade, pode pensar‑se que algo é, que não possa pensar‑se que não é; o que é maior do que aquilo que pode pensar‑se que não é (Nam potest cogitari esse aliquid, quod non possit cogitari non esse; quod maius est quam quod non esse cogitari potest). Por isso, se aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius nequit cogitari) pode pensar‑se que não é, aquilo mesmo maior do que o qual não pode ser pensado (id ipsum quo maius cogitari nequit) não é aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius cogitari nequit); o que não pode convir. Assim, portanto, algo maior do que o qual não pode ser pensado (aliquid quo maius cogitari non potest) é tão verdadeiramente que nem sequer se possa pensar que não é.

 

 

Destaques

 

O nome divino de Proslogion 2‑3

 

Ocorrências e variações:

- algo maior do que o qual nada possa ser pensado (aliquid quo nihil maius cogitari possit) Pr. 2 (I, p101, l.5);

- algo maior do que o qual nada pode ser pensado (aliquid quo maius nihil cogitari potest) Pr. 2 (I, p.101, l.8);

- algo maior do que o qual nada pode ser pensado (aliquid quo nihil maius cogitari potest) Pr. 2 (I, p.101, l.14);

- aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius cogitari nequit) Pr. 2 (I, p.101, ll.15‑16);

- aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius cogitari non potest) Pr. 2 (I, p.101, l.18);

- aquilo mesmo maior do que o qual não pode ser pensado (id ipsum quo maius cogitari non potest) Pr. 2 (I, p.101, l.18; p.102, l.1);

- algo maior do que o qual não pode ser pensado (aliquid quo maius cogitari non valet) Pr. 2 (I, p.102, ll.2‑3);

 

- aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius nequit cogitari) Pr. 3 (I, p.102, ll.8‑9);

- aquilo mesmo maior do que o qual não pode ser pensado (id ipsum quo maius cogitari nequit) Pr. 3 (I, p.102, ll.9‑10);

- aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius cogitari nequit) Pr. 3 (I, p.102, l.10);

- algo maior do que o qual não pode ser pensado (aliquid quo maius cogitari non potest) Pr. 3 (I, p.103, l.1).

 

 

Os princípios do argumento anselmiano

 

E decerto aquilo maior do que o qual não pode ser pensado não pode ser só no intelecto. Se, de facto, é só no intelecto, pode pensar‑se que é também na realidade, o que é maior (Et certe id quo maius cogitari nequit, non potest esse in solo intellectu. Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re, quod maius est). Pr. 2 (I, p.101, ll.15‑17)

O que é tão verdadeiramente que nem sequer se pode pensar que não é. Na verdade, pode pensar‑se que algo é, que não possa pensar‑se que não é; o que é maior do que aquilo que pode pensar‑se que não é (Quod utique sic vere est, ut nec cogitari possit non esse. Nam potest cogitari esse aliquid, quod non possit cogitari non esse; quod maius est quam quod non esse cogitari potest). Pr. 3 (I, p.102, ll.6‑8)

 

 

 

Aula nº7 (28/10/23)

2.3. Gaunilo contra Anselmo, em Quid ad haec respondeat quidam pro insipiente (Pro Insipiente). A auto-defesa de Anselmo, em Quid ad haec respondeat quidam editor ipsius libelli (Responsio Editoris). Tópicos principais do debate entre Anselmo e Gaunilo: impossibilidade ou possibilidade de conjecturar algo sobre Deus? Anselmo e o conceito de algo totalmente omnipresente, o pleno; a existência do eu e a existência de Deus; a noção de supremo e a questão do argumento único.

 

Sugestão de leituras, in M. L. Xavier. A Questão da Existência de Deus. Uma disputa medieval, sobre: Gaunilo, primeiro crítico de Anselmo, 51; Gaunilo, filosoficamente agnóstico: 53-55; Anselmo e a possibilidade de conjecturar sobre Deus, 220-221; Gaunilo e a caricatura da ilha perdida, 56-57; Anselmo e o conceito de algo totalmente omnipresente, 221-223; a existência do eu e a existência de Deus, 62-64; a noção de supremo e a questão do argumento único, 64-70.

 

ANSELMO E O SEU PRIMEIRO CRÍTICO

GAUNILO

 

Anselmo encontrou em Gaunilo, que era outro monge seu contemporâneo, o primeiro crítico do seu argumento do Proslogion. Gaunilo exprime a sua crítica num texto que, conforme o título indica, Quid ad haec respondeat quidam pro insipiente (Schmitt: I, pp.125-129), milita a favor do insipiente, que desempenhara, na exposição do argumento anselmiano, o papel de proponente da hipótese absurda: «disse o insipiente no seu coração: não existe Deus» (Sl. 13, 1; 52, 1). À luz da nossa interpretação do argumento anselmiano, o insipiente é aquele que é desprovido da sabedoria intrínseca à compreensão do argumento, que inclui a metafísica que o fundamenta. Gaunilo é um crente, como Anselmo. Não é, portanto, a fé que os separa, mas sim a razão. Gaunilo escreve, por isso, um texto em defesa do insipiente, que é um texto de recusa da metafísica inerente ao argumento anselmiano. Gaunilo começa assim a cumprir, a respeito deste argumento, a função própria da crítica: acusar a relatividade da metafísica de suporte, cujos princípios serão porventura apenas hipotéticos, não necessários. Anselmo, todavia, não se deixa intimidar pela crítica, e sai em defesa da razão metafísica do seu argumento, num texto de réplica a Gaunilo, em defesa do seu texto anterior, o Proslogion: Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli (Schmitt: I, pp.130-139).

 

Gaunilo: filosoficamente agnóstico

«[4.] A isto acresce aquilo que foi já aludido acima, a saber, que aquilo maior do que todas as coisas que possam ser pensadas, que se diz que nada mais pode ser senão o próprio Deus, tanto eu não o posso pensar, tendo‑o ouvido, nem tê-lo no intelecto, segundo alguma coisa específica ou genericamente conhecida, quanto o próprio Deus, que, em todo o caso e também por isto, posso pensar que não existe. De facto, nem conheci a própria realidade nem posso conjecturar acerca dela a partir de outra semelhante, visto que tu a consideras tal que algo semelhante não pode existir. Na verdade, se eu ouvisse dizer algo de um homem, para mim inteiramente desconhecido, cuja existência eu também desconhecesse: através daquele conhecimento específico ou genérico pelo qual conheci o que é o homem ou os homens, também acerca deste eu poderia pensar segundo a própria realidade que é o homem. E, no entanto, poderia acontecer que, mentindo aquele que o dissesse, não existisse o próprio homem que eu pensasse, ainda que eu tivesse pensado acerca dele, pelo menos, segundo uma realidade verdadeira, não aquilo que seria aquele homem, mas aquilo que é qualquer homem. Por isso, nem assim como posso ter isto falso no pensamento ou no intelecto, posso ter aquilo quando ouço dizer ‘Deus’ ou ‘algo maior do que todas as coisas’, pois, enquanto aquilo eu posso pensar segundo a verdadeira realidade para mim conhecida, isto de modo nenhum eu posso, a não ser apenas segundo a palavra, segundo a qual somente, ou dificilmente ou nunca pode ser pensado algo verdadeiro. Com efeito, quando assim se pensa, não é tanto a própria palavra, que é uma coisa verdadeira, isto é, o som das letras e das sílabas, quanto é a significação da palavra ouvida que é pensada; mas não como por aquele que conhece aquilo que costuma ser significado pela palavra, e por quem isso é pensado quer na verdadeira realidade quer só no pensamento; antes como por aquele que não conhece aquilo e pensa somente segundo a moção do espírito provocada pela audição daquela palavra, e esforçando‑se por figurar para si a significação da palavra percebida. Seria de admirar se alguma vez pudesse alcançar verdadeiramente a realidade. Assim, portanto, nem, de todo, de outro modo é o caso de eu ter no meu intelecto, quando oiço e entendo aquele que diz que existe algo maior do que todas as coisas que podem ser pensadas. Isto acerca do facto de se dizer que aquela natureza suprema já existe no meu intelecto.» Pro ins. [4] (Schmitt: I, p.126, 29-31; p.127, 1-24).

 

Anselmo: a possibilidade de conjecturar sobre Deus

«Também quanto ao que dizes, que aquilo maior do que o qual não pode ser pensado, não o podes pensar, quando ouvido, nem ter no intelecto, segundo alguma coisa genérica ou especificamente conhecida, porque nem conheces essa mesma realidade nem podes conjecturar acerca dela a partir de outra semelhante: é evidente que o caso é de outro modo. Na verdade, uma vez que todo o bem menor é semelhante a um bem maior, enquanto é um bem, é evidente para qualquer mente racional que, ascendendo dos bens menores aos maiores, a partir daqueles relativamente aos quais algo maior pode ser pensado, muito podemos conjecturar acerca daquilo maior do que o qual nada pode ser pensado. Quem, por exemplo, não pode pensar isto, mesmo se não crê que existe na realidade aquilo que pensa, a saber, que: se há um bem que tem início e fim, muito melhor é um bem que embora comece não acaba; e assim como este é melhor do que aquele, assim também é melhor do que este, aquele que não tem fim nem início, mesmo se transitar sempre do pretérito, através do presente, para o futuro; e quer exista quer não exista na realidade, algo semelhante, muito melhor do que isto é aquilo que de modo nenhum necessita ou é coagido à mudança ou ao movimento? Ou isto não pode ser pensado, ou pode ser pensado algo maior do que isto? Ou não é isto conjecturar acerca daquilo maior do que o qual não pode ser pensado, a partir destes relativamente aos quais maior pode ser pensado? Há, por isso, donde possa conjecturar‑se acerca daquilo maior do que o qual não possa ser pensado.» Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli [8.] (Schmitt: I, 137, 11‑28).

 

Anselmo: o conceito de algo totalmente omnipresente — o pleno

«Tu porém pensas que pelo facto de ser inteligido algo maior do que o qual não pode ser pensado, não se segue que isso exista no intelecto nem que, se existir no intelecto, exista também na realidade. Eu digo com certeza: se pode ser pensado que exista, é necessário que isso exista. Na verdade, ‘maior do que o qual não pode ser pensado’ não pode ser pensado que exista a não ser sem início. O que quer que pode ser pensado existir e não existe, pode ser pensado existir por um início. Portanto, ‘maior do que o qual não pode ser pensado’ não pode ser pensado existir e não existe. Se, portanto, pode ser pensado existir, existe por necessidade.

Mais. Se, em qualquer caso, pode ser pensado, é necessário que isso exista. De facto, ninguém que nega ou duvida de que exista algo maior do que o qual não possa ser pensado, nega ou duvida de que, se existisse, nem actual nem intelectualmente poderia não existir. Caso contrário, não seria maior do que o qual não possa ser pensado. Mas o que quer que pode ser pensado e não existe: se existisse, poderia não existir quer actual quer intelectualmente. Por isso, se pode ser pensado, não pode não existir ‘maior do que o qual não pode ser pensado’. Mas suponhamos que não existe, se pode ser pensado. Ora, o que quer que pode ser pensado e não existe: se existisse, não seria ‘maior do que o qual não possa ser pensado’. Se, portanto, existisse ‘maior do que o qual não possa ser pensado’, não seria ‘maior do que o qual não possa ser pensado’; o que é demasiado absurdo. Por isso, é falso que não exista algo maior do que o qual não possa ser pensado, se pode ser pensado. Muito mais, se pode ser inteligido e existir no intelecto.

Direi algo mais. Sem dúvida, o que quer que algures ou alguma vez não existe: mesmo se existe algures ou alguma vez, pode ser pensado que nunca e nenhures exista, assim como não existe algures ou alguma vez. Na verdade, aquilo que ontem não existiu e hoje existe: assim como se entende que ontem não existiu, assim também pode subentender-se que nunca exista. E aquilo que não existe aqui e existe ali: assim como não existe aqui, assim também pode ser pensado que nenhures exista. De modo semelhante, algo do qual umas partes não existem onde ou quando existem as outras partes, todas as suas partes e, por isso, o próprio todo podem ser pensados nunca ou nenhures existirem. E se se disser que o tempo existe sempre e o mundo ubiquamente, nem aquele, todavia, existe todo sempre nem este todo ubiquamente. E, assim como umas partes do tempo não existem quando existem as outras, assim também podem ser pensadas nunca existirem. E algumas partes do mundo, assim como não existem onde existem as outras, assim também podem ser subentendidas nenhures existirem. Mas aquilo que é composto de partes pode ser dissolvido pelo pensamento e não existir. Por isso, o que quer que não exista todo algures ou alguma vez: mesmo se existir, pode ser pensado não existir. Ora ‘maior do que o qual não pode ser pensado’: se existe, não pode ser pensado não existir. Caso contrário, se existe, não é maior do que o qual não possa ser pensado; o que não é consistente. De modo nenhum, portanto, não existe todo algures ou alguma vez, mas existe todo sempre e ubiquamente Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli [1.] (Schmitt: I, p.130, 20-21; p.131, 1-33; p.132, 1-2).

 

Gaunilo: a ilha perdida

«[6.] Por exemplo: dizem uns que existe uma ilha algures no oceano, à qual, pela dificuldade ou, melhor, pela impossibilidade de encontrar o que não existe, chamam alguns ‘perdida’, da qual contam muito mais do que o que se refere acerca das Ilhas Afortunadas, a saber, que ela sobreleva pela inestimável pujança de todas as riquezas e delícias, e que, não tendo possuidor ou habitante, ela ultrapassa, pela superabundância de coisas a possuir em toda a parte, todas as outras terras que os homens habitam. Dir-me-á alguém que isto assim é, e eu facilmente entenderei o que foi dito, no que não há dificuldade alguma. Mas se disser e acrescentar como consequência: não podes mais duvidar de que aquela ilha superior a todas as terras existe verdadeiramente algures na realidade, a qual tu não duvidas de que exista no teu intelecto; e, uma vez que é melhor existir não só no intelecto mas também na realidade, é necessário, por isso, que ela exista, porque, se não existisse, qualquer outra terra na realidade seria melhor do que ela, e, assim, ela própria por ti entendida como superior já não seria superior; – se, digo eu, por isto ele me quiser garantir acerca daquela ilha, que não se deve duvidar mais de que ela verdadeiramente existe: ou acreditaria que ele estava a gracejar ou não sei quem deva considerar mais estulto, ou eu, se lho conceder, ou ele, se considerar ter assegurado com alguma certeza a essência daquela ilha, a não ser que primeiro me ensinasse que a própria superioridade dela existe no meu intelecto somente como uma coisa verdadeira e indubitavelmente existente e não como algo falso ou incerto.» Pro ins. [6.] (Schmitt: I, p.128, 14-32).

 

A ironia de Anselmo

«Digo confiantemente que, se alguém encontrar para mim um existente na realidade ou só no pensamento, para além daquilo maior do que o qual não possa ser pensado, ao qual possa adaptar‑se o nexo desta minha argumentação: eu encontrá‑lo‑ei e dar‑lhe‑ei a ilha perdida para não mais a perder.» Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli [3.] (Schmitt: I, p.133, 3-9).

 

Existência do eu e existência de Deus: Gaunilo

«E também sei de modo certíssimo que eu existo, mas não menos sei que posso não existir. Porém, daquele supremo que existe, ou seja, Deus, entendo sem dúvida que existe e que não pode não existir. Pensar, todavia, que eu não existo enquanto sei de modo certíssimo que existo, não sei se posso. Mas se posso, por que não também qualquer outra coisa que eu sei com a mesma certeza? Se não posso, não será já isto próprio de Deus.» Pro ins. [7.] (Schmitt: I, p.129, 14-19).

 

Existência do eu e existência de Deus: Anselmo

«Na verdade, se nenhuma das coisas que existem se pode inteligir que não existe, pode‑se no entanto pensar que todas elas não existem, para além daquilo que é sumamente. Só se pode pensar que não existem, todas as coisas que têm início ou fim ou conjunção de partes e, como já disse, o que quer que seja que não existe todo em algum lugar ou tempo. Só não se pode pensar que não existe, aquilo no qual não há início nem fim nem conjunção de partes e que um pensamento não encontra senão sempre e ubiquamente.

Fica pois sabendo que podes pensar que tu não existes, enquanto sabes de modo certíssimo que existes, e admiro‑me de que tenhas dito que não saibas. Na verdade, pensamos que não existem muitas coisas que sabemos que existem, e que existem muitas que sabemos que não existem; não estimando, mas fingindo que assim é como pensamos. E, decerto, podemos pensar que algo não existe, enquanto sabemos que existe, porque simultaneamente podemos aquilo e sabemos isto. E não podemos pensar que não existe, enquanto sabemos que existe, porque não podemos pensar simultaneamente que existe e que não existe. Quem distinguir, portanto, estas duas proposições relativas ao mesmo enunciado, entenderá que nada pode ser pensado que não existe, enquanto é sabido que existe, e que pode ser pensado que não existe, o que quer que exista, para além daquilo maior do que o qual não pode ser pensado, também quando se sabe que existe. Assim é próprio de Deus não poder ser pensado não existir, e, no entanto, muitas coisas não podem ser pensadas não existir, enquanto existem.» Resp. [4.] (Schmitt: I, p.133, 30; p.134, 1-18).

 

Anselmo: a questão do argumento único

«Antes de mais, tu repetes frequentemente que eu digo que o que é maior do que todas as coisas existe no intelecto, se existe no intelecto, existe na realidade – caso contrário, o maior do que todas as coisas não seria o maior do que todas as coisas –: nunca em todos os meus ditos se encontra tal prova. De facto, dizer ‘o maior de todas as coisas’ não vale o mesmo que ‘maior do que o qual não pode ser pensado’, para provar que existe na realidade aquilo que é pensado. Se alguém disser que ‘maior do que o qual não possa ser pensado’ não existe na realidade ou pode não existir ou pode ser pensado que não exista, essa pessoa pode ser refutada facilmente. Na verdade, o que não existe pode não existir; e aquilo que pode não existir, pode ser pensado não existir. Tudo aquilo, porém, que pode ser pensado não existir: se existe, não é ‘maior do que o qual não possa ser pensado’. Se não existe: mesmo se existisse, não seria ‘maior do que o qual não possa existir’. Mas não se pode dizer: ‘maior do que o qual não possa ser pensado’, se existe, não é ‘maior do que o qual não possa ser pensado’; ou se existisse, não seria ‘maior do que o qual não possa ser pensado’. É, portanto, evidente que nem não existe nem pode não existir ou ser pensado não existir. Caso contrário, se existe, não é aquilo que é dito; e, se existisse, não existiria.

Parece, no entanto, que isto não pode ser provado tão facilmente acerca daquilo que é dito o maior do que todas as coisas. De facto, não é tão evidente que o que pode ser pensado não existir não é o maior do que todas as coisas que existem, como é evidente que não é ‘maior do que o qual não possa ser pensado’; nem é tão indubitável que, se existe algo ‘maior do que todas as coisas’, não é outro senão ‘maior do que o qual não possa ser pensado’, ou, se existisse, não seria, de modo semelhante, outro, tal como é certo acerca daquilo que se diz ‘maior do que o qual não pode ser pensado’. E então, se alguém disser que existe algo maior do que todas as coisas que existem, e que isso mesmo pode, no entanto, ser pensado não existir, e que algo maior do que isso, mesmo se não existir, pode, todavia, ser pensado? Será que aqui pode ser inferido tão claramente – logo, não é o maior do que todas as coisas que existem – assim como ali se diria com toda a clareza – logo, não é ‘maior do que o qual não pode ser pensado’? Na verdade, aquele precisa de outro argumento para além disto que é dito, ‘o maior do que todas as coisas’; neste, porém, não é preciso outro para além disto que soa, ‘maior do que o qual não possa ser pensado’. Portanto, se, de modo similar, não pode ser provado acerca daquilo que se diz ‘o maior do que todas as coisas’, o que de si mesmo e por si mesmo prova ‘maior do que o qual não pode ser pensado’: injustamente me repreendeste por ter dito aquilo que não disse, uma vez que tanto difere daquilo que disse.» Resp. [5.] (Schmitt: I, p. 134, 24-31; p.135, 1-23).

 

 

Aula nº8 (4/11/23)

2.4. Boaventura por Anselmo. A multiplicação das vias bonaventurianas. As três vias principais em Quaestiones disputatae de mysterio Trinitatis q.1, a.1: as vias do conhecimento inato, ou as vias augustinianas de Boaventura; as vias do conhecimento analógico; e as vias da evidência imediata, ou as vias anselmianas de Boaventura. O sentido da evidência imediata da existência de Deus, em Itinerarium Mentis in Deum §5.

Sugestão de leituras, M. L. Xavier. A Questão da Existência de Deus. Uma disputa medieval, sobre:

- Boaventura, continuador de Anselmo, com uma grande diferença, p.71;

- Texto das vias, em Quaestiones disputatae de mysterio Trinitatis q.1, pp.225-233;

- Apresentação e interpretação das vias, pp.72-79.

- As vias do conhecimento analógico noutras obras, pp.74-75;

- O fundamento das vias anselmianas de S. Boaventura, pp.78-79.

Apresentações de trabalho em projecto:

Dinis Rodrigo Dias Tomás (j) e Ana Cristina Rodrigues da Silva Lúcio (d), com arguição por Mateus Filipe Caeiro Esteves.

 

 

BOAVENTURA POR ANSELMO

 

Em Boaventura, teve Anselmo um continuador do seu legado, quanto à questão da racionalidade da existência de Deus. Isso não impede, porém, que haja assinaláveis diferenças entre os dois especulativos no desenvolvimento de resposta positiva a esta questão. Ressalta, desde logo, uma: se Anselmo, após experimentar múltiplas vias concatenadas entre si no Monologion, buscou uma via única auto-suficiente no Proslogion, Boaventura não se coíbe de multiplicar as vias de produzir evidência racional a favor da existência de Deus, entre as quais integra o legado anselmiano. Várias são também as obras de Boaventura, onde encontramos testemunho relevante acerca das suas múltiplas vias: Commentarium in primum librum Sententiarum, d.8; Quaestiones disputatae de mysterio Trinitatis, q.1, a.1; Itinerarium mentis in Deum, c.5; Collationes in Hexaemeron, coll.10. Vamos seguir de perto a exposição sistemática das vias bonaventurianas na q.1 de Quaestiones disputatae de mysterio Trinitatis.

 

 

SÃO BOAVENTURA

Questões Disputadas acerca do Mistério da Trindade

«Questão I

Da certeza pela qual a existência de Deus é conhecida e da fé pela qual a sua Trindade é crida

 

Artigo 1

Se a existência de Deus é uma verdade indubitável

 

Pergunta-se, assim, primeiro se a existência de Deus é uma verdade indubitável. E que sim, mostra-se por três vias. A primeira é esta: toda a verdade impressa em todas as mentes é verdade indubitável. A segunda é esta: toda a verdade, que toda a criatura proclama, é verdade indubitável. A terceira é esta: toda a verdade certíssima e evidentíssima em si mesma é verdade indubitável.

Quanto à primeira via procede-se assim e mostra-se tanto por autoridades quanto por razões que Deus existir está impresso em todas as mentes racionais.

1. Damasceno, no livro primeiro, capítulo terceiro [A Fé Ortodoxa]: “O conhecimento da existência de Deus está naturalmente inserido em nós”.

2. Também Hugo [Os Sacramentos, p.3, c.1]: “Deus temperou de tal modo o seu conhecimento no homem que assim como nunca pudesse ser compreendido totalmente o que é, assim também nunca pudesse ser completamente ignorado que existe”.

3. Também Boécio [Consolação da Filosofia III, pr.2]: “Está inserido nas mentes dos homens o desejo do verdadeiro e do bom”; mas a afecção do verdadeiro bem pressupõe o conhecimento do mesmo: portanto, nas mentes dos homens está impresso o conhecimento do verdadeiro bem e o desejo do maximamente desejável. Este bem, porém, é Deus: logo etc.

4. Também Agostinho, em A Trindade, diz, em vários sítios [IX, 2, 2; XII, 4, 4; XIV, 8, 11], que a imagem consiste em mente, conhecimento e amor, e que a razão da imagem se estende à alma por comparação com Deus: se, portanto, está impresso na alma pela natureza ser imagem de Deus, ela possui naturalmente inserido em si o conhecimento de Deus. Mas o primeiro cognoscível acerca de Deus é que Deus existe: logo, isso está naturalmente inserido na mente humana.

5. Também o Filósofo diz [Segundos Analíticos II, 99b 25-30] que “seria inconveniente nós possuirmos hábitos nobilíssimos e eles serem desconhecidos por nós”: portanto, como a existência de Deus é uma verdade nobilíssima, para nós presentíssima, é inconveniente que essa verdade seja desconhecida pelo intelecto humano.

6. Também está inserido nas mentes dos homens o desejo de sabedoria, porque diz o Filósofo [Metafísica I, 980 a 21]: “Todos os homens desejam por natureza saber”; mas a sabedoria maximamente desejável é a sabedoria eterna: portanto, o desejo dessa sabedoria, sobretudo, está inserido na mente humana. Mas não há amor, como foi dito antes, senão do conhecido de algum modo; portanto, é necessário que algum conhecimento daquela suprema sabedoria esteja impresso na mente humana. Mas isto é saber primeiro que o próprio Deus ou a sabedoria existe: logo etc.

7. Também o desejo de felicidade está de tal modo em nós inserido que ninguém pode duvidar do outro, se quer ser feliz, como diz Agostinho em vários sítios [A Trindade XIII, 3, 3; 4, 7; 20, 25]; mas a felicidade consiste no bem supremo, que é Deus: portanto, se tal desejo não pode existir sem algum conhecimento, é necessário que o conhecimento, pelo qual se sabe que o supremo bem ou Deus existe, esteja inserido na própria alma.

8. Também está inserido na própria alma o desejo de paz, e de tal modo inserido que é procurado através do seu contrário, e nem sequer o próprio desejo pode ser retirado aos condenados e aos demónios, como se mostra no livro décimo nono de A Cidade de Deus [XIX, 13, 1]. Portanto, se a paz da mente racional não está senão no ente imutável e eterno, e o desejo pressupõe a noção ou o conhecimento, o conhecimento do ente imutável e eterno está inserido no espírito racional.

9. Também está inserido na alma o ódio do falso, mas todo o ódio tem origem no amor: portanto, muito mais fortemente está inserido na alma o amor do verdadeiro, e sobretudo daquele em conformidade com o qual já a alma foi feita. Se, portanto, esse é o primeiro verdadeiro, segue-se necessariamente que o conhecimento do primeiro verdadeiro está inserido na mente racional. Que, porém, o ódio do falso esteja inserido na mente humana, isso é evidente por isto: que ninguém quer ser enganado, como diz Agostinho no livro décimo de Confissões [X, 23, 23]. Que, de novo, o ódio seja causado pelo amor, mostra Agostinho no livro décimo quarto de A Cidade de Deus [XIV, 7, 2]; de facto, ninguém odeia algo senão porque ama o seu oposto.

10. Também está inserido na alma racional o conhecimento de si, pelo facto de alma ser presente a si mesma e por si mesma cognoscível; mas Deus é presentíssimo à própria alma e por si mesmo cognoscível: portanto, está inserido na própria alma o conhecimento do seu Deus. Se disseres que não é semelhante, porque a alma é proporcional a si mesma, mas Deus não é assim proporcional à alma; contra: a objecção é nula, porque, se para o conhecimento fosse necessariamente requerida a proporcionalidade, a alma nunca alcançaria o conhecimento de Deus, porque não pode ser proporcionada a ele, nem pela natureza nem pela graça nem pela glória.

Por estes argumentos se mostra que Deus existir é indubitável para a mente humana, tal como está em si naturalmente inserido. Ninguém duvida de facto senão daquilo do qual não possui conhecimento certo.» Quaestiones Disputatae de Mysterio Trinitatis, q.1, a.1, nn.1-10 (Ed. de Quaracchi, reprod. in BAC 36, Madrid, 1966, pp.92-96).

 

«Também se mostra isto mesmo por uma segunda via, do seguinte modo: toda a verdade, que toda a criatura clama, é verdade indubitável; ora toda a criatura clama que Deus existe: logo etc. Que toda a criatura clame que Deus existe, isso mostra-se com base em dez condições e suposições por si evidentes.

11. A primeira é esta: se existe um ente posterior, existe um ente anterior, porque o posterior não existe senão pelo anterior: se, portanto, existe um universo de posteriores, é necessário que exista um ente primeiro. Se, portanto, é necessário admitir que algo é anterior e posterior nas criaturas, é necessário que o universo das criaturas leve a, e proclame um primeiro princípio.

12. Também se existe o ente por outro, existe o ente não por outro: porque nada se origina a si mesmo no ser a partir do não ser [Aristóteles, A Alma II, 416 b 16-17]: portanto, é necessário que a primeira razão de originar esteja no ente primeiro, que não é originado por outro. Se, portanto, o ente por outro se diz ente criado, e o ente não por outro se diz ente incriado, que é Deus, todas as diferenças do ente levam à existência de Deus.

13. Também se existe o ente possível, existe o ente necessário: porque possível quer dizer indiferença para ser e não ser; no entanto, nada indiferente ao ser e ao não ser pode existir senão por algo que é absolutamente determinado para ser. Se, portanto, o ente necessário, que nada absolutamente tem de possibilidade para não ser, não é senão Deus, e todo o outro ente tem algo de possibilidade, qualquer diferença do ente leva à existência de Deus.

14. Também se existe o ente respectivo, existe o ente absoluto: porque o respectivo nunca termina senão no absoluto; mas o ente absoluto, que de nenhum depende, não pode ser senão o que nada recebe de outro lado; este, no entanto, é o ente primeiro, todo o outro ente tendo algo de dependência: portanto, é necessário que qualquer diferença do ente leve à existência de Deus.

15. Também se existe o ente diminuto ou parcialmente determinado, existe o ente simplesmente: porque o ente parcialmente determinado nem pode ser nem ser inteligido, se não for inteligido através do ente simplesmente, nem o ente diminuto senão através do ente perfeito, assim como a privação não se entende senão pelo hábito. Se, portanto, todo o ente criado é ente parcialmente, só o ente incriado é ente simplesmente e perfeito; é necessário que qualquer diferença do ente leve a, e conclua que Deus existe.

16. Também se existe o ente em razão de outro, existe o ente em razão de si mesmo, caso contrário nada seria bom; mas o ente em razão de si mesmo não é senão aquele ente relativamente ao qual nada é melhor, que decerto é o próprio Deus: portanto, como o universo dos outros entes está ordenado para aquele, o universo dos entes leva a Deus segundo o ser e segundo o intelecto.

17. Também se existe o ente por participação, existe o ente por essência: porque a participação não se diz senão a respeito de algo essencialmente possuído por algo, uma vez que tudo o que é por acidente se reduz ao que é por si; mas qualquer ente diferente do primeiro ente, que é Deus, possui o ser por participação; só ele possui o ser por essência: logo etc.

18. Também se existe o ente em potência, existe o ente em acto: porque nunca a potência é redutível ao acto senão pelo ente em acto, nem existiria potência se não fosse redutível ao acto: se, portanto, o ente, que é acto puro, nada possuindo de possibilidade, não é senão Deus, é necessário que todo o diferente do primeiro ente leve à existência de Deus.

19. Também se existe o ente compósito, existe o ente simples: porque o compósito não possui o ser por si, então é necessário que receba origem do simples; mas o ente simplicíssimo, que nada possui de composição, não é senão o ente primeiro: então todo o outro ente leva a Deus.

20. Também se existe o ente mutável, existe o ente imutável: porque, segundo aquilo que prova o Filósofo [Física VIII, c.5, 257a 14-31; Metafísica XI, c.7, 1064 a 31-b 2], o movimento existe pelo ente em repouso e em razão do ente em repouso: se, portanto, o ente absolutamente imutável não é senão aquele ente primeiro, que é Deus, os restantes sendo criados, pelo próprio facto de serem criados, são mutáveis; é necessário que a existência de Deus seja inferida a partir de qualquer diferença do ente.

Com base nestas dez suposições necessárias e manifestas, infere-se que todas as diferenças ou partes do ente levam a e clamam que Deus existe. Se, portanto, toda a verdade assim é verdade indubitável, então é necessário que a existência de Deus seja uma verdade indubitável.» De myst. Trin., q.1, a.1, nn.11-20.

 

«Isto mesmo se mostra por uma terceira via, assim: toda a verdade, que é de tal modo certa que não pode ser pensada não ser, é verdade indubitável; mas Deus existir é uma verdade deste género: logo etc. A primeira é por si evidente e a segunda mostra-se de múltiplas maneiras.

21. Anselmo, no capítulo quarto de Proslogion: “Bom Senhor, graças a ti, porque acreditei primeiro naquilo que, dando tu, agora entendo, iluminando tu, de modo que se não quisesse crer, não poderia não entender”.

22. Também isto mesmo prova Anselmo, assim: Deus é maior do que o qual nada pode ser pensado; mas aquilo que é tal que não pode ser pensado não existir é mais verdadeiro do que aquilo que pode ser pensado não existir: portanto, se Deus é maior do que o qual nada pode ser pensado, Deus não poderá ser pensado não existir.

23. Também o ente maior do que o qual nada pode ser pensado é de natureza tal que não pode ser pensado a não ser que exista na realidade; porque, se existe só no pensamento, já não é o ente maior do que o qual nada possa ser pensado: portanto, se tal ente é pensado existir, é necessário que tal ente exista na realidade, o qual não poderia ser pensado não existir.

24. De novo, Anselmo: “Só tu és o que quer que é melhor ser do que não ser” [Proslogion 5]; mas toda a verdade indubitável é melhor do que toda a verdade dubitável; portanto, a Deus mais deve ser atribuído o existir indubitavelmente do que o existir dubitavelmente.

25. Também Agostinho diz, nos Solilóquios [I, 8, 15], que nenhuma verdade pode ser contemplada senão pela primeira verdade; mas o verdadeiro, pelo qual todo o outro verdadeiro é contemplado, é o verdadeiro maximamente indubitável; portanto, Deus existir é verdadeiro, não só indubitável, mas também mais indubitável do que o qual nada pode ser pensado: logo, é uma tal verdade, que não pode ser pensada não ser.

26. Também isto mesmo se prova assim [Agostinho, Solilóquios I, 15, 27; II, 2, 2; 15, 28; Anselmo, Monologion 18; A Verdade 1]: o que quer que se pode pensar, pode-se enunciar; mas de modo nenhum se pode enunciar que Deus não existe, a não ser porque se enuncia isto: Deus existe. E isto é evidente do seguinte modo: se nenhuma verdade existe, é verdadeiro que nenhuma verdade existe; e se isto é verdadeiro, algo é verdadeiro; e se algo é verdadeiro, o primeiro verdadeiro existe: logo, se não pode ser enunciado que Deus não existe, também isso não pode ser pensado.

27. Também, quanto mais anterior e universal for uma verdade tanto mais evidente; mas esta verdade, pela qual se diz que o primeiro ente existe, é a primeira de todas as verdades, segundo a realidade e segundo a razão de inteligir: portanto, é necessário que ela própria seja certíssima e evidentíssima. Mas as verdades dos axiomas e dos conceitos comuns do espírito são de tal modo evidentes em razão da sua prioridade, que não podem ser pensadas não ser: portanto, nenhum intelecto pode pensar que a primeira verdade não existe, ou dela duvidar.

28. Também “nenhuma proposição é mais verdadeira do que aquela na qual o mesmo se predica de si mesmo”; mas, quando digo que Deus existe, o existir dito de Deus é inteiramente o mesmo que Deus, porque Deus é o seu próprio existir: portanto, nenhuma [proposição] mais verdadeira e evidente do que aquela pela qual se diz que Deus existe; portanto, ninguém pode pensar que ela é falsa, ou dela duvidar.

29. Também ninguém pode ignorar que esta é verdadeira: o óptimo é o óptimo, ou pensar que é falsa; mas o óptimo é um ente completíssimo, e todo o ente completíssimo é, por isso mesmo, um ente em acto: portanto, se o óptimo é óptimo, o óptimo existe. – De modo semelhante, pode arguir-se: se Deus é Deus, Deus existe; mas o antecedente é de tal modo verdadeiro que não pode ser pensado não ser; portanto, Deus existir é uma verdade indubitável.» De myst. Trin., q.1, a.1, nn.21-29.

 

O conhecimento da existência (ipsum esse)

«3. Quem pois deseja contemplar as perfeições invisíveis de Deus, quanto à unicidade da natureza (quoad essentiae unitatem), fixe primeiramente o inspecto da mente (aspectum) na existência mesma (in ipsum esse), e veja que esta é em si de tal maneira certíssima (ipsum esse adeo in se certissimum), que não se pode pensar que não exista. Com efeito, a existência mesma, na sua máxima pureza (ipsum esse purissimum), não se concebe senão por afastamento total da não-existência (in plena fuga non-esse), do mesmo modo que [não se concebe] o nada, senão por afastamento total da existência. Assim pois como o nada absoluto (omnino nihil) nada tem da existência nem das prerrogativas dela (de esse nec de eius conditionibus), assim também, e em contraposição, a mesma existência nada tem da não existência, - nem em acto nem em potência; nem segundo a verdade objectiva nem segundo a nossa maneira de pensar (nec secundum veritatem rei nec secundum aestimationem nostram).

Sendo porém a não-existência privação da existência (non-esse privatio sit essendi), não é conhecida pela inteligência senão por meio da existência (non cadit in intellectu nisi per esse); em contraposição, a existência não é conhecida por intermédio de nenhuma outra coisa. Efectivamente, tudo o que se intelecciona, ou se intelecciona como não-ser (non ens), ou como ser-em-potência (ens in potentia), ou como ser-em-acto (ens in actu).

Ora se o não-ser (non ens) não se pode inteleccionar senão pelo ser (ens), e o ser-em-potência (ens in potentia) senão pelo ser-em-acto (ens in actu), e dado que a existência designa o próprio acto puro de ser (et esse nominat ipsum purum actum entis), segue-se que a existência é aquilo que a inteligência primeiramente conhece (esse igitur est quod primo cadit in intellectu), e essa existência é a que é acto puro (et illud esse est quod est purus actus). Tal existência, por sua vez, não é uma existência particular (esse particulare), pois esta é uma existência reduzida (quod est esse arctatum), por estar misturada com limite (quia permixtum est cum potentia); nem é uma existência análoga, porque esta tem o mínimo de realidade (quia minime habet de actu), por isso mesmo que tem o mínimo de existência (eo quod minime est). Resta pois que tal existência é a existência divina (quod illud esse est esse divinum).» S. BOAVENTURA, Itinerário da Mente para Deus (Colecção Textos Franciscanos), tradução e notas de António Soares Pinheiro, uma leitura introdutória por Maria Manuela Brito Martins, Porto, Edição do Centro de Estudos Franciscanos, 2009, Cap.5, n.3, pp.186-189.

 

 

 

Aula nº9 (11/11/23)

2.5. Tomás de Aquino contra Anselmo. A questão da demonstrabilidade da existência de Deus. As descrições e as refutações tomasianas de Proslogion 2 e 3, em Summa contra Gentiles I, 10 e 11, e Summa Theologiae I, q.2, a.1. A alternativa tomasiana ao argumento anselmiano: as cinco vias (Summa Theologiae I, q.2, a.3).

Sugestão de leituras, M. L. Xavier. A Questão da Existência de Deus. Uma disputa medieval : pp. 81-113.

Apresentações de trabalho em projecto:

Lucas Parreira Calheiros (j), com arguição por Diogo André Feliciano Alhinho

Aissa Rendall de Carvalho (h), com arguição por Aline Maria Mendes Pereira Nesello

 

 

SÃO TOMÁS DE AQUINO

 

As descrições de Proslogion II e III

 

A descrição de Proslogion c.II, em Summa contra Gentiles I, c.X:

«60. Dizem‑se ser por si evidentes, aquelas proposições que, conhecidos os seus termos, são imediatamente conhecidas, assim como, conhecido o que é o todo e o que é a parte, imediatamente é conhecido que o todo é sempre maior do que a parte. Deste modo é também isto que dizemos: Deus existe. Ora, pelo nome de Deus, entendemos algo maior do que o qual não pode ser pensado. Ora isto é formado no intelecto por aquele que ouve e entende o nome de Deus, de modo que é necessário que Deus exista, pelo menos, no intelecto. E não pode existir apenas no intelecto. Na verdade, aquilo que existe no intelecto e na realidade, é maior do que aquilo que existe só no intelecto. A própria razão daquele nome demonstra que nada é maior do que Deus. Donde resta que Deus existir é evidente por si, como que manifesto pela própria significação do nome.» Sum.c.Gent. I, 10, n.60 (texto da Editora Marietti, reprod. em: Tomás de Aquino, Suma contra os Gentios, trad. de D. Odilão Moura, baseada na trad. de D. Ludgero Jaspers, e revista por Luís A. de Boni, Porto Alegre, co‑edição da Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Universidade de Caxias do Sul, Livraria Sulina Editora, 1990, p.33)

 

A mesma descrição de Proslogion c.II, em Suma Theologiae I, q.2, a.1:

«2. Além disso, dizem‑se ser evidentes por si, aquelas proposições que, conhecidos os termos, são imediatamente conhecidas, como o Filósofo considera os primeiros princípios da demonstração, no livro I dos Segundos Analíticos [72 b 18]: sabendo o que é o todo e o que é a parte, sabe‑se imediatamente que o todo é maior do que a sua parte. Ora, entendendo o que significa o nome Deus, obtém‑se imediatamente que Deus existe. Com efeito, por este nome é significado aquilo maior do que o qual não pode ser significado. É maior, porém, o que existe na realidade e no intelecto do que o que existe apenas no intelecto. Donde, por se entender este nome Deus, imediatamente existe no intelecto, segue‑se também que existe na realidade. Portanto, Deus existir é por si evidente.» Sum. Theol. I, q.2, a.1, n.2 (texto da EL, reprod. in BAC 77, Madrid, 1951, p.15. Trad. nossa).

 

Também a inferência de Proslogion c.III é fielmente descrita na Summa contra Gentiles I, c.X:

 

«61. Além disso, pode decerto ser pensado que algo exista que não possa ser pensado que não existe, o que é evidentemente maior do que aquilo que pode ser pensado que não existe. Assim, portanto, poderia ser pensado algo maior do que Deus, se ele próprio pudesse ser pensado não existir, o que é contra a razão do nome. Resta que é por si evidente que Deus existe.» Sum.c.Gent. I, 11, n.61.

 

As refutações de Proslogion II e III

 

Refutação de Proslogion c.II, em Summa contra Gentiles I, c.XI:

«67. Nem é necessário que, conhecida a significação do nome de Deus, seja imediatamente conhecido que Deus existe, como pretendia o primeiro argumento (60). Em primeiro lugar, porque não é evidente para todos, mesmo para aqueles que concedem que Deus existe, que Deus seja aquilo maior do que o qual não possa ser pensado, visto que muitos dos antigos disseram que Deus é este mundo. […]. Em segundo lugar, porque, mesmo que todos entendam, por este nome “Deus”, algo maior do que o qual não possa ser pensado, não será necessário que algo maior do que o qual não possa ser pensado exista na ordem das coisas. Com efeito, é necessário que do mesmo modo seja posta a coisa e a noção do nome. Mas do facto de ser concebido na mente aquilo que é proferido através deste nome “Deus”, não se segue que Deus exista, a não ser no intelecto. Donde, nem será necessário que aquilo maior do que o qual não pode ser pensado exista, a não ser no intelecto. E daqui não se segue que exista, na ordem das coisas, algo maior do que o qual não possa ser pensado. E assim nenhum inconveniente há para os que defendem que Deus não existe: de facto, não há inconveniente em poder pensar‑se algo maior do que qualquer dado quer na realidade quer no intelecto, a não ser para aquele que concede que algo maior do que o qual não possa ser pensado, existe na natureza das coisas.» Sum. c.Gent. I, 11, n.67.

 

A mesma contra‑argumentação, em Summa Theologiae I, q.2, a.1:

«Quanto ao segundo argumento, deve dizer‑se que talvez aquele que ouve este nome “Deus”, não entende que significa algo maior do que o qual não possa ser pensado, uma vez que alguns acreditaram que Deus é um corpo. Supondo que qualquer um entenda que por este nome “Deus” é significado isto que é dito, a saber, aquilo maior do que o qual não pode ser pensado, não se segue, por causa disso, que entenda que aquilo que é significado pelo nome exista na natureza das coisas, mas apenas na apreensão do intelecto. Nem se pode alegar que exista na realidade, a não ser que fosse concedido que exista na realidade algo maior do que o qual não possa ser pensado, o que não é concedido por aqueles que negam que Deus existe.» Sum. Theol. I, q.2, a.1, Ad secundum.

 

Refutação de Proslogion c.III, em Summa contra Gentiles I, c.XI:

«68. E também não é necessário, como propunha o segundo argumento (61), que pode pensar‑se algo maior do que Deus, se pode pensar‑se que Deus não existe. Na verdade, que possa pensar‑se que não existe, não procede de imperfeição ou incerteza do seu ser, pois o seu ser é para si evidentíssimo, mas da debilidade do nosso intelecto, que não o pode intuir por si próprio, mas sim a partir dos seus efeitos, e assim é conduzido raciocinando ao conhecimento do próprio ser.» Sum.c.Gent. I, 11, 68.

 

Outras formas da afirmação da existência de Deus como evidência imediata

 

«62. Além disso, devem ser evidentíssimas aquelas proposições nas quais o mesmo é predicado de si mesmo, como, por exemplo, homem é homem; ou aquelas cujos predicados estão incluídos nas definições dos sujeitos, como, por exemplo, homem é animal. Ora, em Deus, descobre‑se antes de mais, como se mostrará abaixo (c.XXII), que a sua existência é a sua essência, como se a mesma resposta fosse dada à questão: o que é?, e à questão: se existe? Assim, portanto, quando se diz “Deus existe”, o predicado ou é idêntico ao sujeito, ou, pelo menos, está incluído na definição do sujeito. E, assim, será evidente por si que Deus existe.» Sum.c.Gent. I, 10, 62.

 

Refutação: «69. Por isto também se dissolve o terceiro argumento (62). Na verdade, assim como para nós é evidente que o todo seja maior do que a sua parte, assim também para os que vêem a própria essência divina é evidentíssimo que Deus existe, uma vez que a sua essência é a sua existência. Mas, como não podemos ver a sua essência, atingimos o conhecimento da sua existência, não por ele mesmo, mas pelos seus efeitos.» Sum.c.Gent. I, 11, n.69.

 

 

A alternativa tomasiana ao argumento anselmiano

As cinco vias

 

Suma de Teologia I

«Questão 2

De Deus. Se Deus existe

Artigo 3

Se Deus existe

 

Quanto ao terceiro, procede-se assim. Parece que Deus não existe.

1. Porque se um dos contrários fosse infinito, ele destruiria totalmente o outro. Ora, neste nome “Deus”, entende‑se isto, a saber, que é um bem infinito. Portanto, se Deus existisse, nenhum mal se encontraria. Mas encontra‑se mal no mundo. Logo, Deus não existe.

2. Além disso, o que pode ser realizado por poucos princípios, não é feito por muitos. Ora parece que todas as coisas que aparecem no mundo podem ser realizadas por outros princípios, supondo que Deus não exista: porque as coisas que são naturais reduzem‑se ao princípio que é a natureza; e as coisas que são intencionais reduzem‑se ao princípio que é a razão humana ou a vontade. Por isso, nenhuma necessidade há de admitir que Deus existe.

Mas contra, há o que é dito em Êxodo 3, 14, a partir da pessoa de Deus: Eu sou quem sou.

Respondo dizendo que se pode provar que Deus existe por cinco vias. A primeira é a via mais manifesta e é tomada da parte do movimento. De facto, é certo e consta pelo sentido que algumas coisas são movidas neste mundo. Ora, tudo o que é movido, é movido por outro. De facto, nada é movido senão segundo o que está em potência em relação àquilo para o qual é movido; algo move, porém, segundo o que está em acto. Mover, com efeito, nada mais é do que conduzir algo da potência ao acto. No entanto, algo não pode passar da potência ao acto a não ser por algum ente em acto, assim como o quente em acto, de modo que o fogo faz a madeira, que é cálida em potência, ser quente em acto, e, por isso, move‑a e altera‑a. Não é, todavia, possível que a mesma coisa esteja simultaneamente em acto e em potência segundo o mesmo, mas só segundo acidentes diversos: aquilo que é quente em acto não pode, simultaneamente, ser quente em potência, mas é simultaneamente frio em potência. Logo, é impossível que, segundo o mesmo e do mesmo modo, algo seja movente e movido, ou que se mova a si mesmo. Logo, para tudo o que é movido, é necessário que seja movido por outro. Se, portanto, aquilo pelo qual é movido for movido, é necessário que o mesmo seja movido por outro, e este por outro. Não se pode aqui, porém, proceder até ao infinito, pois, nesse caso, não haveria um primeiro movente, e, por consequência, nem algum outro movente, porque os segundos moventes não movem a não ser pelo facto de serem movidos pelo primeiro movente, assim como o bastão não move a não ser pelo facto de ser movido pela mão. Logo, é necessário chegar a algum primeiro movente, que por nenhum outro é movido: e este, todos entendem ser Deus.

A segunda via provém da noção de causa eficiente. Encontramos, de facto, que há uma ordem de causas eficientes nos sensíveis. No entanto, não se encontra, nem é possível que algo seja causa eficiente de si mesmo, porque, nesse caso, seria anterior a si mesmo, o que é impossível. Por outro lado, não é possível que se proceda até ao infinito nas causas eficientes. Em todas as causas eficientes ordenadas, o primeiro é causa do médio e o médio é causa do último, quer os médios sejam muitos ou um apenas: removida a causa, é removido o efeito. Portanto, se não houvesse um primeiro nas causas eficientes, não haveria nem o último nem o médio. Mas se se proceder até ao infinito nas causas eficientes, não haverá uma causa primeira eficiente e, assim, não haverá nem efeitos últimos nem causas médias eficientes, o que é manifestamente falso. Logo, é necessário postular uma causa primeira eficiente, que todos denominam Deus.

A terceira via é tomada do possível e do necessário, e é a seguinte. Encontramos, de facto, entre as coisas, algumas que podem ser e não ser, como se encontram algumas que se geram e corrompem, e, por consequência, que podem ser e não ser. Impossível é, porém, que todas as coisas assim sejam sempre, porque aquilo que pode não ser, por vezes não é. Por isso, se todas as coisas podem não ser, por vezes nada existiu na realidade. Mas se isto é verdadeiro, também agora nada existiria, porque aquilo que não é não começa a ser senão por algo que é. Por isso, se nada fosse um ente, impossível seria que algo começasse a ser, e assim nada seria agora mesmo. Por conseguinte, nem todos os entes são possíveis, é preciso que algo seja necessário entre as coisas. Ora, tudo o que é necessário ou tem a causa da sua necessidade noutra coisa ou não tem. Não é, todavia, possível que se proceda até ao infinito nos necessários, que têm causa da sua necessidade, assim como nas causas eficientes, como ficou provado. Logo, é necessário postular algo que seja necessário por si, que não tenha a causa da sua necessidade noutra coisa, mas que seja a causa da necessidade dos outros [necessários]: que todos dizem ser Deus.

A quarta via é tomada dos graus que se encontram nas coisas. Encontra‑se, de facto, nas coisas algo mais e menos bom, e verdadeiro, e nobre, e assim outros similares. Mas mais e menos dizem‑se de diversos conforme se aproximam diversamente daquilo que é maximamente, assim como mais quente é o que mais se aproxima do maximamente quente. Há, por isso, algo que é veríssimo, e óptimo, e nobilíssimo, e, por consequência, maximamente ente. Na verdade, as coisas que são maximamente verdadeiras, são maximamente entes, como se diz no livro II da Metafísica [993 b 30]. O que se diz maximamente tal em algum género é causa de todas as coisas que são desse género, assim como o fogo, que é maximamente quente, é causa de todas as coisas quentes, como se diz no mesmo livro [993 b 25]. Logo, existe algo que é causa do ser para todos os entes, e da bondade, e de qualquer perfeição: e isso, dizemos que é Deus.

A quinta via é tomada da governação das coisas. De facto, vemos que algumas coisas, que carecem de conhecimento, como os corpos naturais, operam por causa de um fim, o que é manifesto porque sempre ou com maior frequência operam do mesmo modo, para atingirem aquilo que é óptimo. Donde, é patente que não é por acaso, mas por intenção, que atingem o fim. As coisas, porém, que não possuem conhecimento, não tendem para um fim a não ser dirigidas por algum cognoscente e inteligente, assim como a seta pelo lançador de setas. Logo, existe algo inteligente, pelo qual todas as coisas naturais são ordenadas para um fim: e isso, dizemos que é Deus.

Quanto ao primeiro argumento, portanto, deve dizer‑se que, assim como diz Agostinho no Enchiridion [ad Laurentium: PL 40, 236]: “Deus, como é sumamente bom, de modo nenhum permitiria que algum mal existisse nas suas obras, se não fosse omnipotente e bom, a fim de fazer o bem também do mal”. Pertence, pois, à bondade de Deus, permitir que os males existam e deles fazer sair bens.

Quanto ao segundo argumento, deve dizer‑se que, assim como a natureza opera por causa de determinado fim sob a direcção de um agente superior, é necessário que as coisas que são feitas pela natureza sejam também reconduzidas a Deus, assim como à primeira causa. De modo similar, também as coisas que são feitas com propósito devem ser reconduzidas a alguma causa mais alta, que não seja a razão e a vontade humana, porque estas são mutáveis e defectíveis. É necessário, porém, que todos os móveis e defectíveis sejam reconduzidos a algum primeiro princípio imóvel e por si necessário, assim como foi mostrado.» Summa Theologiae I, q.2, a.3 (texto da EL, reprod. in BAC 77, Madrid, 1951, pp.17-19).

 

 

 

Aula nº10 (18/11/23)

2.6. Duns Escoto por Anselmo. A questão do apriorismo da existência de Deus: Boaventura, Tomás de Aquino e Duns Escoto. A demonstrabilidade da existência a respeito de propriedades relativas e absolutas de Deus. As três vias de Escoto: causalidade eficiente, final e eminência. Da asseidade possível à asseidade actual do primeiro eficiente. O conceito de ente infinito e a coloratio do argumento anselmiano.

Sugestão de leituras, M. L. Xavier. A Questão da Existência de Deus. Uma disputa medieval : pp. 115-151.

Apresentação de trabalho em projecto:

Aline Maria Mendes Pereira Nesello (i), com arguição por Aissa Rendall de Carvalho

 

 

A questão do apriorismo da existência de Deus

 

Bem antes de Kant trazer à história da filosofia a sua concepção de apriorismo no conhecimento humano, os filósofos escolásticos medievais disputaram a questão do apriorismo do conhecimento da existência de Deus. A questão formulava-se então do seguinte modo: a existência de Deus é ou não por si evidente (per se nota)? Significa esta questão, perguntar se a existência de Deus é ou não objecto de uma evidência racional imediata e auto-suficiente, que prescinda, portanto, da mediação de qualquer conhecimento diverso da noção de Deus, seja o conhecimento do mundo sensível seja o auto-conhecimento do sujeito racional. Três grandes filósofos escolásticos medievais – Tomás de Aquino, Boaventura e João Duns Escoto – pronunciaram-se de forma assaz diferenciada sobre esta questão, e, em conformidade com as posições tomadas nesta questão, interpretaram também diversamente o argumento anselmiano do Proslogion.

 

Tomás de Aquino

Tomás de Aquino admite, por um lado, que a afirmação da existência seja em si uma evidência imediata e auto-suficiente, mas, por outro lado, assume que essa mesma afirmação não é para nós uma evidência imediata e auto‑suficiente. Por um lado, a metafísica permite aquela admissão, porquanto a essência de Deus se identifica com o acto puro de ser. Todavia, esta identidade entre essência e existência em Deus não é uma evidência imediata e auto‑suficiente, mas é deduzida da ordem analógica do ente, composto de essência e de existência. Com efeito, a teoria do conhecimento obriga, por outro lado, a rejeitar a evidência imediata e auto‑suficiente para nós da existência de Deus, porquanto, ao intelecto humano, estruturalmente ligado ao corpo através da alma de que faz parte, não é possível um conhecimento intelectual intuitivo da essência divina. Para o Doutor Angélico, só um conhecimento deste género proveria a uma evidência imediata e auto‑suficiente da existência de Deus para nós. Ainda que descreva o argumento anselmiano como um raciocínio, como vimos, Tomás de Aquino interpreta‑o como uma afirmação por si evidente da existência de Deus, o que, consequentemente, recusa.

 

Boaventura

Já para o Doutor Seráfico, só por uma imensa distracção poderá a mente humana não advertir da existência de Deus, que se manifesta pujantemente em toda a Criação. Mas essa falha de atenção não é impossível, nem sequer improvável, devido ao estado decaído em que o homem vive e conhece. Porventura pelas duas razões, pela positiva e pela negativa, isto é, pela exuberante manifestação de Deus na Criação e pelo estado decaído do homem, Boaventura não se poupa a inventariar as múltiplas vias possíveis do conhecimento humano da existência de Deus, agrupando-as, como vimos, em três principais: a via do conhecimento inato; a via do conhecimento analógico, através das criaturas; e a via da evidência imediata. A primeira e a segunda vias podem ser consideradas vias demonstrativas, uma vez que produzem evidência mediata e dependente de variadas premissas, a favor da existência de Deus. Já a terceira via pode ser considerada uma via não demonstrativa, anterior a todo o empenho demonstrativo, dado que inclui, entre as verdades em si mesmas certíssimas e evidentíssimas, a existência de Deus. Como assim? Como se tal verdade não fosse igualmente certíssima e evidentíssima para todos nós, Boaventura não deixa de nos dar uma explicação, que parte da teoria do conhecimento: a condição prévia do conhecimento de todas as coisas e o primeiro dado cognitivo da mente humana é o ser (esse), não o ser de qualquer ente particular, que inclui mistura de acto e potência, nem o ser analogicamente comum, que possui muito menos acto do que potência, mas, sim, o ser em acto, e este é o ser divino. O dado cognitivo mais primitivo da mente humana é, assim, um dado metafísico. É com vista a sublinhar este dado que, no âmbito da sua terceira via, Boaventura recupera elementos do argumento anselmiano do Proslogion.

 

Apriorismo kantiano e apriorismo escolástico

Retomando Kant, como padrão de análise do a priori e do a posteriori, a afirmação da existência de Deus é um juízo sintético, que não pode ser demonstrado nem a priori nem a posteriori. Antes de mais, trata-se de um juízo sintético, porque é uma afirmação de existência, e a existência não pode ser o predicado de um juízo analítico, porque é sempre um dado exterior aos predicados que perfazem o conceito de algo. Ora, este juízo sintético, que constitui a afirmação da existência de Deus, não pode ser demonstrado: nem a priori, por causa da existência, que não é cognoscível senão a posteriori; nem a posteriori, por causa do conceito de Deus, que excede todo o campo da experiência possível. A ideia puramente racional de Deus, como ente dos entes ou ente realíssimo, não pode ser concebida senão a priori (KrV B 635 e 657).

O apriorismo kantiano, pelo menos em metafísica, é estéril, ou seja, é puramente formal, não admitindo intuição intelectual alguma que dê acesso a conteúdos determinantes das ideias da razão pura. Estas não são senão formas superiormente unificadoras da experiência (KrV B 604). Já o apriorismo dos filósofos escolásticos medievais, isto é, a consideração de um conhecimento por si mesmo evidente, não era tão avesso à intuição intelectual. Para Tomás de Aquino, só haveria um conhecimento por si evidente da existência de Deus, caso houvesse uma intuição intelectual da essência divina. No entanto, a sua teoria abstraccionista do conhecimento fá-lo recusar uma tal intuição, e, desse modo, aproximar-se de Kant. Para Boaventura, há um conhecimento por si evidente do ser, que é condição comum do conhecimento de todo o ente, mas este conhecimento não é puramente formal, pois é conhecimento do ser em acto ou do acto puro de existir, que não pode dispensar alguma capacidade intuitiva do intelecto. Deste modo, Boaventura afasta‑se claramente do padrão kantiano. Urge agora examinar o caso de João Duns Escoto, no qual se centra doravante o presente estudo.

 

João Duns Escoto

O Doutor Subtil coloca também a questão de saber se a existência de Deus é ou não por si evidente, mas coloca-a de maneira singularmente diferente, perguntando se a existência de algum infinito é por si evidente, como seja a existência de Deus. Esta reformulação da questão conduz de facto a uma divisão em duas: por um lado, se a afirmação da existência de Deus é por si evidente; e, por outro lado, se a afirmação da existência de um infinito é por si evidente. Esta divisão da questão justifica-se pelas respostas opostas entre si que as duas partes recebem: por um lado, a afirmação da existência de Deus é uma proposição por si evidente, mas, por outro lado, a afirmação da existência de um infinito, como Deus, não é uma proposição por si evidente, de modo que requer ser demonstrada. Significa isto que a existência de Deus é objecto de um conhecimento a priori, mas não a existência de Deus, como infinito. Donde procede esta decisiva diferença?

Antes de mais, importa perceber como é que a afirmação da existência de Deus é uma proposição por si evidente. Conforme esclarece Duns Escoto, admite-se que uma proposição é por si evidente, se a sua verdade evidente não depende senão dos seus termos próprios. Estes, por sua vez, podem ser conhecidos a dois níveis: ao nível do definido, caso em que o termo é conhecido segundo o nome; e ao nível da definição, caso em que o termo é conhecido segundo o conceito significado. O definido está para a definição como o todo para as partes, de modo que o nome, que significa o termo definido, comporta de modo confuso aquilo que a definição traduz de modo distinto, isto é, o conceito da quididade. Na ordem do conhecimento, o definido tem prioridade sobre a definição, isto é, conhecemos primeiro o conceito confuso do termo definido segundo o nome, e só depois conhecemos o conceito distinto do mesmo termo, segundo a definição. De acordo com esta ordem de prioridades, pode, pois, algo ser por si evidente (per se notum), segundo o definido significado pelo nome, isto é, segundo um conceito ainda confuso, antes de ser por si evidente segundo a definição, isto é, segundo o conceito distinto por ela significado. O caso de Deus não foge a esta regra: pode ser algo por si evidente, ao nível do definido, isto é, do conceito confuso significado pelo nome, antes de ser algo por si evidente, ao nível da definição, isto é, do conceito distinto da essência divina, significado pela definição. Mas que conceito por si evidente de Deus, pode ser esse, que inclua ainda confusamente aquilo que a definição contém distintamente? É um conceito definido segundo as noções maximamente comuns, ou transcendentais, que são convertíveis com o ente, como o uno, o verdadeiro e o bem, e que convêm ao Criador e à criatura. O conceito confuso de Deus é, assim, um conceito ainda muito indeterminado de Deus, apenas caracterizado por noções generalíssimas, comuns a todos os entes, e ainda por nada de próprio da essência divina.

É, no entanto, este conceito indeterminado de Deus, que é significado pelo nome “Deus”, na proposição “Deus existe”, sem que tal indeterminação obste a que esta proposição seja por si evidente. Pelo contrário, é devido a tal indeterminação que esta proposição é por si evidente, pois os seus termos não são concebidos senão segundo noções comuns e primitivas do intelecto, isto é, segundo noções a priori: Deus é concebido apenas como ente, com as propriedades convertíveis com o ente; e a própria existência, isto é, o acto de ser, é atribuída ainda sem a determinação de necessidade, própria da existência divina. Ora, concebendo Deus como ente, nada mais evidente do que atribuir-lhe o ser, pois todo o ente é segundo alguma modalidade. A afirmação da existência de Deus é uma proposição por si evidente, com base apenas num conceito indeterminado de Deus, como ente, e no conceito comum de ser. Temos, assim, uma parte da resposta de João Duns Escoto à questão por ele formulada sobre o apriorismo do conhecimento da existência de Deus.

Há, porém, a outra parte da resposta do Doutor Subtil, que diverge da primeira a ponto de negar o apriorismo deste conhecimento. As duas partes da resposta escotista são as seguintes: por um lado, a afirmação da existência de Deus é por si evidente, com base em conceitos comuns e, portanto, indeterminados de Deus; mas, por outro lado, a afirmação da existência de Deus já não é por si evidente, com base em conceitos mais precisos ou propriamente determinados de Deus. As duas partes da resposta escotista dependem, assim, da distinção entre conceitos confusos e conceitos distintos, isto é, entre conceitos indeterminados e conceitos determinados acerca de Deus.

Sintetizando: por um lado, a existência de Deus é um conhecimento a priori (per se notum), com base em conceitos apenas confusos de Deus, isto é, concebido segundo as noções comuns mais primitivas do intelecto; por outro lado, a existência de Deus, com base em conceitos distintos ou determinados de Deus, como o conceito de ente infinito, não é um conhecimento a priori, mas é um conhecimento demonstrável por razões mediadoras, entre as quais é porventura impossível dispensar razões a posteriori, como seja a noção de finito, mediadora no conhecimento do infinito.

 

JOÃO DUNS ESCOTO

A via da causalidade eficiente 

Ordinatio I, d.2,

«Parte 1

Sobre a existência de Deus e a sua unidade

Questão 1

Se há entre os entes algo infinito existente em acto

 

39. Quanto à primeira questão procedo assim, pois acerca do ente infinito, não pode ser demonstrado que existe por uma demonstração propter quid relativamente a nós, embora, a partir da natureza dos termos, a proposição seja demonstrável propter quid. Mas, relativamente a nós, a proposição é bem demonstrável por uma demonstração a partir das criaturas. Ora as propriedades do ente infinito relativas às criaturas dispõem-se mais imediatamente para aquilo que é intermédio na demonstração do que as propriedades absolutas, de modo que acerca daquelas propriedades relativas pode ser concluído mais imediatamente que existem por aquilo que é intermédio em tal demonstração do que acerca das propriedades absolutas, pois imediatamente se segue da existência de um relativo a existência do seu correlativo: portanto, primeiro afirmarei a existência a respeito de propriedades relativas do ente infinito e, em segundo lugar, afirmarei a existência a respeito do ente infinito, porque aquelas propriedades relativas só competem ao ente infinito. E assim haverá dois artigos principais.

40. Quanto ao primeiro digo: as propriedades do ente infinito relativas às criaturas são propriedades ou de causalidade ou de eminência; de dupla causalidade, ou eficiente ou final. O que se aduz acerca da causa exemplar não é outro género de causa relativamente à eficiente, porque então haveria cinco géneros de causas; a causa exemplar é um eficiente, porque é um agente pelo intelecto, distinto do agente por natureza, […].

41. No primeiro artigo principal mostrarei principalmente três conclusões. Primeiro, mostrarei que algo eficaz existe entre os entes, que é simplesmente primeiro segundo a eficiência, e algo existe que também é simplesmente primeiro segundo a noção de fim, e algo que é simplesmente primeiro segundo a eminência. Em segundo lugar, mostro que aquilo que é primeiro segundo uma noção de primazia é o mesmo primeiro segundo as outras primazias. E, em terceiro lugar, mostro que aquela tríplice primazia compete a uma só natureza, e não a múltiplas naturezas diferentes em espécie ou quiditativamente. E, assim, no primeiro artigo principal haverá três artigos parciais.

42. O primeiro daqueles artigos inclui três conclusões principais, pela tríplice primazia. Qualquer daquelas conclusões possui três das quais depende: a primeira é que algo é primeiro; a segunda é que isso é incausável e a terceira é que isso existe em acto nos entes. Assim, no primeiro artigo, há nove conclusões, mas três principais.

43. A primeira conclusão destas nove é esta: que algo eficiente é simplesmente primeiro de modo que nem é efectível nem é eficiente por si em virtude de outro. Prova: porque algum ente é efectível. Portanto, ou é por si ou por nada ou por algum outro. Não é por nada, porque de coisa nenhuma é causa aquilo que nada é; nem é por si, porque nenhuma coisa existe que se faça ou gere a si mesma (A Trindade I, 1); portanto, é por outro. Seja esse outro a. Se a é primeiro, assim exposto, obtenho o propósito; se não é primeiro, então é um eficiente posterior, porque efectível por outro ou eficiente em virtude de outro, porque se for negada a negação, obtém-se a afirmação. Conceda-se esse outro e seja b, acerca do qual se argumenta assim como se argumentou acerca de a, e assim ou se procede até ao infinito, em que qualquer termo será segundo relativamente ao anterior, ou pára-se em algum que não tem anterior. A infinitude, porém, é impossível ao ascender; portanto, a primazia é necessária, pois aquele que não tem anterior a nenhum posterior a si é posterior, uma vez que haver círculo nas causas é inconveniente.

44. Contra esta razão, objecta-se duplamente: primeiro, que, segundo os filosofantes, a infinitude é possível ao ascender, pois dão o exemplo dos geradores infinitos, em que nenhum é primeiro mas qualquer um é segundo, e, no entanto, isto é por eles admitido sem círculo.

45. Em segundo lugar, parece que procede a partir dos contingentes e assim não há demonstração. O antecedente prova-se, porque as premissas tomam o ser acerca de algum causado, e todo o causado é contingentemente.

46. Para refutar a primeira objecção, digo que os filósofos não consideraram a infinitude possível nas causas essencialmente ordenadas, mas apenas nas acidentalmente ordenadas, como é manifesto através de Avicena, em Metafísica VI, cap. 5, onde se fala da infinitude dos indivíduos na espécie.

47. E para melhor mostrar o propósito, deve saber-se o que são causas essencialmente e acidentalmente ordenadas. Neste ponto, deve notar-se que uma coisa é falar de causas por si e por acidente e outra coisa é falar de causas por si ou essencialmente e acidentalmente ordenadas. No primeiro caso, há apenas comparação de um com um, a saber, da causa com o causado: é causa por si, aquela que causa por natureza própria e não por algum seu acidente; inversamente, é a causa por acidente. No segundo caso, há comparação entre duas causas, enquanto há um causado por elas.

48. E as causas por si ou essencialmente ordenadas diferem das causas por acidente ou acidentalmente ordenadas em três aspectos.

49. A primeira diferença é que, nas causas por si ordenadas, a segunda, ao causar, depende da primeira; nas causas ordenadas por acidente, não, embora dependa no ser ou em algum outro aspecto.

50. A segunda diferença é que, nas causas por si ordenadas, a causalidade é de outra índole e de outra ordem, porque a superior é mais perfeita; nas causas acidentalmente ordenadas, não. E esta diferença segue-se da primeira, pois nenhuma causa depende essencialmente de uma causa da mesma ordem ao causar, porque na produção causal de algo é suficiente uma causa de uma índole.

51. A terceira é que todas as causas essencialmente e por si ordenadas são requeridas simultaneamente para causar, pois, de contrário, alguma causalidade essencial e por si faltaria ao efeito; nas causas acidentalmente ordenadas, não é assim, porque não se requer a simultaneidade delas no causar.

52. Por estas diferenças mostra-se o propósito, a saber, que a infinitude das causas essencialmente ordenadas é impossível. […].

53. Prova destas proposições.

Primeiro a, a saber, que a infinitude das causas essencialmente ordenadas é impossível. Prova-se, antes de mais, porque o universo dos causados essencialmente ordenados é por alguma causa que não pertence ao universo, pois, caso pertencesse, seria causa de si mesma. Todo o universo dos dependentes depende, mas de nenhum deste universo.

Também porque infinitas causas estariam simultaneamente em acto, isto é, as essencialmente ordenadas, pela terceira diferença acima, o que nenhum filósofo admite.

Também, em terceiro lugar, porque anterior é o mais próximo do princípio, Metafísica V [II, 994 a 11-19]; portanto, onde nenhum princípio há, nada é essencialmente anterior.

Também, em quarto lugar, porque a causa superior é mais perfeita ao causar, pela segunda diferença; portanto, o superior ao infinito é o mais perfeito ao infinito, e, assim, de infinita perfeição ao causar, e, por consequência, não causando em virtude de outro, porque qualquer causa assim causa imperfeitamente, porque é dependente de outra ao causar.

Também, em quinto lugar, porque o que causa nenhuma imperfeição implica necessariamente; portanto, pode existir em algo sem imperfeição. Mas se nenhuma causa existe sem dependência de algo anterior, em nenhum existe sem imperfeição. Portanto, a causalidade eficiente independente pode pertencer a alguma natureza, e ela é simplesmente primeira; portanto, a causalidade eficiente simplesmente primeira é possível. Isto é suficiente, porque abaixo [n.58] conclui-se daqui que tal eficiente primeiro, se é possível, é real. E, assim, por cinco razões, a é evidente.» Ordinatio I, d.2, p.1, q.1, nn.39-53 (Ed. Vat. II, pp.148-159).

 

Da asseidade possível à asseidade actual do primeiro eficiente

 

Ordinatio I:

«A terceira conclusão acerca do primeiro eficiente é esta: um primeiro eficiente é existente em acto e uma natureza verdadeiramente existente actualmente é assim eficiente. Prova disto: aquilo a cuja noção repugna ser por outro, se pode ser, pode ser por si; mas à noção do primeiro eficiente simplesmente repugna ser por outro, assim como é evidente a partir da segunda conclusão [n.57: o primeiro eficiente é incausável]; de modo similar, o mesmo [primeiro eficiente] pode ser, como é evidente a partir da primeira [conclusão, n.43: algum eficiente é simplesmente primeiro], onde foi colocada a quinta prova a favor de a [a: a infinitude das causas essencialmente ordenadas é impossível], que menos parece concluir e, no entanto, conclui isto [quinta prova, n.53: Em quinto lugar, porque o eficiente nenhuma imperfeição implica necessariamente; logo, pode ser em algo sem imperfeição. Mas se nenhuma causa é sem dependência relativamente a algo anterior, em nenhum é sem imperfeição. Portanto, a eficiência independente pode ser inerente a alguma natureza, e ela é simplesmente primeira; portanto, a eficiência simplesmente primeira é possível]. Outras provas do mesmo a podem ser tratadas a respeito da existência, que esta terceira conclusão propõe, e são respeitantes a contingentes, porém, manifestos; ou são aceites a respeito da natureza, da quididade e da possibilidade, e são com base em necessários. Portanto, o eficiente simplesmente primeiro pode ser por si. O que não é por si não pode ser por si, porque então o não ente produziria algo para ser, o que é impossível, e, além disso, aquilo causar-se-ia a si e, assim, não seria de todo incausável.» Ord. I, d.2, p.1, q.1, n.58 (Ed. Vat. II, pp.164-165).

 

Tractatus de Primo Principio:

«33. Quarta conclusão: o eficiente simplesmente primeiro é existente em acto, e uma natureza existente actualmente é assim eficiente. – Prova-se: aquilo a cuja noção repugna poder ser por outro, se pode ser, pode ser por si; à noção do primeiro eficiente simplesmente repugna poder ser por outro, a partir da terceira [conclusão: o primeiro eficiente é incausável]; e pode ser, a partir da segunda [conclusão: algum eficiente é simplesmente primeiro]; e aí até a quinta prova de A [a infinitude das causas essencialmente ordenadas é impossível], que menos parece concluir, conclui isto [quinta prova, n.29: Em quinto lugar, porque o eficiente nenhuma imperfeição implica necessariamente, como é evidente na oitava proposição do segundo capítulo; por isso, pode ser em alguma natureza sem imperfeição. Mas se em nenhuma é sem dependência de um anterior, em nenhuma é sem imperfeição. Por isso, a eficiência independente pode ser inerente a alguma natureza; ela é simplesmente primeira; portanto, a eficiência simplesmente primeira é possível]. Outras [provas] podem ser tratadas a respeito da existência, e são respeitantes a contingentes, porém, manifestos; ou a respeito da natureza e da quididade e da possibilidade, e são com base em necessários; por isso, o eficiente simplesmente primeiro pode ser por si. O que não é por si não pode ser por si, porque então o não ente produziria algo para ser, o que é impossível, e, além disso, aquilo causar-se-ia a si e, assim, não seria de todo incausável.»Tractatus de Primo Principio (TPP), c.3, n.33 (Ed. Kluxen, BAC 503, Madrid, 1989, pp.82, 84-86).

  

O conceito de ente infinito

Ordinatio I, d.2,

«Parte 1

Sobre a existência de Deus e a sua unidade

Questão 1

Se há entre os entes algo infinito existente em acto

 

131. Em quarto lugar, mostra-se o propósito por via da eminência, e argumento assim: com o eminentíssimo é incompossível algo ser mais perfeito, como antes se tornou evidente [n.67]; com o finito, porém, não é incompossível algo ser mais perfeito; por isso, etc.

132. A menor prova-se, porque o infinito não repugna ao ente; mas maior do que todo o finito, é o infinito. Para isto, argumenta-se de outro modo, e é o mesmo: aquilo a que não repugna ser infinito intensivamente, não é sumamente perfeito a não ser que seja infinito, porque se é finito pode ser excedido e superado em excelência, porque não lhe repugna ser infinito; ao ente não repugna a infinidade; logo, o ente perfeitíssimo é infinito. A menor deste [raciocínio], que se aceita no argumento anterior, não parece poder ser mostrada a priori, pois assim como os contraditórios se contradizem a partir das suas noções próprias, nem isto pode ser provado por algo mais manifesto, assim também os não repugnantes não se repugnam a partir das suas noções próprias, nem parece que isso se possa mostrar senão explicando as respectivas noções. O ente por nada mais conhecido se explica; o infinito, entendemo-lo através do finito (geralmente exponho isto assim: infinito é aquilo que segundo nenhuma disposição finita precisamente excede algum finito dado, mas excede até para além de toda a disposição finita assinalável [Aristóteles, Física III, 207 a 7-8]).

133. Assim, no entanto, se persuade do propósito: assim como deve ser considerado possível o que quer que seja cuja impossibilidade não aparece, assim também é compossível aquilo cuja incompossibilidade não aparece; aqui nenhuma incompossibilidade aparece, porque a finitude não pertence à noção de ente, nem aparece, em virtude da noção de ente, que seja uma propriedade convertível com o ente. Uma destas [cláusulas] é requerida para a repugnância referida; de facto, quanto às primeiras propriedades do ente e convertíveis [com ele], parece que é suficientemente conhecido que lhe são inerentes.

134. Também assim se persuade: o infinito a seu modo não repugna à quantidade, isto é, recebendo parte após parte; portanto, nem o infinito a seu modo repugna à entidade, isto é, sendo simultaneamente em perfeição.

135. Também, se a quantidade de força é simplesmente mais perfeita do que a quantidade de mole, por que será o infinito possível na mole e não na força? Se é possível, existe em acto, como é evidente a partir da terceira conclusão acima, acerca da primazia eficiente, e também abaixo será provado.

136. Também, porque o intelecto, cujo objecto é o ente, nenhuma repugnância encontra entendendo algum infinito, antes parece um perfeitíssimo inteligível. É de admirar, aliás, se nenhum intelecto torna patente tal contradição acerca do seu primeiro objecto, quando a discórdia no som tão facilmente ofende o ouvido: se, de facto, o desconveniente perturba logo que é percebido, por que razão nenhum intelecto naturalmente se desvia do inteligível infinito, assim como de um não conveniente, que destrói o seu primeiro objecto.» Ordinatio I, d.2, p.1, q.1, nn.131-136 (IOANNIS DUNS SCOTI Opera Omnia II, Civitas Vaticana, 1950, pp. 206-208).

 

A coloratio do argumento anselmiano

 

Ordinatio I:

«137. Por isso, pode ser interpretado aquele argumento de Anselmo acerca do supremo bem pensável, no Proslogion, e assim deve ser entendida a sua descrição: Deus é conhecido sem contradição, maior do que o qual não pode ser pensado sem contradição. E é evidente que deve ser acrescentado “sem contradição”, pois aquilo em cujo conhecimento ou pensamento se inclui contradição diz-se não pensável, porque então haveria dois pensáveis opostos, que de modo nenhum constituiriam um só pensável, porque nenhum deles determinaria o outro.

138. O referido supremo pensável, sem contradição, pode ser na realidade. Isto prova-se primeiro do ser quiditativo, porque em tal pensável se aquieta sumamente o intelecto; logo, nesse mesmo pensável está a noção do primeiro objecto do intelecto, a saber, do ente, e isto em grau sumo. – E então argumenta-se, para além disso, que esse pensável é, falando do ser de existência: o sumamente pensável não é apenas no intelecto pensante, porque então poderia ser, enquanto pensável possível, e não poderia ser, porque repugna à sua noção ser por alguma causa, como é primeiro evidente na segunda conclusão da via da eficiência [n.57]; logo, maior pensável é o que é na realidade do que o que é apenas no intelecto. Isto, porém, não deve ser entendido como se fosse o mesmo a ser pensado, porque seria um maior pensável se existisse, mas, comparativamente a tudo o que existe no intelecto apenas, é maior algo que existe.» Ordinatio I, d.2, p.1, q.1, nn.137-138 (IOANNIS DUNS SCOTI Opera Omnia II, Civitas Vaticana, 1950, pp. 208-210).

 

Tractatus de Primo Principio:

«Por isso, pode ser interpretado aquele argumento de Anselmo acerca do supremo pensável. A sua descrição deve ser entendida assim: Deus é pensado sem contradição, maior do que o qual não pode ser pensado sem contradição. Na verdade, aquilo em cujo pensamento se inclui contradição, diz-se não pensável, pois, nesse caso, haveria então dois pensáveis, que de modo nenhum constituiriam um pensável, porque nenhum deles determinaria o outro. Segue-se que tal sumamente pensável referido é na realidade, pelo qual Deus é descrito, primeiro acerca do ser quiditativo: porque em tal supremo pensável se aquieta sumamente o intelecto; por isso, está nele a noção do primeiro objecto do intelecto, a saber, do ente, e em grau sumo. Para além disso, acerca do ser de existência: o supremo pensável não é apenas no intelecto pensante, porque então poderia ser, enquanto pensável, e não poderia ser, porque à sua noção repugna ser por outro, segundo a terceira e a quarta [conclusão] do [capítulo] terceiro. Por isso, maior pensável é aquilo que é na realidade do que aquilo que é no intelecto apenas; o que não deve ser entendido como se fosse o mesmo a ser pensado, pelo que seria um maior pensável, se existisse, mas, comparativamente a tudo o que é apenas no intelecto, é maior algum pensável que existe.» TPP, c.4, n.79 (BAC 503, p.152).

 

 

 

Aula nº11 (25/11/23)

2.7. Guilherme de Ockham por Anselmo. O conhecimento de Deus em conceito. O conceito de supremo. A recuperação da ratio Anselmi. A via da conservação.

Sugestão de leituras, M. L. Xavier. A Questão da Existência de Deus. Uma disputa medieval : pp.153-208.

Apresentação de trabalho em projecto:

Joseph da Silva (b-c), com arguição por Geane Vidal de Negreiros Lima e Breno Gutierrez Guedes.

 

 

GUILHERME DE OCKHAM

 

O conhecimento de Deus em conceito

 

A fim de compreendermos a natureza dos conceitos que formamos acerca de Deus, tome-se a questão da cognoscibilidade de Deus – «se a essência divina é por nós cognoscível» Utrum divina essentia sit a nobis cognoscibilis» In Librum Primum Sententiarum Ordinatio I, d.3, q.2 (Eds. Stephanus Brown e Gedeone Gál, GUILLELMI DE OCKHAM Opera Theologica II, St. Bonaventure, N. Y., 1970, p.393)] –, a propósito da qual, Guilherme de Ockham introduz alguns elementos da sua teoria geral do conhecimento.

 

Conhecimento de algo em si e em conceito

 

Neste âmbito geral, há desde logo dois possíveis modos de conhecimento a distinguir: ou algo pode ser conhecido em si ou algo pode ser conhecido num conceito próprio. Guilherme de Ockham introduz e esclarece esta distinção, após ter debatido a posição de Henrique de Gand a favor de um conhecimento analógico de Deus, na questão da cognoscibilidade da essência divina. Segundo o filósofo de Ockham, algo pode ser conhecido em si, quando nada para além da sua natureza determina o acto de inteligência em que é conhecido. O modo de conhecimento de algo em si é o modo exclusivo do conhecimento de algo, no qual nada de outro ou de estranho se mistura com a natureza desse algo. Na realidade, este modo de conhecimento não se aplica senão a uma parte restrita dos cognoscíveis, a saber, os acidentes sensíveis, como o calor, cuja natureza determina exclusiva e imediatamente o seu conhecimento intuitivo. Mas o calor é um acidente do fogo, e o conhecimento do fogo, enquanto substância, já não é o conhecimento de algo em si; é o conhecimento de algo num conceito próprio, caso em que o conhecimento da existência (quia est) precede o da quididade (quid est) [Cf. Ord. I, d.3, q.2 (Brown e Gál: p.401, 15-23, p.402, 1-16)].

Importa ainda saber se as substâncias sensíveis, como o fogo, são cognoscíveis em conceitos próprios e simples. Em Quodlibet V, questão 7 – Se pode haver vários conceitos próprios acerca de Deus –, 4ª conclusão, obtemos a seguinte resposta:

 

«Em quarto lugar, digo que o nosso intelecto, acerca de nenhuma criatura, pode ter um tal conceito simples e próprio sem visão nem com visão; e isto, porque qualquer conhecimento assim ou conceito igualmente é uma semelhança e representa todos os indivíduos simílimos, de modo que não é um conceito mais próprio de um do que de outro.» Quodlibet V, q.7, c.4 (Quodlibeta Septem, ed. Joseph C. Wey, GUILLELMI DE OCKHAM Opera Theologica IX, St. Bonaventure, N. Y., 1980, p.506, 63-68).

 

Guilherme de Ockham responde assim negativamente, porque, se as substâncias sensíveis fossem cognoscíveis em conceitos próprios e simples, teria de haver um conceito para cada substância individual, o que não acontece, uma vez que os conceitos simples que temos das substâncias sensíveis não são particulares, mas são comuns, como são os conceitos genéricos e específicos. Por conseguinte, o conhecimento de algo em conceito próprio não se dá também sem restrições, porquanto não é de facto um modo de conhecimento de algo em conceito próprio e simples, mas apenas um modo de conhecimento de algo em conceito próprio e compósito.

Se tal é o caso das substâncias sensíveis, tal é a fortiori o caso de Deus, que não é uma substância sensível, e, portanto, não é senão ainda mais indirectamente cognoscível. Elimine-se, portanto, desde logo a possibilidade de um conhecimento de Deus em si por nós, porque Deus não é por nós cognoscível como um acidente sensível. Além disso, Deus não é por nós intuitivamente cognoscível a partir de uma experiência intuitiva dos sensíveis. Deus só é por nós abstractivamente cognoscível a partir dessa experiência, do que não resulta um conhecimento de Deus em si, mas sim um conhecimento de Deus em conceito.

 

Ordinatio I, d.3

«Questão 2

Se a essência divina é por nós cognoscível

 

Digo, por isso, de outra forma, relativamente à questão, que uma coisa pode ser conhecida em si, de modo que nada de outro, nem distinto pela razão nem distinto a partir da natureza da coisa, determine o acto de inteligir a não ser ela própria, e isto quer seja conhecida abstractivamente quer intuitivamente. De outro modo pode algo ser inteligido não em si mas em algum conceito que lhe seja próprio, e isto é maximamente verdadeiro quando se conhece que aquele conceito se verifica acerca de algum ente. E assim deve ser entendido o que disse o Filósofo, em Segundos Analíticos II [93 a 16-20], onde pretende que, por vezes, há simultaneamente conhecimento de ‘que é’ e de ‘o que é’, e, outras vezes, conhece-se antes ‘que é’ e depois ‘o que é’; de facto, quando uma coisa é conhecida em si, simultaneamente é conhecido ‘que é’ e ‘o que é’, porque a própria coisa não pode ser conhecida a não ser que a própria quididade ou, pelo menos, alguma parte da quididade seja em si conhecida. Acerca disto, porém, dissertar-se-á noutro lugar. Quando, por outro lado, uma coisa apenas é conhecida em algum conceito que lhe seja próprio, primeiro é conhecido ‘que é’ e depois ‘o que é’, ou seja, antes que a quididade, ou qualquer parte da quididade, ou qualquer elemento simples que lhe seja próprio, seja conhecido por um conhecimento que lhe seja próprio, ou equivalente, assim como, ao ver o fogo, conhece-se que existe fogo e o que é o fogo; e isto, se o fogo fosse conhecido em si, mas de facto não é conhecido em si senão o acidente do fogo; quanto ao próprio calor, conhece-se simultaneamente que existe e o que é. E tal é o caso de todos os acidentes que determinam imediatamente o acto de inteligir; mas acerca das outras coisas que não são assim conhecidas, conhece-se primeiro que existe e depois o que é, assim como primeiro se conhece que algo se interpõe entre o sol e a lua e depois o que se interpõe.» In Librum Primum Sententiarum Ordinatio I, d.3, q.2 (Eds. Stephanus Brown e Gedeone Gál, GUILLELMI DE OCKHAM Opera Theologica II, St. Bonaventure, N. Y., 1970, p.401, 15-23, p.402, 1-16).

 

«Por isso digo, relativamente à questão, que nem a essência divina, nem a quididade divina, nem algo intrínseco a Deus, nem algo que é realmente Deus pode ser conhecido em si por nós, de modo que nada de diferente de Deus concorra na noção do objecto.» Ordinatio I, d.3, q.2 (Brown e Gál: p.402, 17-20).

 

«Em segundo lugar, digo que a essência divina ou a quididade divina pode ser conhecida por nós em algum conceito que seja próprio, mas compósito, e isto num conceito cujas partes são abstraíveis naturalmente das coisas.» Ord. I, d.3, q.2 (Brown e Gál: p.402, ll.20-22, p.403, 1).

 

«O segundo é evidente, porque, assim como a criatura pode ser conhecida em algum conceito comum e simples, assim também Deus, porque de nenhum outro modo seria por nós cognoscível. O caso é que, quando há muitos conceitos comuns que têm um mesmo contido, todos esses conceitos comuns simultaneamente aceites constituem um conceito próprio desse mesmo contido, pois, pelo facto de serem distintos conceitos comuns, é preciso que algo esteja incluído em cada um, que não esteja incluído em nenhum dos outros: por isso, todos aqueles conceitos comuns, simultaneamente aceites, a nenhum outro podem convir. O caso é que há muitos conceitos simples naturalmente abstraíveis, dos quais qualquer um é comum a Deus e a algum outro, pelo que todos esses conceitos, simultaneamente aceites, constituem um conceito próprio de Deus, e, assim, na medida em que pode ser conhecido que esse conceito se adequa a algo, Deus é conhecido nesse conceito. Por exemplo, dos entes pode ser abstraído o conceito de ente, que é comum a Deus e a todos os outros entes; similarmente, pode ser abstraído o conceito de sabedoria, que é precisamente comum à sabedoria incriada e à sabedoria criada; similarmente, pode ser abstraído o conceito de bondade, que é precisamente comum à bondade divina e à bondade criada; e isto na medida em que a bondade se distingue da sabedoria, e todos estes conceitos simultaneamente não poderão adequar-se senão só a Deus, pelo que, através do exposto, nenhuma sabedoria criada é bondade criada nem inversamente. E, assim, uma vez que se pode concluir que algum ente é bondade e sabedoria e outras determinações conceptuais, que se chamam ‘atributos’, segue-se que Deus é conhecido deste modo num conceito compósito que lhe é próprio. E isto não é outra coisa senão abstrair das criaturas muitos conceitos comuns a Deus e às criaturas, e concluir em particular, acerca de um conceito simples, comum a si e aos outros, um conceito compósito próprio de Deus, assim como acontece abstrair o conceito de ente, o conceito de bondade, de sabedoria, de caridade e de outros, e acontece concluir, acerca do ente tomado em particular, que é bondade, sabedoria, dilecção, justiça, etc.; e isto é conhecer Deus num conceito compósito que lhe é próprio. E, no entanto, Deus em si não é conhecido, porque algo outro relativamente a Deus é aqui conhecido, porque todos os termos desta proposição ‘algum ente é sabedoria’, ‘justiça’, ‘caridade’, etc., são alguns conceitos entre os quais nenhum é realmente Deus, e, no entanto, todos estes termos são conhecidos, ou algo diferente de Deus por eles conhecido, pelo que a própria proposição é conhecida. E o que se dá nesta proposição, dá-se também em todas as outras que são possíveis para nós.» Ord. I, d.3, q.2 (Brown e Gál: p.403, 17-24; p.404, 1-26; p.405, 1-4).

 

Quodlibet V

Questão 7

Se pode haver vários conceitos próprios acerca de Deus

Conclusão 1

 

Relativamente a esta questão, digo que, acerca de Deus, não pode haver múltiplos conceitos próprios e convertíveis com ele, um e outro dos quais seja absoluto não conotativo, afirmativo não negativo, simples não compósito. Pelo primeiro são excluídos os seguintes conceitos: ‘causa primeira’, ‘criador’, ‘governador’, ‘glorificador’. Pelo segundo são excluídos os seguintes: ‘incorruptível’, ‘imortal’, ‘infinito’. Pelo terceiro são excluídos os seguintes: ‘ente infinito’, ‘bem supremo’, ‘acto puro’. Mas, com todas estas condições, não pode alguém ter dois conceitos próprios de Deus e quiditativos, nem um quiditativo e outro parónimo. E falo acerca do conceito que é um conhecimento abstractivo.» Quodlibet V, q.7, c.1 (Quodlibeta Septem, ed. Joseph C. Wey, GUILLELMI DE OCKHAM Opera Theologica IX, St. Bonaventure, N. Y., 1980, p. 504, 12-22).

 

O conceito de supremo

 

«A quarta dúvida é que parece que Deus pode ser conhecido em algum conceito simples que lhe seja próprio, e que não seja conotativo nem negativo, como Deus ser supremo, e supremo não é conotativo nem negativo.» Ord. I, d.3, q.2 (Brown e Gál: p.408, 7-10).

«Quanto à quarta, digo que ‘supremo’ diz um conceito conotativo ou um negativo, ou, de forma equivalente, diz ambos, porque ‘supremo’ é algo que é mais nobre do que os outros, ou que não tem outro mais nobre do que ele próprio.» Ord. I, d.3, q.2 (Brown e Gál: p.416, 7-10).

 

A recuperação da ratio Anselmi

 

Guilherme interroga-se acerca do valor probatório da ratio Anselmi, respeitando desde logo a formulação perifrástica do nome divino de Proslogion c.II: «aquilo maior do que o qual não pode ser pensado» [Quodlibet VII, q.15: «Se pela via da eminência pode ser evidentemente provado que Deus seja infinito intensivamente» (Utrum per viam eminentiae possit evidenter probari quod Deus sit infinitus intensive) (Wey: p.760, ll.139-141)].

Vejamos como responde:

 

«E se dizes: o que é que então prova aquele argumento de Anselmo (illa ratio Anselmi), Proslogion, cap. 2, onde se procura mostrar que aquilo maior do que o qual não pode ser pensado existe na realidade (ubi nititur ostendere quod illud quo maius cogitari non potest est in re)?

Respondo: algo ser aquilo maior do que o qual não pode ser pensado pode ser entendido duplamente: de um modo, que nada que pode ser pensado seja maior de facto (de facto); de outro modo, que não pode ser pensado algo que, se existisse, seria maior. Entendendo do primeiro modo, prova bem o argumento de Anselmo. Assim formada [a inferência] ‘nada que não existe na realidade é maior de facto (de facto) do que o que existe na realidade, por isso aquilo maior do que o qual não pode ser pensado existe na realidade’, [esta consequência] segue-se bem, supondo que nas coisas existentes não haja um processo até ao infinito de maior em maior. E, além disso, se aquilo maior do que o qual não pode ser pensado existe na realidade, como o máximo dos pensados é Deus segundo todos, segue-se que Deus existe na realidade.» Quodlibet VII, q.15 (Wey: pp.760-761, 139-152).

 

A via da conservação

 

Em alternativa à via escotista da causalidade eficiente, e não obstante o cepticismo teológico que lhe é reconhecido, Guilherme de Ockham não deixa de propor um argumento positivo a favor da existência de Deus, como causa primeira. A esse argumento, chamamos “via da conservação”, porque nele o conceito de causa eficiente é substituído, ou melhor, ampliado pelo conceito de causa conservadora.

Guilherme de Ockham começa por conceder que a via da causalidade eficiente é um argumento racionalmente satisfatório, uma vez que é aceite por uma larga maioria de filósofos [Ord. I, d.2, q.10 (Brown e Gál: p.354, 16-18)], mas não é irrecusável, porquanto é contra-argumentável. Duas objecções, em especial, se perfilam: por um lado, é difícil ou impossível provar que não seja infinita a sucessão de causas da mesma índole, como no caso da geração de um ser humano por outro; por outro lado, é também difícil provar que um ser humano não seja produzido por outro como sua causa total, isto é, sem necessidade de apelar a uma causa superior [Ord. I, d.2, q.10 (Brown e Gál: p.354, 18; p.355, 1-9)]. Considerando estas duas possibilidades – a de uma sucessão infinita de causas da mesma índole e a de cada uma dessas causas ser causa total do seu efeito – não se impõe com evidência alguma a necessidade de um primeiro princípio eficiente. Tais possibilidades, o infinitismo em matéria de causas e a auto-suficiência das causas próximas, constituem as razões que mais claramente se opõem às vias da causalidade a favor de uma causa primeira, segundo Guilherme de Ockham. A hipótese infinitista é porém, a objecção que o filósofo leva mais a sério, sendo aquela que justifica o seu desempenho argumentativo suplementar.

O argumento de Guilherme de Ockham depende, antes de mais, da distinção conceptual entre produção e conservação, como duas partes do poder e da acção da causa eficiente: por produção, entende-se o processo pelo qual uma coisa recebe o ser imediatamente após o não ser; por conservação, entende-se o processo pelo qual uma coisa é conservada no seu ser. Ora, o que é que distingue uma causa eficiente, que é conjuntamente produtora e conservadora, de uma causa eficiente que é apenas produtora? É que a causa simplesmente produtora pode perecer, após a produção do efeito, mas a causa produtora e conservadora permanece enquanto dura o efeito. À luz do conceito de causa eficiente, como causa simplesmente produtora, a cadeia de causas eficientes pode ser sucessivamente infinita, à semelhança da geração dos indivíduos na espécie. Tal conceito de causa eficiente é compossível com a hipótese infinitista. Já o conceito de causa eficiente, como causa produtora e conservadora, não é compossível com uma infinitude sucessiva de causas perecíveis, porque a função conservadora da causa impede-a de perecer e obriga-a a permanecer concomitantemente com o efeito. Por isso, se for infinita a cadeia de causas eficientes, produtoras e conservadoras, essa infinitude não será sucessiva, mas actual. Ora, é essa infinitude actual de causas que constitui por si um absurdo, que infirma a hipótese infinitista e confirma a defesa da necessidade de uma causa primeira [Ord. I, d.2, q.10 (Brown e Gál: p. 356, 1-12)].

 

Ordinatio I, d.2

«Questão 10

Se existe apenas um Deus

 

Acerca desta questão, uma vez que todos entendem que Deus é um ente simplesmente primeiro, é preciso ver primeiro se existe algum ente simplesmente primeiro, de modo que nada exista anterior a ele.» Ord. I, d.2, q.10 (Brown e Gál: p.337, 15-17).

 

«Digo portanto, quanto ao primeiro artigo, que o argumento que prova a primazia do eficiente é suficiente, e é um argumento de quase todos os filósofos [Aristóteles, Metafísica II, 994 a 1 – 994 b 31]. Parece, no entanto, que mais evidentemente pode ser provada a primazia do eficiente por via da conservação de uma coisa pela sua causa do que por via da produção, tomando produção na acepção em que se diz que uma coisa recebe o ser imediatamente após o não ser. A razão disto é que é difícil ou impossível provar, contra os filósofos, que não haja um processo até ao infinito nas causas da mesma índole, das quais uma pode existir sem a outra, assim como admitiram o homem gerador antes do homem gerado até ao infinito [Aristóteles, A Geração e a Corrupção II, 336 a 23 – 337 a 33]; e é difícil provar por via da produção que um homem não possa ser produzido por outro como pela causa total. E, se estas duas hipóteses fossem verdadeiras, difícil seria provar que este processo até ao infinito não seria possível a não ser que existisse um permanente, do qual dependesse toda esta infinitude.

E, por isso, pode formar-se assim um argumento: o que quer que realmente é produzido por algo, realmente é conservado por algo enquanto permanece no ser real; mas este efeito – é certo – é produzido; por isso, é conservado por algo enquanto permanece. Acerca daquilo que conserva, pergunto: ou é produzido por outro, ou não. Se não, é o eficiente primeiro, assim como é o primeiro agente conservador, porque todo o agente conservador é eficiente, como será declarado no segundo [Sent. II, q.10 H]. Se, porém, aquilo que assim conserva é produzido por outro, é por isso conservado por outro, e, acerca desse outro, pergunto como antes, e, assim, ou é preciso admitir um processo até ao infinito ou é preciso parar em algo que conserva e de modo nenhum é conservado, e tal será o primeiro eficiente. Mas não deve admitir-se um processo até ao infinito nas causas conservadoras, porque então infinitas causas existiriam em acto, o que é impossível, como poderá ser mostrado pelos argumentos do Filósofo e de outros, que são suficientemente racionais. Assim, portanto, parece que, por este argumento, é preciso conceder um primeiro agente conservador e, por consequência, um primeiro eficiente.

E este argumento difere daquele que foi elaborado sob a forma anterior, porque este toma o agente conservador, e sempre todo aquele que conserva outro – seja mediata seja imediatamente – existe com o conservado, ainda que nem todo o produzido por outro requeira que todo o produtor – mediata ou imediatamente – exista com o produzido. E, por isso, embora possa admitir-se um processo até ao infinito nos produtores sem infinitude actual, não pode admitir-se um processo até ao infinito nos conservadores sem infinitude actual.» Ord. I, d.2, q.10 (Brown e Gál: p.354, 16-18; p.355, 1-23; p.356, 1-12).

 

 

 

Aula nº12 (2/12/23)

3. Explosão do sentido para além da letra

3.1. A metateologia de Pseudo-Dionísio Areopagita. O tratado dos Nomes Divinos: o percurso descendente dos nomes divinos inteligíveis. A Teologia Mística: o circuito das teologias; a posição da teologia simbólica e o papel da teologia negativa. A recepção do Corpus Areopagiticum no pensamento medieval. Pedro Hispano e a Exposição sobre a Teologia Mística de Dionísio Areopagita.

Apresentações de trabalho em projecto:

Diogo André Feliciano Alhinho (k), com arguição por Lucas Parreira Calheiros

Sara Marques Nobre (h), com arguição por Raoul Andrei Marian

 

 

A metateologia de Pseudo-Dionísio Areopagita

 

A questão do autor do Corpus Areopagiticum

Dionísio Areopagita: Act. 17, 16-34

Autor do Corpus Dionysiacum ou Areopagiticum (séc. VI):

- Dos nomes divinos

- Da teologia mística

- Da hierarquia celeste

- Da hierarquia eclesiástica

 

Pensador das hierarquias – a hierarquia celeste em 3 ordens:

1ª) Querubins, Serafins e Tronos

2ª) Dominações, Virtudes, Potestades

3ª) Principados, Arcanjos e Anjos

 

Obras Completas

Patrologia Grega. Vol. III. Paris: J.P. Migne, 1856, 585 A - 1120 A.

Oeuvres Complètes du Pseudo‑Denys L’Aréopagite. Traduction, préface, notes et index par Maurice de Gandillac, Paris: Éditions Montaigne, 1943, rééd. 1980.

Dionísio Pseudo‑Areopagita: a organização eclesiástica descrita em A hierarquia eclesiástica não é aplicável à Igreja primitiva dos tempos apostólicos; a Patrística ignora‑o completamente e, só a partir do séc. VI, começa a haver notícia do CA; admite‑se, por isso, que o autor do CA tenha vivido no séc. VI.

Pensamento: caracteriza‑se filosoficamente por ser uma expressão de neoplatonismo cristão.

 

Pseudo-Dionísio: o pensador dos nomes divinos

 

Dos Nomes Divinos

Sinopse

 

C.I: Propósito laudatório da obra: cantar louvores à tearquia ou princípio divino. Questionamento filosófico da possibilidade dos nomes divinos.

- Por um lado, o princípio divino (tearquia) é sem nome, anónimo – nenhum nome lhe convém – porque não há relação de semelhança ou afinidade de natureza entre todas as coisas que nomeamos e o princípio divino que está acima de toda a substância e essência.

- Por outro lado, há uma relação causal entre o princípio divino e todas as coisas, uma vez que aquele é causa universal, i.e., causa de todas as coisas, e, nessa medida, pode receber indirectamente os nomes de todas as coisas que são os seus efeitos.

Decisão a favor dessa possibilidade em função do vínculo que une a Tearquia a todas as coisas, como causa universal.

 

C.II: Teologia comum e teologia particular, i.e., teologia dos nomes comuns e teologia dos nomes distintos da Trindade.

 

C.III: Importância da escrita da teologia, ou da filosofia divina, não obstante as dificuldades e limitações do discurso, ancorando‑se nas autoridades de S. Paulo e S. Hieroteu.

 

Nomes divinos inteligíveis

 

C.IV: Nomes divinos de “Bem”, “Luz”, “Belo”, “Amor”: à Deidade supra‑divina, cabe o nome de “Bem”, enquanto ela é princípio difusivo de todo o bem, como o Sol é princípio difusivo de toda a luz, e também o nome de “Belo”, como princípio de atracção universal, e também o nome de “Amor”, como princípio de união e de coesão universais. A questão da origem do mal: origem em deficiências múltiplas, não na causa única universal (§30).

 

C.V: Nome divino de “Ser”, enquanto a Deidade é princípio de todo o ser, de toda a existência e de toda a essência, a através dos modelos exemplares (metafísica exemplarista). Prioridade do nome de “Bem” sobre o nome de “Ser”.

 

C.VI: Nome divino de “Vida”, enquanto a Deidade é causa vivificante e conservadora da vida.

 

Nomes da vida inteligente

C.VII: Nomes divinos de “Sabedoria”, “Inteligência”, “Razão”, “Verdade”, “”, enquanto a Deidade é princípio de toda a vida inteligente e de todo o conhecimento. Questão da possibilidade do conhecimento de Deus. Superioridade da teologia negativa.

C. VIII: Nomes divinos de “Poder” (§6: o ser necessário de Deus em função da sua omnipotência, a qual não lhe permite faltar ao ser e à verdade por auto‑negação), “Justiça”, enquanto a Deidade é princípio da ordem universal, na qual cabem salvação e redenção.

 

Nomes de teologia inteligível ou de teologia simbólica? Na fronteira.

C.IX: Nomes divinos de “Grande” (superabundante), “Pequeno” (subtilmente omnipresente), “Mesmo” (eternamente idêntico a si mesmo e causa de todo idêntico), “Outro” (auto‑comunicante, enquanto princípio de providência e salvação universal), “Semelhante” (princípio de toda a semelhança), “Dissemelhante” (incomparável), “Repouso” (imutável), “Movimento” (providência), “Igualdade” (equânimo na distribuição dos seus dons).

 

Nomes bíblicos

 

C.X: Nomes bíblicos, como “Todo-Poderoso”, “Ancião” (Dan. 7, 22) (anterior e transcendente ao tempo, enquanto princípio de todo o tempo e de toda a perpetuidade).

 

C.XI: Nome divino de “Paz” (princípio de toda a comunhão). De novo a metafísica dos inteligíveis em si: todos são reconduzidos ao princípio, enquanto dons do Deus não participável.

 

C.XII: Nomes bíblicos, como “Santo dos santos” (Dan. 9, 24), “Rei dos reis” (1 Tim. 6, 15), “Senhor dos senhores” (Apoc. 19, 16), “Deus dos deuses” (Sl. 69, 1): nomes do princípio da ordem universal.

 

C.XIII: Nomes de “Uno” e “Perfeito”: nomes síntese de teologia afirmativa.

 

 

Da Teologia Mística

segundo

PEDRO HISPANO

 

 

Pedro Hispano

Filósofo, médico e papa João XXI (9/1276 – 5/1277, sucedendo a Adriano V).

N. 1205-1210; eleito Arcebispo pelo Cabido Catedralício de Braga, nomeado Cardeal de Túsculo; m. 1277.

Estudou em Paris e ensinou medicina em Siena (1246-1250).

A biografia: vd. Armando NORTE, João XXI. O Papa Português. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2016.

Pedro Julião, o homem; Pedro Hispano, o intelectual; João XXI, o pontífice.

 

DANTE menciona-o no Canto XII do Paraíso, in Vasco Graça Moura, A Divina Comédia de Dante Alighieri. 2ª ed. Lisboa: Bertrand Editora, 1996, 699-701:

 

{130} Illuminatto e Agostinho inícios [primeiros franciscanos]

viveram dos descalços poverelos,

e do cordão a Deus foram propícios;

Com Hugo de San Vítor podes vê-los,

e Pietro Mangiadore [teólogo francês, m.1179] e Pedro Hispano,

{135}que luz na terra em seus doze libelos [os 12 livros das Summulae Logicales];

 

Obras (exemplos significativos da diversidade)

Lógica: Summulae Logicales (Tractatus) – Edição crítica de L. M. De Rijk (1972); tradução inglesa de Francis P. Dinneen (1990).

Medicina: Thesaurus Pauperum – Edição crítica e tradução portuguesa de Maria Helena da Rocha Pereira (1973); Liber de morbis oculorum (Egas Moniz publica um resumo em 1930).

Filosofia: Scientia libri de anima – estudo crítico e tese de doutoramento por J. F. Meirinhos (2002) –; comentários a Aristóteles, como Quaestiones libri de anima - tradução portuguesa de António Soares Pinheiro, in Opúsculos Selectos de Filosofia Medieval. 3ª ed. revista. Braga: Faculdade de Filosofia, 1991 -, e Quaestiones super libro de animalibus Aristotelis.

Teologia: Expositio librorum Beati Dionysii

O texto latino da Exposição sobre a Teologia Mística aparece inserido entre as obras de João Escoto Eriúgena, na Patrologia Latina (PL, t.122, cc.267‑284). Esta atribuição revelou, no entanto, ser impossível, uma vez que a Exposição incorpora uma tradução do livro A Teologia Mística, que é do séc. XII, da autoria de João Sarraceno. O autor da Exposição tem, pois, que ser contemporâneo ou posterior a este tradutor. Pelo menos num dos manuscritos mais antigos e conhecidos, o de Munique, há uma atribuição explícita da Exposição a Pedro Hispano. Esta atribuição tem vindo a ser debatida no âmbito da questão acerca de Pedro Hispano: a diversidade de obras, que lhe são tradicionalmente atribuídas, pertence a um só Pedro Hispano, o Papa português João XXI, ou a vários autores com o mesmo nome? A questão é antiga e não está ainda definitivamente resolvida. Em particular, quanto à autoria do texto da Exposição, os especialistas dividem‑se entre aqueles que admitem a atribuição deste texto a Pedro Hispano, Papa João XXI, e aqueles que contestam essa atribuição. Entre estes, encontra-se o especialista em Tomás Galo (ou Gaulês) [James McEvoy Mystical Theology: The Glosses by Thomas Gallus and the Commentary of Robert Grosseteste on De Mystica Theologia, Edition, Translation and Introduction by James McEvoy (National University of Ireland, Maynooth), Paris – Leuven – Dubley, MA, Peeters, 2003]. Como na Explanatio, Tomás Galo faz referência a um comentário anterior concluído 10 anos antes (1233), com a expressão exposui, e não podendo tratar-se da Extractio de 1238, McEvoy atribui também a Expositio a Tomás Galo, apesar de nenhum manuscrito lhe atribuir o texto e de haver 2 manuscritos, e um deles o mais antigo e o melhor (Munique), que o atribuem a Pedro hispano.

 

Exposição sobre a Teologia Mística de Dionísio Areopagita

Capítulo III

Quais são as teologias catafáticas, isto é, as afirmativas, e quais são as teologias apofáticas, isto é, negativas.

 

[Pedro Hispano,

Exposição do sentido deste título]

O título deste capítulo é o seguinte: «Quais são as teologias catafáticas, isto é, as afirmativas, e quais são as teologias apofáticas, isto é, negativas». O bem‑aventurado Dionísio tratou da teologia catafática, isto é, afirmativa, em três volumes ou livros: no livro Das Hipotiposes, no qual trata das distinções das pessoas [divinas]; no segundo, [intitulado] Dos Nomes Divinos; e no terceiro, [intitulado] Das Translações dos Vocábulos, para designarem as coisas divinas. No quarto livro, intitulado A Teologia Mística, ele trata especialmente da teologia apofática, isto é, negativa. Esta remove de Deus todas as coisas, tanto as inferiores quanto as médias e as superiores, para que, através da remoção universal em relação a Deus, encontre finalmente o próprio Deus na sua unicidade.

 

[Versão de João Sarraceno]

Em As Hipotiposes Teológicas, louvámos o que é sobretudo próprio da teologia afirmativa: como é que a divina e boa natureza se diz única; como é que se diz trina; o que é, em conformidade com a mesma, a dita paternidade e filiação; o que é que, do Espírito, quer mostrar a teologia; como é que, do bem imaterial e simples, pulularam as luzes que permanecem no coração da bondade, e como é que elas permaneceram indispersáveis nessa mesma morada e em si mesmas e umas nas outras por coeterna pululação; como é que Jesus supra‑substancial se fez em verdade substância da natureza humana. E todas as outras [coisas divinas], expressas por palavras, recebem louvor em As Hipotiposes Teológicas. Por seu lado, no livro Dos Nomes Divinos, [louva‑se] como recebe os nomes de «bom», de «existente», de «vida», de «sabedoria», de «virtude» e todos os outros que pertencem à denominação inteligível de Deus. Em A Teologia Simbólica, por sua vez, [louva‑se] quais são as denominações de Deus, [transferidas] das coisas sensíveis para as divinas: quais são as formas divinas, as figuras divinas, as partes e os instrumentos; quais os lugares divinos e o seu ornamento; quais os furores; quais as tristezas e as insânias; quais as ebriedades, as devassidões e os juramentos; quais as maldições; quais os sonos e as vigílias; e todas as outras santas formações compósitas que pertençem à deiformação simbólica.

 

[Pedro Hispano]

Exposição do sentido, desde «Em As Hipotiposes Teológicas, (...)» até «Julgo que tu (...)».

No tratado Dos Caracteres Divinos, isto é, das distinções pessoais, usámos sobretudo afirmações ou posições nos louvores divinos. Aí mostrámos que a natureza divina é única em essência e trina em pessoas; como é que se deve inteligir a paternidade e a filiação em Deus; e o que é que significa a propriedade que a Sagrada Escritura atribui ao Espírito Santo, a saber, a processão, segundo o passo: «o Espírito de verdade que procede do Pai» (Jo. 15,26). Também [aí mostrámos] como é que a plenitude dos bens invisíveis, que permanece fixamente no coração do Pai, brota do bem imaterial e simples, isto é, da pessoa do Pai, da qual procede a pessoa do Filho por geração e a pessoa do Espírito Santo por processão. Ambos receberam do Pai a mesma plenitude e, por isso, o Filho e o Espírito Santo permanecem no Pai e em si mesmos, e todos os três uns nos outros. A própria plenitude das luzes permanece, no Filho e no Espírito, coeterna ao Pai, no qual ambos têm origem. A mesma plenitude não menos permanece toda no Pai. No mesmo livro, tratámos também de como Jesus, que é supra‑substancial segundo a deidade, se fez homem segundo a verdadeira humanidade. Aí tratámos ainda de muitos outros [temas], conforme os testemunhos expressos da Escritura. No livro Dos Nomes Divinos, tratámos de como Deus é dito «bom», «existente», «vida» e «sabedoria», assim como de outros nomes inteligíveis de Deus. Em A Teologia Simbólica, por sua vez, tratámos das transferências dos vocábulos e das coisas sensíveis para designarem anagogicamente os invisíveis divinos, mostrando como se deve conceder a atribuição a Deus: de formas, como no passo que diz «Ele, que era segundo a forma de Deus» (Fil. 2,6); ou de figuras, como em Os. (13,7) «como uma leoa»; ou de partes, como em «A sua cabeça [é] do melhor ouro» (Cant. 5,11); ou de instrumentos, como em «uma colher de pedreiro» (Am. 7,7); ou de lugares, como em «Bendita a glória do Senhor desde o seu lugar santo» (Ez. 3,12); ou de ornamentos, como em «vestido com uma longa veste» (Ap. 1,13); ou de furores, como em «Senhor, não [me repreendais] no furor» (Sl. 6,2; 37,1); ou de tristezas, como em «Triste está a minha alma» (Mt. 26,38; Mc. 14,34); ou de insânias, como em «Saiba Israel: o profeta [está] louco, insano» (Os. 9,7); ou de ebriedades e devassidões, como no Sl. (77,65) «como um forte embriagado pelo vinho»; ou de juramentos, como em «O Senhor jurou» (Sl. 109,4; Heb. 7,21); ou de maldições, como em «maldita a terra no seu acto» (Gn. 3,17); ou de sono, como em «Ergue‑te, porque dormes?» (Sl. 43,23); ou de vigílias, como em «o meu coração vigia» (Cant. 5,2). E não só lá tratámos destes [exemplos], mas também de outras formações compósitas atribuídas a Deus, no livro Da Teologia Simbólica.

 

[Versão de João Sarraceno]

Julgo que tu reparaste como é que as últimas [citações] são de mais palavras do que as primeiras. De facto, era necessário que As Hipotiposes Teológicas e a abertura Dos Nomes Divinos fossem parcas em palavras, relativamente à Teologia Simbólica, porque, quanto mais para cima voltamos o olhar, tanto mais se contraem as palavras à vista dos inteligíveis. Do mesmo modo, agora, entrando para a treva que está acima da mente, encontraremos, não a brevidade das palavras, mas a irracionalidade perfeita e a imprudência. Ali, descendo das coisas superiores até às ínfimas, o discurso dilatava‑se em multiplicidade proporcional à quantidade do descenso. Agora ascendendo das coisas inferiores até ao supremo, [o discurso] contrai‑se segundo a medida da ascensão. Depois de toda a ascensão, será todo sem voz e unir‑se‑á todo ao inefável. Tu, porém, dizes: por que razão é que, afirmando as posições divinas, totalmente, a partir do primeiro, começamos a divina remoção pelos últimos? Porque, afirmando daquele que está acima de toda a posição, era necessário fazer a afirmação superpositiva a partir daquilo que lhe é mais semelhante; negando daquele que está acima de toda a remoção [é necessário] negar a partir daquilo que dele próprio está mais distante. Não será ele, porventura, mais vida e bondade do que ar e pedra? Ou mais não será devassidão nem insânia do que não dizível nem inteligível?

 

[Pedro Hispano]

Exposição do sentido, desde «Julgo que tu (...)» até ao fim do capítulo.

Eu penso que tu, Timóteo, terás percebido com o olhar da mente, como os nossos últimos tratados abundavam mais em palavras do que os primeiros. Era, de facto, necessário que os livros Dos Caracteres Divinos ou Das Distinções Pessoais e Dos Nomes Divinos fossem menos prolixos em palavras do que os tratados da Teologia Simbólica. E a razão é esta: porque, quanto mais alta, mais remota dos sentidos e mais distante da imaginação, está a matéria de que se trata, tanto menos se devem usar palavras sensíveis e mais se deve exercer o olhar intelectual. Por esta razão, no livro presente, onde se faz menção da treva divina, isto é, da incompreensibilidade, que supera toda a mente tanto humana quanto angélica, ou que está acima do verbo intelectual, não só encontramos a brevidade das palavras mas também a perfeita e incomparável superação da razão para indagar, e da prudência para dizer dignamente. Nos livros acima referidos, descendo das coisas superiores até às inferiores, o nosso tratado dilatava‑se em maior ou menor prolixidade, segundo o maior ou menor descenso. Como se dissesse: quanto mais eu tratava das inferiores e mais próximas dos sentidos, tanto mais abundava a cópia de palavras, proporcional aos mesmos sentidos. Em contrapartida, no presente tratado, aquele que ascende das inferiores até às superiores, contrai‑se e reduz‑se, segundo a medida da ascensão. Quando tiver superado a mente, então cessará todo o discurso tanto oral quanto mental, porque, como é evidente, o discurso da mente não diz o Deus inefável. Nem resta à mente senão unir‑se toda e totalmente ao Verbo inefável e eterno. Como não há intermediário algum entre a mente e Deus, depois de terem sido removidas todas as coisas de Deus, não resta senão a união supra‑mental. Perguntas talvez por que razão começamos as posições pelas coisas mais dignas, e as remoções pelas inferiores. A razão disso é esta: porque, quando queremos designar positivamente Deus, que está para além de toda a posição, convém que lhe atribuamos principalmente as coisas mais dignas e mais próximas dele; quando, porém, queremos designá‑lo por remoção, convém retirar dele primeiro aquelas coisas que parecem distar mais dele próprio. Por exemplo: mais congruente e aproximadamente se atribui a Deus a vida e a bondade do que o ar e a pedra; de modo similar, mais evidentemente se remove dele a devassidão e a insânia do que ser dizível ou inteligível.

 

O circuito das teologias

 

1- Catafática inteligível: Dos Nomes Divinos

4- Apofática inteligível: Da Teologia Mística, C.V

2- Catafática simbólica: Da Teologia Simbólica

3- Apofática simbólica: Da Teologia Mística, C.IV

 

 

Capítulo IV

A causa por excelência de todo o sensível nada é de sensível.

 

[Pedro Hispano,

Exposição do sentido deste título]

O título deste capítulo é o seguinte: «A causa por excelência de todo o sensível nada é de sensível». Com razão se diz que Deus, que é a causa causalíssima de todas as coisas, nada é de sensível, quer activo quer passivo. Por isso, o bem‑aventurado Dionísio, querendo mostrar a excelência desta causa, remove dela primeiro as coisas mais remotas, como é não‑substanciado, como não‑ente; e não‑vivente, como a pedra; e não‑racional, como o gado. Notam‑se aqui três graus inferiores da criatura, que ele remove: o daquelas [criaturas] que apenas são e não vivem; o daquelas que são e que vivem, mas não sentem; o daquelas que vivem e sentem, mas não raciocinam, nem inteligem. Por último, ele remove todas as coisas que podem depender do corpo ou dos sentidos.

 

[Versão de João Sarraceno]

Dizemos, portanto, que a causa de todas as coisas, e que existe acima de todas as coisas, não é substância, nem vida, nem razão, nem mente, nem é corpo, nem figura, nem forma; nem possui qualidade, nem quantidade ou peso; nem está em lugar [algum]; nem é vista; nem possui tacto sensível; nem se sente; nem é sensível; nem possui desordem e finalização perturbada pelas paixões materiais, nem é impotente, sujeita às vicissitudes sensíveis; nem é indigência de luz; nem possui, nem é variação, ou corrupção, ou divisão, ou passibilidade, ou fluxo, ou algo mais de sensível.

 

[Pedro Hispano, teologia negativa simbólica]

Exposição do sentido, desde «Dizemos, portanto, (...)» até ao fim do capítulo.

Declaramos que Deus, que criou todas as coisas e está acima de todas elas, ‑ começando nele a remoção ‑ não é algo materialmente substanciado, ou ente, nem vivente, nem utente de razão, nem eminente pela mente. Todas estas coisas foram removidas umas das outras e de Deus, porque o não‑ente é mais remoto de Deus do que as coisas que são; e o não‑vivente, do que aquelas que são e vivem; também o carecido de razão e de mente é mais remoto do que estas que são e vivem, mas que não raciocinam nem inteligem. Em seguida, removemos de Deus todo o corpóreo e todos os corpos, ou os acidentes da realidade corpórea, como é a figura, a forma, a qualidade, a quantidade, o peso, o lugar, e a propriedade dos sentidos, tanto activa quanto passiva. De modo similar, retiramos dele a desordem proveniente das concupiscências carnais, e o fim do desejo carnal, perturbado ou tornado turbulento pelas paixões materiais. Removemos igualmente dele a impotência ou a fraqueza sujeita às vicissitudes sensíveis. Removemos igualmente dele a indigência de luz e a variação, ou a geração e a corrupção, e a divisão, uma vez que não é composto de partes diversas. De modo similar, retiramos dele a passibilidade material e o fluxo temporal, uma vez que [Deus] não é ou não possui em si alguma destas [propriedades], nem é algo de sensível.

 

Capítulo V

A causa por excelência de todo o inteligível nada é de inteligível.

 

[Pedro Hispano,

Exposição do sentido deste título]

O título deste capítulo é o seguinte: «A causa por excelência de todo o inteligível nada é de inteligível». Como da causa causalíssima são removidos os sensíveis, assim também os inteligíveis, uma vez que ela própria não é sensível nem inteligível, qualquer que seja a dignidade do sensível ou do inteligível, que lhe seja atribuível. Não há dúvida de que esta distância entre criatura e criador resulta da excelência da causa suprema. Como esta causa é em si inefável, assim também a nada por si criado é comparável. Donde, porque não pode aí haver comparação, torna‑se conveniente aí a remoção, tanto nos sensíveis quanto nos inteligíveis.

 

[Versão de João Sarraceno]

Retomando a ascensão, dizemos que [a causa de todas as coisas] não é alma, nem mente; não possui imaginação, nem opinião, ou razão, ou intelecto; nem é razão, nem intelecto; nem é dizível, nem inteligível; nem é número, nem ordem, nem grandeza, nem pequenez, nem igualdade, nem semelhança, nem dissemelhança; nem está fixo, nem se move; nem faz silêncio, nem possui virtude; nem é virtude, nem luz; nem vive, nem é vida; nem é substância, nem evo, nem tempo; nem é tacto inteligível, nem ciência, nem verdade, nem reino, nem sabedoria; nem uno, nem unidade, nem deidade, ou bondade; nem é espírito, como nós vemos; nem filiação, nem paternidade; nem é alguma outra coisa conhecida por nós ou por algum outro existente; nem é algo de não existente, nem é algo de existente; nem os existentes a conhecem segundo aquilo que ela própria é, nem ela própria conhece os que são existentes, enquanto são existentes; nem é razão dela própria, nem nome, nem conhecimento; nem é treva, nem luz, nem erro, nem verdade; nem é em geral a posição dela própria, nem a remoção; mas, efectuando posições e remoções das coisas que estão depois dela, não a pomos nem a retiramos a ela própria, porque acima de toda a posição, está a causa perfeita e unitiva de todas as coisas, e acima de toda a remoção, está a superabundância do que é absolutamente separado de todas as coisas e acima de todas.

 

[Pedro Hispano, teologia negativa inteligível]

Exposição do sentido, desde «Retomando (...)» até ao fim do capítulo.

Recomeçando as negações pelos mais altos [atributos] divinos, dizemos que Deus, que é a causa de todas as coisas, não é alma, porque não vivifica um corpo; nem mente, porque não preside à alma, como parte superior da alma; nem possui imaginação, para imaginar o divino ou o espiritual; nem opinião, para variar de diversas maneiras em diversas sentenças; nem razão, para discernir entre dúvidas; nem possui intelecto, para incidir apenas nos visíveis criados; nem é razão, para discernir entre o bem e o mal; nem intelecto, para incidir nos invisíveis criados; nem é dizível, porque não é definível; nem é inteligível, porque por ninguém é compreensível. Para transitarmos pelas coisas médias até às extremas, dizemos de novo que [Deus] não é número, porque não é multiplicável; nem ordem, porque não é proporcionável a pares ou ímpares; nem grandeza, porque não é aumentável; nem pequenez, porque não é minorável; nem igualdade, porque não é proporcionável; nem semelhança, porque não é comparável a coisa alguma; nem dissemelhança, porque não discrepa de coisa alguma; nem está fixo, porque não é uma coisa imóvel; nem se move, porque não é uma coisa volúvel; nem faz silêncio, porque não é reprimível pelo verbo mental ou vocal. Para voltarmos por algumas coisas médias até às supremas e terminarmos as negações nas mais altas criaturas, dizemos que [Deus] não possui virtude, na qual seja por outro consolidado; nem é virtude, na qual seja por outro formado; nem é luz, que seja recebida de outro; nem vive, de modo que seja sensificado por outro; nem é vida, para reger algum corpo apropriado; nem é substância, materialmente substanciado; nem é evo, porque não é espaço invariável; nem tempo, porque não é espaço mutável; nem é tacto, porque não é de algum modo tangível segundo a sua essência; nem é ciência, porque não é cognoscível; nem verdade, porque não é adequável ao intelecto; nem reino, porque não é dominável; nem sabedoria, porque não é saboreável; nem um, porque não é aumentável para muitos; nem unidade, porque não é materialmente indivisível; nem é deidade por nós inteligível; nem bondade, porque não é qualidade infundível; nem é espírito por nós inteligível; nem filiação, gerável por outro, segundo a nossa natureza; nem paternidade, que produz materialmente o outro subsistente; nem é algo conhecido plenamente por nós ou por algum existente, homem ou anjo; nem é algo de não existente intelectualmente, nem algo de existente materialmente; nem os existentes o conhecem segundo aquilo que ele próprio é; nem ele próprio conhece os existentes enquanto existem em si mesmos, mas segundo aquilo que eles são no Verbo. Em relação a si mesmo, [Deus] não é indagação racional, nem imposição de nome, nem compreensão de conhecimento; não é treva deficiente de luz, nem é luz inteligível; não é erro, pelo qual o espírito se engane; nem verdade, por zelo da qual o espírito se instrua. Nenhuma posição ou remoção é absolutamente de Deus. Mas, quando pomos ou retiramos dele o que quer que dele se distinga, nunca o pomos ou o retiramos a ele próprio, porque, acima de toda a posição, está a causa perfeita de todas as coisas, e acima de toda a remoção, está a sua superabundância, separada de todas as coisas e acima de todas.»

 

Teologia Mística. Textos de Pedro Hispano & Tomás Galo. Edição bilingue latim-português, introdução, tradução e notas de Maria Leonor L.O. Xavier. Lisboa: CFUL/ Ésquilo, 2008, 73-91.

 

 

 

Aula nº13 (9/12/23)

3.2. A tradição dos 4 sentidos da Bíblia. M.-D. Chenu, sobre a exegese simbólica. A investigação de Henri de Lubac, a partir da fórmula de Nicolau de Lyre. A questão das origens da tradição dos 4 sentidos da Bíblia. S. António e a ordem dos 4 sentidos da Bíblia.

3.3. A exegese simbólica da filosofia: S. Boaventura, De reductione artium ad theologiam.

Apresentação de trabalho em projecto:

Geane Vidal de Negreiros Lima (d adap.), com arguição por Ana Cristina Rodrigues da Silva Lúcio

 

 

A tradição dos 4 sentidos da Bíblia

 

M.-D. CHENU

A exegese simbólica

«A propriedade mais constante, mas não a menos desconcertante, do símbolo é o seu desenvolvimento polimorfo, tão consubstancial ao seu desempenho que reduzi-lo, em benefício de uma clareza conceptual, seria desde logo trair a sua fecundidade bem como arrefecer a sua efervescência. Assim, por natureza, o símbolo é ambíguo. O fogo aquece, ilumina, purifica, arde, regenera, consome; tanto significa a concupiscência como o Espírito Santo. O pão eucarístico realiza simultaneamente o maná do deserto, o rito pascal judaico, a última ceia de Cristo, o banquete celeste, para não falar da alimentação natural; e cada um destes simbolismos é desmultiplicado em elementos por sua vez significativos. Jerusalém, a cidade histórica dos judeus, é o estado de inocência de Adão, é a Igreja cidade mística, é a alma cristã, é a Igreja triunfante (colectivamente tomada), é a beatitude (individual). Herodes, que significa “revestido de pele” (pelliceus), é o demónio, cujos artifícios constrangeram o pecador a despojar-se da túnica da imortalidade para se enfarpelar com estas vestes de pele que são o sinal da sua mortalidade e da sua perdição. Os seios da esposa, no Cântico (“Meliora sunt ubera tua vino”), significam alternadamente a castidade e a humildade, os braços do amor que, na Virgem, se agarram a Cristo como Deus e como homem, a carne e a alma, a falta carnal e os sofismas da concupiscência. O mistério da Igreja torna-se para nós inteligível pela consideração da edificação (festa da consagração), do templo de Jerusalém (referência ao passado), da morada celeste (referência ao futuro), da casa de Zaqueu (episódio evangélico), ao mesmo tempo que pelo amplo tema místico da esposa de Cristo. A Mulher, em Apoc. 12, é, ao mesmo tempo, Eva, a Comunidade de Israel, a Virgem, a Igreja; polissemia profundamente explorada, na coerência mística da economia: em Maria, culmina a maternidade de Israel, pois toda a geração, em Israel, tende para o parto do Messias; e Maria é a célula germinal da Igreja, a qual é mãe geradora de Cristo.

Os exemplos superabundam. Mais, eles são o efeito de um tratamento metódico, cujas leis estão enunciadas, até transformadas em receitas fáceis. Os mestres do séc. XII praticaram à saciedade estas leis, tanto na observação da natureza, como no sentido da história sagrada e nas interpretações dos ritos litúrgicos; eles comprazeram-se nesta multiplicação e nesta ambiguidade das significações simbólicas. Para eles, isso não era simples amplificação literária, oratória, devocional, era antes a convicção de um valor de inteligência, de argumentação (a demonstratio de Hugo de São Vítor) explorável nestas coaptationes assim multiplicadas e ajustadas. Tal semântica é, em arquitectura mental, tão distante da lógica aristotélica (“Ter mais do que um sentido é nada significar”, Aristóteles) quanto é próxima da literatura bíblica e da polissemia oriental. É de prever que ela colocará problemas epistemológicos a uma teologia organizada em ciência com a sua instrumentação lógica. No séc. XII, ela não constitui problema, porquanto os textos bíblicos permanecem a matéria imediata do teólogo. Se filósofos e teólogos se dedicam a um esforço crítico, é, como vimos, para classificar, organizar estas significações, não apenas nos sentidos bíblicos, fundados sobre a própria economia da história sagrada, mas também no aparelho de culto e na observação dos fenómenos da natureza.» M.-D. Chenu, La Théologie au Douzième Siècle, Paris, Vrin, 1976³, pp.184-185.

 

HENRI DE LUBAC

 

A fórmula citada e transmitida por Nicolau de Lyre (1330), Postila sobre a Epístola aos Gálatas (In Gal., IV, 3. Bible de Douai, VI, Anvers, 1634, p.506):

 

Littera gesta docet, quid credas allegoria,

Moralis quid agas, quo tendas anagogia.

 

«A letra ensina o que aconteceu, a alegoria aquilo em que deves acreditar,

A moral aquilo que deves fazer, a anagogia aquilo para onde deves tender.»

 

A explicação dada por Nicolau de Lyre no Prólogo à Glossa ordinária:

 

Secundum igitur primam significationem, quae est per voces, accipitur sensus litteralis, vel historicus; secundum vero aliam significationem, quae est per ipsas res, accipitur sensus mysticus, seu spiritualis, qui est triplex in generali; quia si res significata per voces referatur ad significandum ea quae sunt in nova lege credenda, sic accipitur sensus allegoricus; si autem referantur ad significandum ea quae per nos sunt agenda, sic est sensus moralis vel tropologicus; si autem referantur ad significandum ea quae sunt speranda in beatitudine futura, sic est sensus anagogicus…

 

Cit. em Henri de Lubac, Exégèse Médiévale. Les quatre sens de l’Écriture, Paris, Aubier, 1959, p.23 (p. inicial da “Introdução”): «page dont toute l’étude presente ne sera guère que le commentaire.»

 

«Segundo a primeira significação, que é pelas palavras, entende-se o sentido literal, ou histórico; segundo a outra significação, que é pelas próprias coisas, entende-se o sentido místico, ou espiritual, que é, em geral, triplo; pois, se a coisa significada pelas palavras é referida para significar aquilo em que se deve acreditar na nova lei, assim entende-se o sentido alegórico; se [as coisas] são referidas para significar aquilo que nós devemos fazer, assim é o sentido moral ou tropológico; se são referidas para significar aquilo que se deve esperar na beatitude futura, assim é o sentido anagógico…»

 

Vd. estudo especial dedicado a Nicolau de Lyre e à sua obra exegética Postillae perpetuae in universa Biblia (1322-1330): Henri de Lubac, Exégèse Médiévale. Les quatre sens de l’Écriture, Seconde Partie, II, Paris, Aubier, 1964, pp.344-367.

 

A questão das origens da tradição dos 4 sentidos da Bíblia

 

ORÍGENES

 

«Nos Provérbios de Salomão encontramos um mandamento a respeito da leitura atenta da Escritura divina: “E tu escreve-os três vezes com reflexão e conhecimento, para que respondas com palavras de verdade àqueles que te interrogaram” (Prov. 22, 20-21). É preciso que cada um inscreva “três vezes” na sua alma o sentido (intelligentia) das divinas Escrituras: o leitor mais simples será, então, edificado por aquilo que é, por assim dizer, o corpo da Escritura (designamos assim a interpretação comum e literal); mas aqueles que já começaram um pouco a progredir e que podem ter uma visão mais ampla, esses serão edificados pela alma da Escritura; e os perfeitos, que se tornaram semelhantes àqueles acerca dos quais diz o Apóstolo: “nós dizemos a sabedoria entre os perfeitos, não a sabedoria deste século nem dos príncipes deste século, que destroem, mas nós dizemos a sabedoria de Deus escondida no mistério, aquela que, antes dos séculos, Deus predestinou para nossa glória” (I Cor. 2, 6-7), esses serão edificados pela “lei espiritual” (Rom. 7, 14), que “contém a sombra dos bens futuros” (Heb. 10, 1). Portanto, assim como se diz que o homem é composto de corpo, alma e espírito, assim também é composta a santa Escritura, que foi dada para a salvação dos homens pela generosidade divina.» Peri Archôn IV, 2, 4 (Texto latino da tradução de Rufino, reprod. em Henri de Lubac, Exégèse Médiévale. Les quatre sens de l’Écriture, Paris, Aubier, 1959, p.199. Tradução francesa: Traité des Principes (Peri Archôn), introduction et traduction par Marguerite Harl, Gilles Dorival, Alain Le Boulluec, Paris, Études Augustiniennes, 1976, p.220).

 

SANTO AGOSTINHO

 

«Para o conjunto das Escrituras, que se chama Antigo Testamento, a tradição oferece àqueles que desejam conhecê-lo com reflexão quatro modos de interpretação (quadrifaria traditur): segundo a história, a etiologia, a analogia e a alegoria. Não me julgues pretensioso por empregar palavras gregas. Primeiro, foi assim que aprendi e não ouso comunicá-lo de modo diferente daquele como recebi. Depois, como tu também te apercebes, não há entre nós nomes usados para estas coisas. Se eu tivesse produzido uma correspondência, ainda seria decerto mais pretensioso. E se eu parafraseasse, menos expedito seria o meu discurso. Apenas peço que acredites, seja qual for o erro que eu cometer, que não será por orgulho e presunção. Há, portanto, uma interpretação segundo a história, quando se ensina aquilo que está escrito ou aquilo que aconteceu, e aquilo que, sem ter acontecido, está escrito como se tivesse acontecido; outra interpretação segundo a etiologia, quando se mostra por que causa algo aconteceu ou foi dito; outra segundo a analogia, quando se demonstra não haver contradição entre os dois Testamentos, o Antigo e o Novo; e outra segundo a alegoria, quando se ensina que algumas coisas que foram escritas não são para ser entendidas à letra (non ad litteram esse accipienda), mas figuradamente (sed figurate intelligenda).» De utilitate credendi 3, 5 (Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinenne 8, Paris, Desclée de Brouwer, 1951, pp.216-218).

 

SANTO ANTÓNIO

 

A ordem dos 4 sentidos

«Está escrito no Génesis [2, 11-12]: Na terra de Hevilat nasce ouro e o ouro daquela região é óptimo. Hevilat interpreta-se parturiente e significa a Sagrada Escritura a qual é como a terra, que primeiramente produz a erva, depois a espiga e, finalmente, o grão maduro na espiga. A erva constitui a alegoria, que edifica a fé, segundo o dito: Produza a terra erva verdejante [Gen 1, 11]; na espiga, chamada assim de spiculus (ponta), entende-se a moralidade, que informa os costumes e com a sua doçura traspassa e fere o ânimo; no grão maduro, figura-se a anagogia, que trata da plenitude do gozo e da felicidade angélica.» “Sermões Dominicais, Prólogo”, in Santo António de Lisboa, Introdução e selecção de textos de Francisco da Gama Caeiro, tradução e notas de Henrique Pinto Rema, Lisboa/ São Paulo, Editorial Verbo, 1990, pp.71-72.

 

 

A exegese simbólica da filosofia

 

SÃO BOAVENTURA

De reductione artium ad theologiam

 

Recepção da tradição dos quatro sentidos da Bíblia

«5. […] Em todos os livros da Sagrada Escritura, além do sentido literal, que as palavras exprimem exteriormente, é possível conceber um tríplice sentido espiritual, a saber: o alegórico, pelo qual se ensina o que se deve crer a respeito da Divindade e da humanidade; o moral, pelo qual se ensina como se deve viver; e o anagógico, pelo qual se ensina de que maneira se deve aderir a Deus. Daqui se infere que toda a Sagrada Escritura ensina estas três coisas: a geração eterna de Cristo e a sua incarnação, a regra de viver, e a união de Deus e da alma. A primeira diz respeito à , a segunda aos costumes, a terceira ao fim de ambas. Sobre a primeira deve trabalhar afincadamente o estudo dos doutores, sobre a segunda o estudo dos pregadores, sobre a terceira o estudo dos contemplativos. Agostinho ensina principalmente a primeira, Gregório ensina principalmente a segunda, mas a terceira é Dionísio que ensina – Anselmo segue Agostinho, Bernardo segue Gregório, Ricardo segue Dionísio, porque Anselmo distingue-se no raciocínio, Bernardo na pregação, e Ricardo na contemplação. Mas Hugo congloba todas elas.» S. BOAVENTURA, Recondução das ciências à teologia (Colecção Filosofia . Textos, 9), tradução e posfácio de Mário Santiago de Carvalho, Porto, Porto Editora, 1996, n.5, p.18.

 

O sentido alegórico da filosofia racional

«16. Se considerarmos a palavra em relação a quem a profere, verificamos que toda a palavra é signo de um conceito da mente, e este conceito interior é uma palavra mental, prole da mente, conhecida por aquele que a concebe. Mas, para que seja conhecida de quem a ouve, reveste forma de voz, e mediante esse revestimento essa palavra inteligível torna-se sensível, é ouvida de fora e é recebida no ouvido do coração de quem a ouve, sem que por isso se afaste da mente daquele que a profere. De modo semelhante, vemos que o Verbo eterno, que o Pai desde a eternidade concebe, quando o gerou, conforme o que está escrito no oitavo capítulo dos Provérbios, “ainda não existiam os abismos e eu já estava concebido” [Prov. 5, 24], para dar-se a conhecer ao homem sensual tomou a forma de carne, “e o Verbo se fez carne e habitou entre nós” [Jo. 1, 14], permanecendo, não obstante, “no seio do Pai” [Jo. 1, 18].» IDEM, Op.cit., n.16, pp.22-23.

 

O sentido alegórico da filosofia natural

«19. Seguindo este mesmo procedimento, é possível encontrar o mesmo na iluminação da filosofia natural, cujo principal objecto são as razões formais na matéria, na alma e na sabedoria divina. […].

20. Se as considerarmos segundo o modo de ser da proporção, encontraremos nelas o Verbo eterno e o Verbo incarnado. As razões intelectuais e abstractas são como que intermediárias entre as razões seminais e as ideais. As razões seminais não podem encontrar-se na matéria sem que nela se dêem a produção e a geração da forma; do mesmo modo as razões intelectuais, sem que se gere a palavra na mente; logo, nem as razões ideais podem estar em Deus sem haver a produção do Verbo pelo Pai segundo uma recta proporção. Isto é, de facto, uma dignidade, e se convém à criatura com muito mais razão deve convir ao Criador. Por isso disse Agostinho que o Filho de Deus é “a arte do Pai” [De Trinitate VI, 10, 11]. Além disto, o apetite que existe na matéria está ordenado para as razões intelectuais, de forma que a geração nunca seria perfeita se a alma racional se não unisse à matéria corpórea. Ora, pelo mesmo motivo se pode arguir que não poderia dar-se a mais alta e a mais nobre perfeição no Universo se a natureza na qual existem as razões intelectuais, e a natureza na qual existem as razões ideais, não concorressem conjuntamente na unidade de pessoa, o que se verificou na incarnação do Filho de Deus. Toda a filosofia natural anuncia, pois, pelo modo de ser da proporção, o Verbo de Deus nascido e incarnado, como “alpha e omega” [Apoc. 1, 8; 21, 6; 22, 13], ou seja, nascido no princípio e antes dos tempos, mas incarnado no fim dos séculos.» IDEM, Op.cit., nn.19-20, pp.24-25.

 

O sentido alegórico da filosofia moral

«23. Entre todos os modos já referidos é possível encontrar o lume da Sagrada Escritura na iluminação da filosofia moral. O intento da filosofia moral incide principalmente sobre a rectidão, pois o seu objecto é a justiça geral, a qual, como diz Anselmo, “é a rectidão da vontade” [De Veritate, c.12]. Ora, “recto” tem uma tríplice acepção, conformemente às quais são trazidas à luz as três conclusões, antes referidas, na consideração da rectidão. Numa, diz-se “recto aquilo cujo meio não excede os extremos” [Platão, Parménides, 137d-e]. Se, portanto, Deus é a suma rectidão quer em si mesmo quer enquanto é princípio e fim de tudo, então é necessário estabelecer em Deus uma pessoa que seja, em si mesma, intermédia, por forma a que uma seja apenas produtora, a outra apenas produzida e uma intermédia, produtora e produzida. É igualmente necessário estabelecer um meio na procedência e no retorno das coisas; mas é necessário que este meio, na procedência, tenha mais da parte da produção, enquanto que, no retorno, esse meio deve ter mais da parte do que retorna; logo, assim como as coisas provieram de Deus pelo Verbo de Deus, então é necessário, para o retorno completo das coisas, que o Mediador “de Deus e dos homens” [1 Tim. 2, 5] não seja só Deus, mas também homem, a fim de poder reconduzir os homens para Deus.» IDEM, Op.cit., n.23, p.26.

 

 

 

Aula nº14 (16/12/23)

Apresentações de trabalho em projecto:

Breno Gutierrez Guedes (b-d), com arguição por Dinis Rodrigo Dias Tomás

Mateus Filipe Caeiro Esteves (c), com arguição por Joseph da Silva

3.4. Novas exegeses não confessionais de textos confessionais

 

 

 

 

 

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