O Pensamento Filosófico dos Nossos Mestres

 
 

OS NOSSOS MESTRES: QUEM SÃO?

 

Manuel Antunes (1918-1985)

Exerceu entre 1957 e 1985

Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa (1981)

A marca do seu magistério ecoa ainda na nossa actividade, tanto através daqueles que o conheceram directamente, como pelos mais “recentes”, que vislumbram nos seus textos o sempre gratificante encontro com a palavra. Foram marcantes as suas lições no âmbito da Ontologia, da História da Cultura Clássica, da História da Civilização Romana ou da Filosofia Antiga.» Pedro Calafate, “Filosofia”, in Sérgio Campos Matos, Jorge Ramos do Ó (Coord.), A Universidade de Lisboa nos Séculos XIX e XX, Vol. II, Lisboa, Universidade de Lisboa e Edições Tinta-da-China, 2013, p.946. Autor de: Obra Completa (14 volumes), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005-2012. Homenagens: AAVV (Docentes de Filosofia da FLUL), Ao Encontro da Palavra. Homenagem a Manuel Antunes, Lisboa, Faculdade de Letras (Filosofia), 1986; José Eduardo Franco e Hermínio Rico (Coord.), Padre Manuel Antunes (1918-1985). Interfaces da cultura portuguesa e europeia, Lisboa, Campo das Letras – Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, 2007; José Eduardo Franco, Guilherme d’Oliveira Martins (Coord. científica), Susana Alves-Jesus (Coord. executiva), Repensar Portugal, a Europa e a Globalização: Saber Padre Manuel Antunes, SJ - 100 Anos, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022.

 

Francisco da Gama Caeiro (1928-1994)

Exerceu entre 1959 e 1990

«Outra das linhas marcantes deste Departamento foi e é, ao que me parece, a investigação em torno do pensamento filosófico português, […], sendo elevado a um mais alto patamar de exigência com Francisco da Gama Caeiro, que dedicou parte relevante do seu labor de investigador e mestre à questão da radicação cultural da filosofia, abrindo caminho para a valorização do pensamento filosófico de tantos autores portugueses, partindo de Santo António até Leonardo Coimbra.» Pedro Calafate, “Filosofia”, in Sérgio Campos Matos, Jorge Ramos do Ó (Coord.), A Universidade de Lisboa nos Séculos XIX e XX, Vol. II, Lisboa, Universidade de Lisboa e Edições Tinta-da-China, 2013, p.947. Autor de: Santo António de Lisboa, Volumes I-II, Lisboa, INCM, 1995; Dispersos, Volumes I-III, Lisboa, INCM, 1998-2000. Homenagens: AAVV, Pensar a Cultura Portuguesa. Homenagem a Francisco da Gama Caeiro, Lisboa, Edições Colibri – Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1993; Maria Leonor L.O. Xavier (Coord.), Francisco da Gama Caeiro. A presença 20 anos depois, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2014.

 

Joaquim Cerqueira Gonçalves (n. 1930)

Exerceu entre 1963 e 2000 

Agraciado pela Presidência da República Portuguesa com o Grande Colar da Ordem da Instrução Pública (2002)

«Catedrático do Departamento de Filosofia da FLUL e durante muitos anos do último quartel do século passado, coordenador da sua Comissão Científica. A par do seu sentido de serviço à comunidade académica, traduzido na dedicação às tarefas de administração do Departamento de Filosofia e da Faculdade, bem como no dinamismo com que impulsionou a criação do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, de que foi primeiro director, Cerqueira Gonçalves regia a disciplina de Filosofia Medieval, mas construiu o seu percurso académico em acentuada pluralidade de interesses, partindo sempre da matriz personalista da cultura cristã, sobretudo na sua vertente franciscana, tendo dedicado a S. Boaventura a sua dissertação de doutoramento.» Pedro Calafate, “Filosofia”, in Sérgio Campos Matos, Jorge Ramos do Ó (Coord.), A Universidade de Lisboa nos Séculos XIX e XX, Vol. II, Lisboa, Universidade de Lisboa e Edições Tinta-da-China, 2013, p.952. Autor de: Homem e Mundo em São Boaventura, Braga, 1970; Itinerâncias da Escrita, Volumes I-III, Lisboa, INCM, 2011-2015. Homenagens: Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa (Org.), Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Lisboa, Edições Colibri, 2001; AAVV, Florilégio Medieval: Itinerários Filosóficos com Joaquim Cerqueira Gonçalves, Revista Quadrimestral de Cultura publicada pelos Franciscanos de Portugal, Ano LXII nº especial (Maio-Dezembro 2016) nº 215/216.

 

Manuel Barbosa da Costa Freitas (1928-2010)

Exerceu entre 1987 e 1998

«Homem de cela e da instituição universitária, Costa Freitas chega à sociedade, através, ora dos textos que esculpiu, na alma dos seus alunos, em colaboração com eles, ora da palavra escrita, sobretudo em publicações periódicas e em enciclopédias, que constituem veículos práticos, versáteis e actualizados de transmissão do saber. Assim conseguiu alargar a atmosfera dos claustros que inspiraram a sua filosofia, ou seja, o franciscano e o universitário.» Joaquim Cerqueira Gonçalves, “Apresentação”, in Manuel Barbosa da Costa Freitas, O Ser e os Seres. Itinerários Filosóficos, Volume I, Lisboa, Editorial Verbo, 2004, p.13. Autor de: O Ser e os Seres. Itinerários Filosóficos, Volumes I-II, Lisboa, Editorial Verbo, 2004. Homenagens: Cassiano Reimão (Org.) e Manuel Cândido Pimentel (Coord.), Os Longos Caminhos do Ser. Homenagem a Manuel Barbosa da Costa Freitas, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2003; AAVV, Manuel Barbosa da Costa Freitas, OFM, 1928-2010. HomenagemItinerarium. Revista Quadrimestral de Cultura publicada pelos Franciscanos de Portugal, Ano LVI (Lisboa, 2010).

 

José Adriano Barata-Moura (n.1948)

Exerceu entre 1971 e 2018.

Professor Catedrático e Emérito

Vice-Presidente da Internationale Gesellschaft Hegel-Marx für dialektisches Denken.

Deputado ao Parlamento Europeu (1993-1994).

Reitor da Universidade de Lisboa (1998-2006).

Membro do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (1999-2006).

Membro do Conselho Nacional de Educação (2007-2011).

Sócio correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa.

Sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa.

Grande-oficial da Ordem Militar de Sant'iago da Espada.

Publicou em livro:

Kant e o conceito de Filosofia, Lisboa, Sampedro, 1972, 194 pp. (2ª ed.: Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007, 176 pp.);

Da redução das causas em Aristóteles, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1973, 124 pp.;

Estética da canção política. Alguns problemas, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, 168 pp.;

Totalidade e contradição. Acerca da dialéctica, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, 200 pp. (2ª ed. aumentada: Lisboa, Editorial Avante, 2012, 432 pp.);

Ideologia e prática, Lisboa, Editorial Caminho, 1978, 296 pp.;

EPISTEME. Perspectivas gregas sobre o saber. Heraclito - Platão - Aristóteles, Lisboa, Ed. do autor, 1979, XX+832 pp.;

Para uma crítica da «Filosofia dos Valores», Lisboa, Livros Horizonte, 1982, 152 pp.;

Da representação à «práxis». Itinerários do idealismo contemporâneo, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, 180 pp.;

Ontologias da «práxis» e idealismo, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, 260 pp.;

A «realização da razão» - Um programa hegeliano?, Lisboa, Editorial Caminho, 1990, 224 pp.;

Marx e a crítica da «Escola Histórica do Direito», Lisboa, Editorial Caminho, 1994, 412 pp.;

Prática. Para uma aclaração do seu sentido como categoria filosófica, Lisboa, Edições Colibri, 1994, 114 pp.;

Materialismo e subjectividade. Estudos em torno de Marx, Lisboa, Editorial Avante, 1997, 368 pp.;

Estudos de Filosofia Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 1998, 288 pp.;

Da mentira: um ensaio transbordante de errores, Lisboa, Editorial Caminho, 2007, 226 pp.;

O outro Kant, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007, 256 pp.;

Estudos sobre a ontologia de Hegel. Ser, verdade, contradição, Lisboa, Editorial Avante, 2010, 268 pp.;

Sobre Lénine e a Filosofia. A reivindicação de uma ontologia materialista dialéctica como projecto, Lisboa, Editorial Avante, 2010, 176 pp.;

Filosofia em «O Capital». Uma aproximação, Lisboa, Editorial Avante, 2013, 426 pp.;

Três ensaios em torno do pensamento político e estético de Álvaro Cunhal, Lisboa, Editorial Avante, 2014, 188 pp;

Marx, Engels e a crítica do utopismo, Lisboa, Editorial Avante, 2015, 363 pp;

Ontologia e política. Estudos em torno de Marx - II, Lisboa, Editorial Avante, 2016;

As Teses das «Teses». Para um exercício de leitura, Lisboa, Editorial Avante, 2018, 673 pp;

Traduziu:

Karl Marx, O Capital. Crítica da Economia Política, Lisboa, Editorial Avante, 1990-2017, 8 vols.

Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach e a Saída da Filosofia Alemã Clássica, nova tradução, estudo introdutório e notas de José Barata-Moura, Lisboa, Editorial Avante, 2019, 489 pp;

Contexturas e Texturas. Sobre o Anti-Düring de Engels, Lisboa, Editorial Avante, 2020, 337pp;

G.W.F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, tradução e notas de José Barata-Moura, Lisboa, Página a Página, 2021, 633pp;

Metafísica e Ontologia, Lisboa, Página a Página, 2022, 413pp;

Ontologias da «Práxis» e Idealismo, 2ª edição revista e aumentada, Lisboa, Editorial Avante, 2023, 409pp.

 

 

PROGRAMA

 

Introdução

1. Mito, filosofia e felicidade: Manuel Antunes e o método da busca da definição

2. O primado da ontologia: Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura

3. O primado da mística: Francisco da Gama Caeiro

4. Duas visões da Idade Média: Joaquim Cerqueira Gonçalves e Francisco da Gama Caeiro

5. O valor da história da filosofia: Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura

6. O problema do ateísmo contemporâneo: Manuel da Costa Freitas

7. O problema do valor da filosofia: José Barata-Moura

 
 

AVALIAÇÃO

 

A classificação final do aproveitamento individual depende da avaliação dos 3 seguintes elementos obrigatórios:

1) Apresentação oral do trabalho em projecto, sobre um dos autores contemplados no programa (45%) — título, resumo e abstract, índice de tópicos a desenvolver, bibliografia — em aulas agendadas para a apresentação dos projectos;

2) Participação nas aulas agendadas para a discussão de tópicos leccionados (10%);

3) Trabalho concluído e escrito (45%), a ser enviado até à penúltima aula.

 

Na impossibilidade de realizar os elementos da avaliação contínua, a/o estudante pode obter a classificação final do aproveitamento na disciplina, através de uma prova escrita sobre o curso leccionado, a decorrer na última aula.

 
 

BIBLIOGRAFIA

 

I. Obras dos Mestres

ANTUNES, Manuel. Obra Completa. Tomos I-VII, 14 vols. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005-2012. O programa incide sobre o Tomo I, vols. I-II.

BARATA.MOURA, José. Kant e o conceito de Filosofia. Lisboa: Sampedro, 1972. (2ª ed. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007).

—. Totalidade e contradição. Acerca da dialéctica. Lisboa: Livros Horizonte, 1977 (2ª ed. aumentada. Lisboa: Editorial Avante, 2012).

—. Ontologias da «práxis» e idealismo. Lisboa: Editorial Caminho, 1986.

—. “A Objectividade como Categoria Filosófica. Subsídios para uma caracterização.” Philosophica. Lisboa: Edições Colibri e Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), 1 (1993): 13-30.

—. “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?” Philosophica, Lisboa: Edições Colibri e Departamento de Filosofia da FLUL, 6 (1995): 51-69.

—. Estudos sobre a ontologia de Hegel. Ser, verdade, contradição. Lisboa: Editorial Avante, 2010.

—. Filosofia em «O Capital». Uma aproximação. Lisboa: Editorial Avante, 2013.

—. Marx, Engels e a Crítica do Utopismo. Lisboa: Editorial «Avante!», 2015.

—. “Traços do pensar filosófico.” Philosophica. Lisboa: Departamento de Filosofia e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 45 (2015): 7-19.

—. As Teses das «Teses». Para um exercício de leitura. Lisboa: Editorial «Avante!», 2018.

—. Metafísica e Ontologia. Lisboa: Página a Página, 2022.

CAEIRO, Francisco da Gama. Santo António de Lisboa. Vols. I-II. Lisboa: INCM, 1995.

—. Dispersos. Vols. I-III. Lisboa: INCM, 1998-2000.

FREITAS, Manuel da Costa. O Ser e os Seres. Itinerários Filosóficos. Vols. I-II. Lisboa: Editorial Verbo, 2004.

GONÇALVES, Joaquim Cerqueira. Homem e Mundo em São Boaventura. Braga: Editorial Franciscana, 1970.

—. Itinerâncias da Escrita. Vols. I-III. Lisboa: INCM, 2011-2015.

 

II. Obras sobre os Mestres

AAVV (Docentes de Filosofia da FLUL). Ao Encontro da Palavra. Homenagem a Manuel Antunes. Lisboa: Faculdade de Letras (Filosofia), 1986.

AAVV. Pensar a Cultura Portuguesa. Homenagem a Francisco da Gama Caeiro. Lisboa: Edições Colibri e Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1993.

AAVV. Itinerarium. Homenagem a Manuel Barbosa da Costa Freitas (1928-2010). Ano LVI (Lisboa, 2010): 169-743.

AAVV, Florilégio Medieval: Itinerários Filosóficos com Joaquim Cerqueira Gonçalves. Revista Quadrimestral de Cultura publicada pelos Franciscanos de Portugal, Ano LXII nº especial (Maio-Dezembro 2016) nº 215/216.

DEPARTAMENTO e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, orgs. Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves. Lisboa: Edições Colibri, 2001.

FRANCO, José Eduardo e Hermínio Rico, coords. Padre Manuel Antunes (1918-1985). Interfaces da cultura portuguesa e europeia. Lisboa: Campo das Letras e Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, 2007.

—, José Eduardo e Guilherme d’Oliveira Martins (coord. científica), Susana Alves-Jesus (coord. executiva). Repensar Portugal, a Europa e a Globalização: Saber Padre Manuel Antunes, SJ - 100 Anos. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022.

SERRÃO, Adriana Veríssimo, João Rui Pereira, José Gomes André e Rui Filipe, eds. Nos Horizontes da Razão. Homenagem a José Barata-Moura. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2020.

REIMÃO, Cassiano e Manuel Cândido Pimentel, org. e coord. Os Longos Caminhos do Ser. Homenagem a Manuel Barbosa da Costa Freitas. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2003.

XAVIER, Maria Leonor, coord. Francisco da Gama Caeiro. A presença 20 anos depois. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2014.

—. Filosofia com Coração. Um Livro Pessoal em Louvor de Outras Pessoas. Edição revista e aumentada. Lisboa: MIL e DG Edições, 2023.

 

AULAS

 

Aula nº1 (2ª feira: 22/01/24)

Os Nossos Mestres: quem são? Manuel Antunes, Francisco da Gama Caeiro, Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura.

O programa: bibliografia expandida.

 

 

Aula nº2 (5ª feira: 25/01/24)

O programa: conteúdos; organização das aulas; avaliação.

 

 

Aula nº3 (2ª feira: 29/01/24)

1. Mito, filosofia e felicidade: Manuel Antunes e o método da busca da definição. Uma filosofia da cultura. Cultura e civilização: afinidade e distinção conceptual; ritmos de esgotamento e renascença da cultura. O mito: as teorias e a definição antunesiana de mito; Manuel Antunes e Georges Gusdorf, como filósofos do mito.

 

 

Aula nº4 (5ª feira: 1/02/24)

1. Mito, filosofia e felicidade: Manuel Antunes e o método da busca da definição. A filosofia: os modelos socrático e platónico da filosofia, segundo Manuel Antunes; a filosofia acima da sabedoria. A busca humana da felicidade e o conceito antunesiano de Eudemonismo integral.

 

 

Aula nº5 (2ª feira: 5/02/24)

Leitura partilhada e comentada de textos.

 

Cultura e civilização

 

Cultura, a «acção que o homem realiza de si, por si e sobre si, em ordem a uma transformação no sentido ascencional, do melhor» (Antunes, 2011a: 92)

 

«Cultura diz mais respeito ao homem individual; Civilização, mais ao homem colectivo. Embora se possa falar com verdade da cultura dum grupo, por exemplo, da cultura da nossa geração de 1870 (Antero de Quental, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, etc.), embora se possa falar da cultura duma classe, da aristocracia, da burguesia ou do proletariado, numa palavra, da cultura dum povo, como o alemão, grego, latino, francês, inglês, português, cultura, no entanto, diz respeito antes de mais nada à acção que o homem realiza de si, por si e sobre si, em ordem a uma transformação no sentido ascencional, do melhor. Cultura é mais do domínio do subjectivo e civilização é mais do domínio objectivo. Em termos hegelianos, cultura é expressão do espírito subjectivo e civilização expressão do espírito objectivado. Cultura é mais teoria, ou seja, contemplação, e Civilização é mais técnica (de τέχνη). Cultura é mais da ordem do ser e Civilização, da ordem do ter (Gabriel Marcel, Être et Avoir). A Cultura existe substantivada no homem e a Civilização é mais adjectivada no homem. Logo, a Cultura pertence às concepções do mundo e da vida ensinadas ou expressas na filosofia, na arte, na literatura, na religião, nas reflexões sobre as ciências e as técnicas, as invenções. A Civilização, por seu lado, pertence às realizações práticas destas diversas criações de cultura. Por exemplo, as leis electromecânicas pertencem à cultura, enquanto descobertas, enquanto pensadas e essas mesmas leis enquanto aplicadas, por exemplo, à tracção do comboio, são já do domínio ou pertencem à civilização, à técnica. – O conceito de cultura e de civilização traduzem e interpretam realidades distintas, em parte, mas que habitualmente vão unidas e não separadas e que são diálogo e que o espírito em diálogo traduz.» (Antunes, 2011a: 92-93).

 

«A cultura encontra-se no ponto de partida da civilização e, por sua vez, a civilização, cultura realizada, objectivada, é ponto de partida de nova cultura.» (Antunes, 2011a: 93)

 

«Habitualmente unidas, cultura e civilização podem existir, todavia, separadas. Actualmente, suponhamos, um monge tibetano pode ter uma altíssima cultura e escassíssima civilização. Em contraposição, um burguês americano riquíssimo pode estar na posse das maravilhas da civilização, tendo apenas uma cultura mínima ou sendo, quiçá, inculto. Um grego do século de Péricles, Sócrates, por exemplo, que no dizer de Nietzsche constitui o gonzo, pelo menos da história ocidental, mostra-nos que, apesar de volvidos já vinte e quatro séculos, comparado com um burguês inculto, dos nossos dias, é possível dissociar as duas realidades: cultura e civilização. Sócrates, homem culto mas pouco civilizado, é a antítese do burguês de hoje, homem civilizado mas pouco ou nada culto.» (Antunes, 2011a: 93).

 

«Culturalmente, quem somos nós? A nós europeus, com orientação universalista, fizeram-nos três realidades, três forças maiores: o Helenismo no pensamento, na ciência e na arte, Roma na estruturação jurídico-política, o Cristianismo na visão religiosa.» (Antunes, 2011a: 87)

 

«A cultura europeia processa-se ou parece processar-se num ritmo geral, de pontos extremos: esgotamento – renascença, sucedendo-se ciclicamente. Ao esgotamento do romanismo, acontecido com a queda do Império Romano, sucedeu, depois de séculos, a Renascença carolíngia dos séculos VIII e IX. Ao novo esgotamento dos séculos X e XI sucedeu a Renascença dos séculos XII e XIII. Ao esgotamento do século XIV sucedeu a Renascença dos séculos XV e XVI. Ao esgotamento do século XVIII sucedeu a Renascença do Romantismo. Ao esgotamento dos tempos modernos uma nova Renascença parece suceder. Esgotamento e Renascença são, pois, os dois ritmos da cultura europeia.» (Antunes, 2011a: 87-88)

 

 

Mito

 

Manuel Antunes (1918-1985)

 

«O povo grego que foi certamente um dos povos mais brilhantes da história, senão o mais inteligente, foi também o povo mitificador por excelência, o povo criador de mitos. Por isso, não se compreende, neste caso absolutamente típico do povo grego, que o mito seja uma resultante ou fruto da ignorância e da má-fé. Que direito temos nós para supor de má-fé, por exemplo, os três grandes trágicos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, todos eles utilizadores de mitos, ou para afirmar que Hesíodo é um autor de má-fé, quando todo ele nos aparece transparente? Temos fundamentos para supor de má-fé um Platão ou um Plotino, também utilizadores do mito, em larga escala? Seguramente que não. Portanto o mito não pode ser fruto nem da ignorância nem da má-fé e quem assim o apresenta demonstra simplesmente uma grande incompreensão das realidades poéticas. Há pessoas que são insensíveis ao mito, porque são insensíveis à imagem e ao símbolo, insensíveis à poesia, da mesma forma que há outras insensíveis à música e para quem esta não passa de um ruído um tanto mais tolerável. As pessoas para quem o mito é a resultante da ignorância e da má-fé são, pois, espíritos estreitos e insensíveis.» (Antunes, 2011b: 20).

 

«Mito é a projecção num espaço ideal objectivo de visões fantásticas, de terrores, de desejos, de aspirações, de explicações do universo e da vida a um primeiro nível (de imaginação), projecção essa que o homem realiza em formas sensíveis, sobretudo humanas.» (Antunes, 2011b: 29)

 

«Mito é a “projecção num espaço ideal objectivo”, isto é, uma acção do espírito humano que não é inerente, não fica em si mesma, antes, começando dentro de si mesma, projecta-se para fora num espaço ideal objectivo e não físico. O mito … “de visões fantásticas”, ou seja, essas visões fantásticas que povoam o espírito da humanidade desde o homem primitivo aos nossos dias, das quais nos lembramos nos nossos sonhos de criança mas a que não corresponde verdadeiramente nada de real, pois são visões da imaginação e não ideias da razão. O mito … de “terrores”, isto é, esses terrores antiquíssimos que habitam o espírito do homem sobretudo na sua infância. O mito de “desejos”, isto é, quantas vezes a nossa vida se desdobra em duas, uma real, não raro de horizontes estreitos e muito limitados, monótona, sempre igual, e outra criada por nós como uma superestrutura, uma outra vida com tanta ou mais realidade que a vida de horizontes estreitos. Pelo limitado da nossa vida real somos naturalmente levados a criar essa superestrutura de vida que é o mundo dos nossos desejos e aspirações. – Quantas aspirações que não podemos realizar e que muitas vezes convertemos em mito dentro de nós! – O mito… de “explicações do universo e da vida a um primeiro nível”, isto é, o homem, ao encontrar-se no mundo, procura explicá-lo e explicar-se a si mesmo não em termos nem ao nível da razão, mas sim em termos e ao nível da imaginação.» (Antunes, 2011b: 29).

 

«E donde vem ao homem esta função de criar mitos? Em primeiro lugar, da sua natureza ou essência e em segundo, da sua condição.» (Antunes, 2011b: 29)

 

«O homem é um composto de alma e corpo, mas não um composto somatório de “corpo+alma”. O homem não é sequer, como queria a escola platónica e a cartesiana, uma alma habitando um corpo, como habitamos uma casa ou como o marinheiro habita o navio. As duas realidades componentes do homem, corpo e alma, não estão numa relação de continente e conteúdo e vice-versa. O homem, na definição de Malebranche, é essencialmente um espírito encarnado, isto é, uma alma que informa uma certa parcela de matéria e que através dela entende e sente. Assim se explica o facto de natureza psicológica de não possuirmos ideias sem imagens. Uma ideia é forçosamente acompanhada por uma imagem, ou, na inversa, uma imagem está sempre subjacente a uma ideia.» (Antunes, 2011b: 29-30).

 

«O homem é um ser inserto no mundo e que dele procura levantar-se. Na definição de Heidegger “Dasein ist in der-Welt-Sein”, a essência do homem é ser no mundo, há nele uma relação essencial de inserção ao mundo. Como complemento a essa definição heideggeriana, segundo a qual o homem está inserto no mundo, é preciso acrescentar que, inserto no mundo, o homem procura levantar-se dele. O homem não existe no mundo como a planta ou como o animal totalmente mergulhados nele. Na linguagem heideggeriana, o homem é “ex-sistentia”, é um estar como que erguendo-se. O homem “ex-siste” (existe), emerge ou tenta emergir do mundo.» (Antunes, 2011b: 30).

 

«Desta emergência ou “ex-sistência” ou, pelo menos, da tentativa sucede ao homem, ao querer transcender o puro concreto ou imediato, a circunstância mais estreitamente circundante, cair mais além nas coisas, projectar-se ou derramar-se nelas. E quando desta queda, projecção ou derrame, o homem volta ou regressa a si, cria numa primeira consciência directa o mito.» (Antunes, 2011b: 30)

 

«Por outras palavras, o mito é a primeira forma da dialéctica entre o homem e a natureza, uma dialéctica de desintegração e reintegração do homem no mundo.» (Antunes, 2011b: 30)

 

 

Georges Gusdorf (1912-2000)

 

«Se a afirmação primeira do homem o separa do mundo, parece, portanto, que a consciência mítica tenha por função reintegrá-lo no universo. Ex-sistência significa secessão. Mas a consciência mítica opera a reunião dando à realidade um sentido humano. Os mitos desenham uma imagem do mundo em reciprocidade com uma medida primeira do homem.» Georges Gusdorf, Mythe et Métaphysique. Introduction à la Philosophie (1953) (Ed. rev. e aum. Paris: Flammarion, 1984), 66.

 

O mito não se situa fora do real, uma vez que ele se apresenta como uma forma de estabelecimento no real. Ele formula um conjunto de regras precisas para o pensamento e para a acção. Se o observador moderno nele se encontra frequentemente perdido, o indígena, por seu lado, encontra-se nele bem orientado e nele pode evoluir com facilidade, enquanto que, pelo contrário, o novo meio da técnica ocidental é para ele um perpétuo motivo de escândalo. — Longe de ser desrealizante (déréistique), o mito constitui um formulário ou uma estilística do comportamento humano na sua inserção entre as coisas. A filosofia esforça-se por redobrar o mundo. Ela constitui um mundo em ideia. O mito permanece à flor da existência. Ele é por essência um pensamento não desprendido das coisas, ainda meio incarnado. A palavra adere à coisa; o nome não designa apenas, ele é o próprio ser. Assim, o mito não se basta, não se fecha sobre si. Ele é sempre relativo a um contexto existencial, estreitamente apoiado e como que integrado na paisagem que ele tem por função pôr no lugar.» G. Gusdorf, Mythe et Métaphysique, 66-67.

«Parece-nos, portanto, que a filosofia não deve romper com a consciência mítica. O nascimento da reflexão retira-lhe a sua validade dogmática e redu-la a uma soberania constitucional de certa maneira, quer dizer limitada pelo exercício da crítica racional. Tal como em Kant a censura crítica não põe fim à exigência metafísica, assim também a consciência mítica conserva, do lado de lá do jogo do entendimento, um papel fundamental. Ela já não se manifesta sob a forma de mitos propriamente ditos, pois todo o pôr em forma se prova insuficiente e falível. O sentido toma dianteira sobre a imagem, a intenção sobre a expressão. Reduzida assim ao essencial, a consciência mítica intervém como o fulcro (foyer) das formas humanas, o princípio último das nossas afirmações. Ela tende a identificar-se com a consciência dos valores, reguladora do ser no mundo, que se subtrai a toda a tomada directa do pensamento, porque ela orienta todo o pensamento. Se a mitologia é uma primeira metafísica, a metafísica deve ser compreendida como uma mitologia segunda. A intervenção do valor consagra o compromisso (l’engagement) do homem no mundo, a unidade da antropologia e da cosmologia na comum obediência de ambas a um princípio transcendente que define a condição humana.» G. Gusdorf, Mythe et Métaphysique, 337.

 

«O mito propõe todos os valores, puros e impuros. Não lhe cabe autorizar tudo o que sugere. A nossa época conheceu o horror do desencadeamento dos mitos do poder e da raça, quando o seu fascínio se exercia sem controlo. A sabedoria é um equilíbrio. O mito propõe, mas é a consciência que dispõe. E é talvez porque um racionalismo demasiado estreito se gabava de desprezar os mitos, que estes, permanecendo sem controlo, se tornaram loucos. Tanto quanto o reconhecimento dos mitos não é a rejeição da razão, assim também não é a recusa da moral. Bem pelo contrário: as grandes épocas de civilização definiram sempre sob a forma de um ideal mítico o seu estilo de vida. O guerreiro espartano, o Ateniense polido, o cidadão romano, o cavaleiro medieval, o humanista, o homem honrado (l’honnête homme) apresentavam para um tempo dado o tipo da excelência humana em forma de mito, incarnando os mais altos valores. E mesmo os modelos de toda a sabedoria militante, o génio, o santo, o herói recebem o seu nome de homens reais, mas revestindo o seu personagem de uma perfeição formal que releva mais do mito do que da história. — A mitologia fornece, portanto, um inventário das possibilidades humanas, uma escrita cifrada desenvolvendo todas as intenções implícitas constitutivas do ser no mundo.» G. Gusdorf, Mythe et Métaphysique, 357.

 

 

Filosofia

 

«A literatura é a expressão mais completa de um povo, sobretudo tratando-se da literatura grega. – A Filosofia, a expressão cultural altíssima, é no seu sentido rigoroso e específico criação grega, criação helénica, que se realiza dos começos do século VI a fins do século IV a.C. com grande esplendor. Este período de três séculos tem um centro: SÓCRATES. No dizer de Heidegger, a Filosofia fala grego.» (Antunes, 2011c: 536)

 

Sócrates

 

«Para o pequeno número dos discípulos, Sócrates era o mestre bem-amado que os havia instruído no caminho novo da sophía (sabedoria), um caminho que estava dentro e não fora, um caminho ético e não físico, um caminho individual e não para todos, e daqui se explica que cada um desses discípulos tenha visto o mestre de maneira tão diversa.» (Antunes, 2011c: 548)

 

«Para as idades subsequentes, Sócrates foi e é o segundo pai da Filosofia ou, para melhor dizer, o seu autêntico criador, se definirmos Filosofia como um saber reflexo simultaneamente anterior e posterior às outras formas de saber: anterior porque fundando-se as funda; posterior justamente porque reflexo. E, sem dúvida alguma, Sócrates é esse fundador.» (Antunes, 2011c: 548)

 

Platão

 

«Platão aparece-nos como um mundo, um mundo que recapitula e um mundo que inicia: um mundo que recapitula o que de mais significativo fora dito desde Homero a Píndaro, um mundo que recapitula sobretudo as grandes aspirações de Tales a Sócrates; e, por outro lado, um mundo que inicia a reflexão filosófica como aproximação do real em totalidade, como explicação harmónica de Deus, do homem e do universo, como procura de sistematização dos elementos mais diversos e mais opostos dos seres e do ser, dos seres no ser. — Porque tão vasta e tão profundamente recapitulou o que estava dito e iniciou novos caminhos, se compreende a influência exercida por Platão na cultura do Ocidente. Esta fez-se em boa parte em dependência dele: desde a teologia às artes plásticas, desde a filosofia à política, desde a espiritualidade à literatura, o platonismo tem estado presente nestas tão várias e variadas formas de cultura.» (Antunes, 2011c: 560)

 

Séneca

 

«[…] na sua obra manifestará influências estóicas, antes de mais nada, mas também epicúreas, platónicas, cínicas, cépticas, socráticas, pitagóricas e até aristotélicas, de modo que lhe será lícito a ele afirmar com verdade não exaustiva: “Posso disputar com Sócrates, duvidar com Carnéades, tranquilizar-me com Epicuro, vencer a natureza humana com os Estóicos, superá-la com os Cínicos” – aberto a todas as correntes, tanto que certos superficiais historiadores das ideias lhe darão o título, cómodo, de «ecléctico» e, ao mesmo tempo, tão pessoal no gesto e na atitude, frente ao mundo e frente à vida, que ele poderá erguer-se como um grande símbolo, perene, senão da philosophia ao menos da sophia.» (Antunes, 2007b: 193).

 

«Aconteceu [a trajectória mundana da sua existência] porque este homem espantosamente dotado que esteve mais perto que Platão de poder realizar o velho sonho da República, do Rei-Filósofo ou do Filósofo-Rei, experimentou com outro realismo e sentiu com outra fundura o precário da rerum humanarum condicio. E daí o procurar, nos templa serena da «sabedoria», como dissera o epicúreo Lucrécio, a segurança para a sua radical insegurança, a «consolação» para o mal de existir, a coragem para enfrentar a morte e superar a angústia que a sua sombra projecta no tempo, a serenidade para emergir acima do fluxo das coisas que, tumultuosas ou perturbadas, se vão para sempre ou para nunca mais, a firmeza para aguentar as vagas do temor e da vacilação, a lucidez para discernir, na floresta dos possíveis, um caminho, a liberdade acima da escravidão do mundo e da ignorância da vida, numa palavra a disposição de consentimento geral ao Ser e à Necessidade, à Razão e à Natureza, à Divindade e ao Destino.» (Antunes, 2007b: 193).

 

 

Felicidade

 

«Na realidade, no estado presente da consciência e da filosofia éticas podem distinguir-se principalmente os seguintes tipos de Eudemonismo: Eudemonismo sensível, sinónimo de hedonismo, e Eudemonismo intelectual, que põe a felicidade no conhecimento racional; Eudemonismo individual, que busca, primária ou exclusivamente, a felicidade do indivíduo, e Eudemonismo social, que busca, antes de mais, a felicidade colectiva; Eudemonismo natural, que põe o sumo bem na natureza, e Eudemonismo sobrenatural, que põe o sumo bem nos dons da graça e no Autor desses dons; Eudemonismo estético, que coloca a felicidade na contemplação da beleza, e Eudemonismo ético, que a situa no cumprimento do dever e da virtude; Eudemonismo parcial, que se fixa em qualquer destes aspectos com exclusão de outros, e Eudemonismo integral, que os admite a todos estabelecendo entre eles uma certa hierarquia. – É este último que se intenta defender aqui. […]. Dever e beatitude, desinteresse e perfeição, inteligência e amor, transcendência e imanência, não se excluem nem se opõem. Por isso, só o Eudemonismo é racional; só o Eudemonismo se encontra de acordo com os dados da Revelação bíblica, do Antigo e do Novo Testamento, que está longe tanto da moral egoísta como da moral da facilidade. É significativo, por isso mesmo, que o Antigo Testamento utilize umas cem expressões para designar «felicidade» e que o Novo Testamento use não menos de cinquenta, a começar pelas «bem-aventuranças» do Sermão da Montanha.» (Antunes, 2007c: 94-95)

 

«O conflito que Kant pretendeu estabelecer, mesmo bastante antes de usar o termo «Eudemonismo», entre a moral do dever e a moral da felicidade, é um pseudoconflito. Com efeito, ou o termo «felicidade» se toma em sentido exclusivamente utilitarista ou hedonista, e então Kant não faz mais que condenar aquilo que grande parte da filosofia grega – pitagorismo, platonismo, aristotelismo, estoicismo –, a Revelação bíblica, a tradição cristã – patrística, medieval e moderna – e a filosofia pós-renascentista, na sua maioria, tinham condenado, ou o termo «felicidade» se toma no sentido de perfeição da natureza racional do homem, das suas dimensões sociais e das suas aspirações a uma plenitude que ela não possui, e, nessa hipótese, não se vê como a tendência para a felicidade seja inconciliável com uma verdadeira atitude ética por parte do mesmo homem.» (Antunes, 2007c: 95).

 

 

 

Aula nº6 (5ª feira: 8/02/24)

Leitura partilhada e comentada de textos.

Discussão dos temas abordados.

 

Guia de perguntas para a discussão:

a) Que entendia Manuel Antunes por cultura? Reflectir sobre a pertinência da definição antunesiana de cultura.

b) Que relação e diferença entre os conceitos de cultura e de civilização, segundo Manuel Antunes?

c) Donde o interesse de Manuel Antunes pelo tema do mito?

d) Qual a origem do mito, segundo Manuel Antunes?

e) Qual a definição do mito, segundo Manuel Antunes?

f) Como caracterizar Manuel Antunes, enquanto teorizador do mito? Comparação possível, por afinidade, com Georges Gusdorf.

g) Qual o valor da filosofia para Manuel Antunes?

h) Como é que Manuel Antunes define a filosofia, a propósito dos filósofos clássicos Sócrates e Platão? Reflectir sobre a pertinência das definições apresentadas.

i) Como é que Manuel Antunes distingue entre filosofia e sabedoria, a propósito do romano Séneca? Reflectir sobre a pertinência da distinção sugerida.

j) Como é que Manuel Antunes lida com o tema da felicidade, através do seu conceito de “eudemonismo integral”?

k) Manuel Antunes é um helenista cristão: como coexistem e se articulam, no seu pensamento filosófico, o helenismo e o cristianismo? Comparação possível, por contraste, com Friedrich Nietzsche.

 

 

2ª feira: 12/02/24 — Carnaval

 

Aula nº7 (5ª feira: 15/02/24)

2. O primado da ontologia: Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura. Joaquim Cerqueira Gonçalves: da filosofia da cultura à ontologia, ou o «solo ontológico» da cultura; da ontologia à teologia, ou o modelo trinitário do ser.

 

 

Joaquim Cerqueira Gonçalves (n. 1930)

 

Da filosofia da cultura à ontologia: o «solo ontológico» da cultura

 

«A razão humana não é um espaço puro e asséptico, mas revela-se na construção cultural, mesmo que a fonte desta, insista-se, não seja de índole simplesmente cultural, mas ontológica.» J. Cerqueira Gonçalves, “Verdade e Infalibilidade Teológica” (2004), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem. Lisboa: INCM, 2011, p.168.

 

«Com efeito, não cabendo a acção humana dentro dos padrões de uma natureza concebida nos quadros de um exercício uniforme e definitivamente orientado, o recurso à instância da cultura impõe-se de modo irrecusável, tornando-se a passagem pelos moldes da cultura ainda mais imperiosa do que a sujeição às regularidades naturais. O paradoxo refina-se, quando se procura, por vezes dramaticamente, mas sempre em experiência de manifesta actividade cultural, a naturalização da cultura. Afinal, a consciência e a impressão do estatuto de ser cultural, em que se enraíza a própria ideia de liberdade, é que tem feito da existência humana uma exalação de angústia, precisamente a injunção de ser livre, de o homem ser obrigado a construir a sua própria vida, de assumir a responsabilidade, de poder ser diferente do que é, de ser terreno de infinitas possibilidades, de errar e se aniquilar.» Idem, “Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.32.

 

«Se é certo que, ao contrário do que habitualmente se pensa, a racionalidade científica pode ser vista no seguimento lógico da racionalidade filosófica ocidental, tem de reconhecer-se que pela filosofia tem passado a principal missão de desconstruir, hermeneuticamente, a ciência e a cultura.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.134.

 

«As religiões, ainda as que são consideradas de teor naturalista, são indeclináveis e significativas expressões culturais, assumindo quase sempre funções salvíficas. Nesse contexto, os valores exercidos pelas religiões confundem-se, muitas vezes, com o próprio alcance redentor, por assim dizer, laico que se atribui à cultura.» Idem, “Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.34.

 

«Quando se interpreta a religião como um recurso para superar a finitude, o mal, a culpa ou a morte, tal significa que lhe são atribuídas funções culturais ou, pelo menos, finalidades que a cultura a si mesma propõe.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.149.

 

Tendências da filosofia da cultura vs. natureza: «Desta complexa e enigmática vivência da cultura é possível sintetizar algumas das tendências marcantes que a têm acompanhado: a cultura é vitória sobre a natureza, enquanto realidade imperfeita ou mesmo adversa e má, procurando a libertação dela, pela irradiação da racionalidade sobre o seu suposto caos; em sentido oposto, a cultura confunde-se com o mal, em contraste com a bondade da natureza, a que é forçoso regressar, passando embora pelos artificiais trilhos da cultura.» Idem, “Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.32.

 

«Movimentamo-nos, contudo, sobre um enorme equívoco, já porque nada há que seja apenas natural ou puramente cultural, já porque o ancoradouro tem de ser mais radical do que o solo da natureza. Não há que empreender um regresso à natureza, mas, sim, um acesso ao ser, não com intenções de refúgio, mas de manifestação e desenvolvimento.» Idem, “Ser, Natureza e História. A exortação medieval à manifestação” (2000), Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, pp.83-84.

 

«A lógica da nossa reflexão impede-nos de partir do binómio natureza/cultura, por o não considerarmos radical, substituindo-o pela unidade do ser, de que as naturezas e as culturas são expressões.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.146.

 

«Concedendo que tudo, no mundo, passa pelas formas culturais, daí não pode ser concluído que estas sejam originárias e terminais. Por isso mesmo, os elementos que as compõem, em vez de constituírem estruturas fundadoras, susceptíveis de serem estudadas cientificamente, são, antes, vectores dinamizadores do movimento dessas mesmas culturas, num constante processo hermenêutico, de chegar à origem e ao termo delas.» Idem, “Medievalidade. Crise ou hiato?” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.73.

 

«Húmus ontológico»: «Todas as categorias, que vimos analisando, são, assim, reformuladas, na sua inserção no húmus ontológico, desde as noções de natureza, de cultura, de revelação, de criação e mesmo de redenção.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.144.

 

«Solo ontológico»: «Até este momento, temos dirigido o pensar para as múltiplas possibilidades de interpretação, abertas pelo texto bíblico, bem como para as condições de possibilidade dele, designadamente as de ordem cultural, conscientes, porém, de que as formas da cultura nunca constituem ponto de partida radical, onde se possa procurar a determinante derradeira. Fomos, por isso, orientados para o solo ontológico, fora do qual nada pode ser pensado, já que ele representa a possibilidade de todas as possibilidades. É neste sentido que os escolásticos consideravam o ser como objecto primeiro do pensamento. Todas as modalidades de manifestação – o necessário, o possível e o real – só podem ser vistas no horizonte do ser.» “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.140.

 

«Tratando-se, porém, de uma experiência tão irrecusável, a rejeição, quase sistemática e contundente, de uma ontologia, na especulação ocidental, sobretudo a partir da modernidade, atinge as raias do paradoxo. É verdade que se nega mais a validade de um saber sobre tal experiência do que propriamente a irrecusabilidade desta, que, de certo modo, foi tematizada desde Parménides.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.141.

 

«Mas se, fora da luz do ser, nada pode ser entendido pelos humanos, ainda a vida destes, torna-se imperioso clarificar, minimamente, para dar consistência ao exercício do conhecer e do pensar, a nossa experiência do ser, que, para além de constituir a condição de todo entendimento, é um dado irrecusável da experiência humana.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, pp.140-141.

 

«Toda a nossa actividade, no consentimento, na revolta ou no desespero, é sempre uma afirmação do ser, fonte de todas as formas em que se exprime.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.141.

 

«Por outro lado, as irrecusabilidades podem existir, sem que haja consciência delas, já por excederem a própria consciência, já porque entre elas e esta se interpõem muitos factores que impedem de serem vistas. Tanto para a experiência do irrecusável como para a consciência dela, é necessário uma aprendizagem, quer da vida, quer da mente, de que se ocupa, em larga medida, a actividade filosófica.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.141.

 

«Ora, se tentarmos descrever a experiência do ser, ela aparece-nos, também irrecusavelmente, como uma actividade de manifestação, na qual participamos nós e todos os outros entes.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.141.

 

 

Da ontologia à teologia: o modelo trinitário do ser

 

O argumento ontológico

«Para nós, todavia, ele é o desenvolvimento da irrecusabilidade do ser, numa manifestação axiológica, sem deixar de ser ontológica, tendo no Ser divino a sua expressão absoluta.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.148.

 

«A ideia é mais um horizonte e um estímulo do espírito do que um objecto duma faculdade intelectiva. Neste sentido, ela é mais ampla do que a vida do próprio espírito e por isso se alude a ela como a um ideal para a conduta ética. Não obstante um certo equívoco proveniente de Platão, o qual, devido à importância conferida a critérios de natureza científica e à valorização do finito, parecia reduzir a ideia à determinação conceptual, ela disfruta já no pensador grego dos caracteres que lhe estamos a apontar. Por isso, o grande criador da doutrina das ideias não referenciava estas às coisas, mas sim à vida moral, à virtude, curando particularmente da ideia de justiça. A ideia duma coisa facilmente degenera no conceito da mesma presente na inteligência, enquanto a ideia de justiça se vem a identificar com a ordenação da própria vida do espírito em direcção ao absoluto. A interpretação axiológica da filosofia platónica, que também será aplicada ao argumento anselmiano, realça ainda melhor as características da ideia. Esta representa, fundamentalmente, o horizonte universal da participação do espírito humano no ser. Não subsiste aqui a dificuldade da passagem do plano lógico para o ontológico, pois a ideia, ao contrário do conceito, que é um produto do espírito, acompanha o modo de existência deste.» Idem, “O Deus do Homem. A aposta de Santo Anselmo e a nossa” (1973), in Itinerâncias da Escrita, vol. II – Hermenêutica/ Filosofia. Lisboa: INCM, 2013, pp.247‑248.

 

«Vem em primeiro lugar a decisão de querer ser ou não. Depois, a de querer o valor maior, sempre informado pela estrutura do ser, que é a capacidade de manifestação.» Idem, “O Deus do Homem. A aposta de Santo Anselmo e a nossa” (1973), in Itinerâncias da Escrita, vol. II – Hermenêutica/ Filosofia, p.250.

 

«De facto, ao limite, o argumento de Anselmo representa um dilema entre consentir no ser ou aniquilar‑se, isto é, decidir não pensar, o verdadeiro suicídio humano, ou a preferência por um ser não pensante. A misologia é uma autêntica necrofilia.» Idem, “O Deus do Homem. A aposta de Santo Anselmo e a nossa” (1973), in Itinerâncias da Escrita, vol. II – Hermenêutica/ Filosofia, p.250.

 

«O não pensar e a inversão dos valores, isto é, a recusa duma referência ao absoluto, constituem o pecado ontológico, mais comummente designado pecado contra o espírito, pois equivale à revolta contra a luz irradiada pela actividade do mesmo espírito.» Idem, “O Deus do Homem. A aposta de Santo Anselmo e a nossa” (1973), in Itinerâncias da Escrita, vol. II – Hermenêutica/ Filosofia, p.252.

 

Unificação, diferenciação e universalização

«Não deve, contudo, perder-se de vista as estruturas fundamentais de cultura, ainda que de difíceis contornos definidores, pela multiplicidade de elementos que a integram. Por isso, mesmo sem se nutrir pruridos de uma rigorosa definição, que requereria um plano unívoco, difícil de apurar em instância tão complexa, consideramos cultura a actividade – tal como o resultado dela –, pela qual se elabora um mundo, isto é, uma totalidade organizada, o mais una, diferenciada e universal possível. É nela que se organiza o sentido da vida humana e de toda a realidade.» Idem, “Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.36.

«Mais ainda, a construção cultural do mundo é feita com determinação, com o sentido de perenidade, em demanda de uma obra com intuitos de permanência, sem que deste processo, todavia, se possa concluir que o mundo não sofra modificações, pedidas pela dinâmica de unificação, de diferenciação e de universalização. É por isso que, sem se esquecer a importância do resultado, o mundo constituído, seria bom insistir no movimento de mundanização, em constante abertura, na intencionalidade de uma realização cada vez mais conseguida.» Idem, “Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.36.

«Sendo a noção de cultura enormemente polissémica, entra, todavia, sempre, no âmago da sua tarefa, a construção de uma unidade orgânica de valores, que designamos, geralmente, por mundo. Se bem se trate de uma dinâmica axiológica, aliás de enraizamento ontológico, propendendo para uma plenitude de realização, que passa por um processo concomitante de unificação, universalização e diferenciação, a cultura, além de ser constitutivamente manifestação plural – não há cultura, mas, sim, culturas –, tende, ainda, a formalizar-se, fechando-se circularmente, no seu próprio sistema.» Idem, “Cristianismo e Cultura”(2001), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.129.

 

«Não obstante os desígnios soteriológicos terem logrado, na tradição da vida e da exegese, um lugar preferencial, o conteúdo da Bíblia nunca foi interpretado, em exclusivo, nesse horizonte, sobretudo na hieraquização teórica levada a efeito pela teologia. A manifestação da vida de Deus sobrepôs-se a quaisquer outras finalidades, atingindo a sua plenitude em Jesus Cristo, o Verbo encarnado da Trindade, que revelou a Divindade, sobretudo quando se manifestou, na encarnação. Esta revelação, a da manifestação da vida trinitária de Deus, que, na Escritura, ocupa a prioridade absoluta, insere-se, com a máxima coerência, na dinâmica de manifestação do ser, na qual irrecusavelmente participamos.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.144.

 

«Nem sempre se confundindo com o mito, embora por vezes cultivando-o ou com ele se cruzando, as religiões vivem – e as suas teologias tematizam –, de um modo ou de outro, esse excesso cultural, a que a existência não pode furtar-se. – As religiões e respectivas teologias representam algumas das primeiras manifestações da formulação racional desse excesso, de que a actividade cultural se nutre.» Idem, “Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.33.

 

 

 

Aula nº8 (2ª feira: 19/02/24)

2. O primado da ontologia: Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura. José Barata-Moura: da gnosiologia à ontologia, da objectividade à materialidade, ou o «chão ontológico» do real.

 

José Adriano Barata-Moura (n.1948)

 

Uma ontologia materialista

 

A recusa do idealismo

«Por um lado, a verdade não tem a residência fixa num «Além» celestial. Está domiciliada no «aquém».

Por outro lado, o verdadeiro não mora no bairro «da consciência» apenas. Firma-se, ontologicamente, fora, aquém dela.

Que significa isto?

Que há uma verdade do mundo – e não apenas dos «espíritos», d’aquém ou d’além túmulo – e que esta verdade nos é acessível, o que, em vez de desvanecer a dificuldade, nos obriga a pôr o problema de como lá chegar …» José Barata-Moura, As Teses das «Teses». Para um exercício de leitura. Lisboa: Editorial «Avante!», 2018, p.227.

«A intenção ontológica tem por desígnio combater as pretensões instaurativas do idealismo da consciência representativa, sinalizando o primado ôntico da dialecticidade intrínseca do real.» Idem, As Teses das «Teses», p.81.

 

Distinção entre objectualidade e objectividade

«Há, assim, a meu ver, como programa e como tarefa, que recentrar o pensar a partir de um remontar das condições da “objectividade” à objectividade como condição.

Sumariando, para finalizar:

o conhecimento tem condições,

a prática tem condições;

a objectividade enquanto materialidade é condição.» Idem, “A Objectividade como Categoria Filosófica. Subsídios para uma caracterização”, Philosophica, Lisboa, 1 (1993), p.30.

«Na consciência cognoscente representamos coisas, processos, relações, na forma intencional do objecto que, nesse plano relacional subjectivo, nos está diante, como pólo ao qual um atender se volta. É o «objecto» enquanto presença no campo da consciência como ideato. Por assim dizer, a «objectualidade» do objecto.

Mas – e para o materialismo este ponto é decisivo –, há também a objectividade do objecto enquanto detentor de um estatuto de materialidade próprio que lhe advém da pertença a um mundo que, podendo embora ser representado, independe de, e prima sobre, os resultados ideiais na representação aparecentes.» Idem, As Teses das «Teses», p.114.

Justificação filológica da distinção: «Gegen-stand refere aquilo que nos está de pé contra-posto. Por sua vez, Objekt germaniza o latino ob-jectum que – provindo do verbo jaceo: «jazer» (e não do verbo jacio: «lançar») –, significa: aquilo que jaz aí, diante (e não: aquilo que para diante é «lançado», jactum).» Idem, As Teses das «Teses», p.113.

 

O materialismo de Marx

«O materialismo de Marx é novo, porque pensa, na raiz – e desde a raiz, – a historicidade dialecticamente inscrita na materialidade do ser, da qual as colectividades humanas, na estruturação deveniente do respectivo viver (tecido, e entretecido, de prática), constituem ingrediência específica.» Idem, As Teses das «Teses», p.95.

«Marx «passa» ao materialismo: não porque «se converta» a uma dada doutrina que até aí não perfilhava, mas porque reconfigura – pela base, e no teor – a própria categoria de materialismo.

A materialidade do real, no registo filosófico, denota a subsistência ontológica do ser – com as relacionalidades de que se tece e entretece –, mas independentemente das formas de relação em que apareça a um sujeito determinado (egóico, plural, impessoal); não tem, portanto, como condição ontológica de possibilidade: uma consciência que o represente, um desejo que por ele anseie, uma vontade que o queira, uma linguagem que o exprima, uma acção que o module e dinamize.» Idem, As Teses das «Teses», p.112.

«Só que esta materialidade não se reconhece por uma troca da consciência «pensante» pelos protocolos de uma consciência «sentinte», nem deita para o caixote das divinas especulações a mediação histórica inscrita no corpo das realidades, da qual a prática transformadora é constitutiva componente endógena. – Uma vez mais, e como a cada cavadela do chão à estrada salta: o materialismo dialéctico de Marx não se identifica com o sensualismo materialista de Feuerbach.» Idem, As Teses das «Teses», p.248.

«Efectivamente, é também o pensamento nas Teses condensado que traz atestação formulada aos traços de uma ontologia materialista dialéctica que se densifica em outros desenvolvimentos, a partir dos quais seria reconstruível.

Neste quadro, se entende a principial afirmação leninista de que «a filosofia de Marx é o materialismo filosófico acabado». Não, porque esteja para sempre concluso na trajectória, mas porque conclui um trajecto multi-secular que dos rudimentos do «velho» a um chão para a infrutescência do «novo» aporta.» Idem, As Teses das «Teses», p.78.

«Os materialistas dialécticos não ostracizam as «ideias». O que procuram é compreender o chão ontológico, e a dinâmica social das relações, de onde elas se erguem e perfilam. Porque é sobre esse solo de materialidade concreta que a transformação efectiva tem que incidir para produzir efeito.» Idem, As Teses das «Teses», nota 102, p.75.

 

Como aceder à materialidade do real?

«Todas estas questões [relativas à forma fenoménica] começam por pertencer ao foro ontológico, na medida em que se prendem com a materialidade do real, surpreendida no dialéctico devir retorso das suas instanciações múltiplas aparecentes.» Idem, As Teses das «Teses», p.185.

«É surpreender o fundamento material daquelas relações múltiplas, e daqueles processos retorcidos, que, no entrelaçado lábil e deveniente da sua contraditoriedade própria, constituem a textura objectiva do real na sua concreção.» Idem, As Teses das «Teses», p.545.

«É possível conhecer as realidades em devir, mas o conhecimento não dispensa a fadiga dos trabalhos. Tanto ao nível da inquirição pelo estudo, da descoberta do posto a nu, e do pensar concebente que das concreções subjectivamente se apropria, como nos tabuleiros daquela comprovação que mede o alcance efectivo – «o poder» (die Macht) – da inteligência teoreticamente alcançada.» Idem, As Teses das «Teses», p.230.

 

 

O “complicómetro”: o imperativo da dialéctica

 

«A forma empírica imediata, que nos «aparecimentos» se evidencia, não esgota, a totalidade das determinações que definem aquilo que uma coisa é: na sua génese, no seu desenvolvimento, na sua concreção. E, não raro, as «evidências» aparecentes obnubilam e distorcem a própria verdade de um «ser» que escondidamente trans-portam.

Daí, a constitutiva tarefa pensante de procurar surpreender — numa realidade que em imediato espectáculo se oferece — aquela dialéctica intrínseca que cruza e associa «fenómeno» e «essência».» Idem, As Teses das «Teses», p.181.

«Sob o ângulo dialéctico de uma ontologia materialista restabelecida - de que as Teses, designadamente, dão expresso testemunho -, a irredutibilidade do ser à «forma fenoménica» que ostenta não supõe, nem implica, o desvanecimento da «aparência», ou um envio inapelável desta para a esfera do «ilusório». - Esta recusa de confinamento à simples imediatez constatada determina, sim, que o «facto» que uma dada «forma fenoménica» retrata não vigora por si num isolamento estanque, que do panorama da fenomenalidade fazem parte «manifestações» múltiplas e contraditórias, que o escopo da compreensão que se demanda não reside numa narrativa prolixa do fragmentário, mas numa articulação, dispondo de fundamento material, capaz de tornar inteligível, nas suas vicissitudes múltiplas, a congruência una dos processos.» Ibid., “Tese 1”, pp.183-184.

 

A dialéctica da prática e da teoria

«O primado ontológico da prática não suprime o imprescindível contributo da teoria, do mesmo modo que a função sapiencial e prospectiva que no nível teórico do pensar se desenvolve não está dissociada do entroncamento numa vida, nem dispensa aquelas materializações que apenas num campo prático de intervenção se realizam.

A solução de problemas teóricos encontra-se – como não poderia deixar de ser –, exercitando a teoria, a qual, no entanto, só por abstracção, está separada da prática de um viver.

A solução realmente praticada dos problemas do viver, ainda que sem implicar um despedimento sumário da teoria, não pode, contudo, prescindir do exercício de uma actividade que materialmente transforma, ou seja: da práticaIdem, As Teses das «Teses», p.502.

«A prática — de que «experimento» e «trabalho» constituem modalidades —, ao transformar materialmente, determina configurações novas do real, e, nessa medida, instaura, num solo ontológico, figuras acrescidas de um verdadeiro que objectivamente ela pro-duz.» Idem, As Teses das «Teses», p.235.

«Acontece, porém, que, para Marx, nem toda a actividade, sem mais qualificativo, é prática; nem, por outro lado, na prática, apenas a vertente subjectiva avulta. – Considerar a prática de um modo não subjectivo significa, por conseguinte, não a restringir à dimensão subjectiva (que igualmente com-porta), mas compreender como ela realmente se materializa numa reconfiguração de «coisas» – de «relações», e de processos – efectivamente reais: – Significa que, também em muitas daquelas figuras que integram o domínio do ontologicamente objectivo, há prática humana materialmente incorporada.» Idem, As Teses das «Teses», p.123.

«A verdade objectiva de uma teoria mede-se: na práticaMarx não se limita a dizer: na experiência –, isto é, no poder que ela revela (não apenas imediatamente) de transformar realidades. – O critério da verdade é a materialização da transformação; não consiste na mera «constatação» teórica (ainda que empiricamente dada) de que um determinado facto ou processo ocorreu. – Aquilo que prova é a feitura, e não apenas a consciência que se tenha dela. E este constitui o registo decisivo.» Idem, As Teses das «Teses», p.269.

 

Actividade revolucionária e revolucionamento

«Neste sentido, a actividade revolucionária – enquanto desígnio esclarecido de materialização de um outro que entre o leque das possibilidades reais se inscreve como signo de uma humanidade (qualitativamente, e em extensão) mais rica no teor – não é apenas crítica no quadro da teoria: submetendo a exame severo as formas fenoménicas disponíveis, procurando compreender nos seus fundamentos, na sua relacionalidade, e nas dinâmicas, aquilo que instaladamente vigora, propondo alternativas e itinerários para o que de outra maneira poderia passar-se. – A actividade revolucionária é crítica: praticamente, porque ataca e transforma, no efectivo plano de materialidade em que se estabelecem, as realidades de um mundo circundante, que não mais se encontra à altura de responder, com a adequação exigível, ao rosário de misérias que ocasiona, multiplica, e de mansinho (mascaradas, ou não) deixa persistir.» Idem, As Teses das «Teses», pp.193-194.

«Nem o materialismo se desfaz em amorosa «teorese» embevecida daquilo que objectivamente se oferece como dado, nem a intervenção que materialmente transforma é desbragada violência do exterior infligida à santidade imaculável do real, na estreita mira de dele extrair ganâncias de exclusivo recorte «subjectivo».» Idem, As Teses das «Teses», p.193.

«O revolucionamento é ontologicamente constitutivo da própria realidade: à qual o devir histórico não é acrescentada dimensão, na qual o cimento dinâmico do múltiplo assume a forma retorcida do contraditório, da qual o labor das colectividades humanas é ingrediência endógena, para a qual o concurso de uma agência reconfiguradora devém factor de construção.» Idem, As Teses das «Teses», p.193.

 

Um «materialismo materialisticamente dialéctico»

«O erro hegeliano há-de ser buscado nas arcarias que lhe sustentam o idealismo: não reside nos cabedais que lhe entretecem a dialéctica. – Para a consecução deste programa – de estudos, e de transformações – é, na realidade, preciso um materialismo novo: materialisticamente dialéctico.» Idem, As Teses das «Teses», pp.545-546.

 

«O real não se reduz ao existente.

A historicidade não é exterior ao ser.

A relacionalidade não é exterior ao ser.

A socialidade não é exterior ao ser.

A transformação material prática não é exterior ao ser.» Idem, As Teses das «Teses», p.608.

 

Daí o «complicómetro», que os filósofos são muitas vezes acusados de ter e pôr a funcionar:

 

«Confirma-se que os filósofos parecem ter predilecção pelo accionamento de uma estranha maquineta que dá pelo nome sugestivo de «complicómetro». Mas não é porque eles estejam possuídos por uma indebelável mania de ensarilhar os lotes.

O sarilho está metido no próprio enredamento das coisas. E para desenvencilhar é preciso trazê-lo à mastigação do pensamento.» Idem, “Traços do pensar filosófico”, Philosophica, Lisboa, 45 (2015), p.14.

 

 

«Tomar a ontologia a sério...»

 

«Radicalizando o escrutínio na raiz, é contudo o ser que se des-cobre: o ser, que, na sua concretude material deveniente, com-porta uma constitutiva e trabalhada mediação humana.

É neste rumo que temos que encaminhar a nossa reflexão.

Para tanto, é necessário reatar com a ontologia.

«Reatar», sem evitamento sobranceiro das complexidades. Sem perder de vista o feixe polissémico das acepções que no interior da sua experiência funda residem, e de dentro dela interpelam. Voltar a estabelecer uma ligação. Recomeçar um contacto. Mas também, «fazer as pazes» após vicissitudes várias de compreensíveis belicismos, não raro, incompreendidos embora.

É, por conseguinte, preciso que a interrogação fundadora do interesse ontológico seja retomada.

Mas, em que sentido?» José Barata-Moura, Metafísica e Ontologia. Lisboa: Página a Página, 2022, p.313.

 

O «feixe polissémico das acepções»:

«Concentração no ente» (MeO, pp.313-315)

«Centramento na essência» (MeO, pp.315-318)

«Existencializações do ser» (MeO, pp.318-325)

«Da «cópula» ao «haver ser»» (MeO, pp.325-333)

«Ontologias do nada» (MeO, pp.333-347)

«Ontologias do primitivo (MeO, pp.347-356)

 

«A pergunta por «aquilo que é»»

«O modo da interrogação que proponho não se limita a reformular o mesmo numa fraseologia outra: traz um novo enquadramento à problemática, proporciona um ângulo de focagem mais aberto, recentra a essencialidade do quesito na genuína intenção que o desencadeia.

Se à perspectiva que aqui em esboço apresento alguma razão assistir, o âmbito da ontologia passa a abranger o leque diversificado — e contraditório — das exercitações filosóficas que buscam respondimento à pergunta por «aquilo que é».» MeO, p.361.

 

As «exercitações filosóficas»:

«Ontologias do querer» (MeO, pp.362-367)

«Ontologias do desejo» (MeO, pp.368-376)

«Ontologias do «acto» e da «práxis»» (MeO, pp.376-383)

«Linguistificação do ser» ou «ontologias da linguagem» (MeO, pp.383-393)

«E há mais...»

 

«Anotações»

 

«O ser, mesmo no horizonte (meta-hegeliano) de uma ontologia dialéctica de base materialista, não se reconduz exclusivamente nem ao ente que se ex-põe sob a forma determinada do «corpo» ou da «coisa» (nas expressões tradicionais e vulgares da materialidade, em regime de outorgado privilégio à espacialização conferido), nem à «presença» de uma «actualidade», empiricamente ou transcendentalmente surpreendida (onde, em complexos doutrinários mais subtis, a «positivação» de aquilo que perante está, objectivamente sensível ou subjectivamente nas «vivências» evidenciado, adquire uma coloração prevalentemente temporal).

O segredo dos «feiticismos ontológicos» repousa, precisamente, no esquecimento e na rejeição da materialidade das relações; deste oblívio e desta recusa abastecidos e alimentados, os enfoques feiticistas obscurecem a peripécia da génese, silenciam as vicissitudes da configuração, depõem na facticidade positiva (porque «natural» no viso, inquestionável) os contornos nítidos de uma hipóstase.

Ora, o existente — «coisa» e processo em relação transformadora de deveniência colhido — constitui antes uma das figuras do ser: um momento de determinação (sem dúvida, firme e ponderável) que o ser envolve, e ultrapassa, enquanto totalidade em devir de reconfiguração.

[...].

De um ponto de vista ontológico, a unidade (material) do ser com-porta, no tecido, multiplicidade. Na sincrinia de um corte, que lhe surpreende a arquitectura estruturante. Na diacronia de um processo, que lhe enriquece a concretude, enquanto positividade, fluência, e transformação.» MeO, pp.400-401.

 

«Pensar é manter uma relação, e manter-se em relação. Discurso «ideialmente» expressivo da relacionalidade intrínseca do ser, é também abertura da manifestação re-flexiva dele (e não apenas re-presentativa) no elemento da consciência, e trabalho paciente de exploração dos meandros concretos (em que a dinamicidade igualmente se inscreve) da sua constituição.

Tal não implica, porém, salvo em matriz de cunho idealista, que o pensar se veja ipso facto investido em condição de possibilidade originária do «haver ser», graças aos conhecidos, e poli-reciclados, dispositivos teórico-doutrinais da «posição» (Setzung), ou da «com-posição» (Zusammensetzung) em regime instituinte, inauguralmente absoluto, de correlacionalidade.

Por seu turno, a prática — a actividade materialmente transformadora — não é ela própria também uma adjunção exterior ou forasteira sobreveniência (para alguns, talvez, um abrutalhado «excesso», uma embaraçosa «demasia»), mas um ingrediente genuíno da mediação endógena do ser pelas colectividades humanas, um emblema determinado da agência histórica no corpo da relacionalidade inscrita, e interveniente.

A totalidade em devir é, a bem dizer, «aquilo que é».» MeO, p.403.

 

«A inteligibilidade perfila-se na orla do possível.

Como demanda exigente do lógos (perfactor de um «dar razão» que se procura), e como tarefa epistemológica ou trabalho da compreensão.

O possível adianta-se ele próprio como pro-tensão de futuro, no horizonte feituro do ser.

Na sua dinâmica interna, de contradições entretecida, o existente (no qual as realidades se não enclausuram) pro-jecta, ao adiante dele, um leque de possibilidades reais: um domínio aberto (mas determinado) — materialmente pre-parado (embora não antecipadamente «feito») — de trajectórias e de itinerários que, na actualização, desafiam o empreendimento.

A esta luz, o possível — tantas vezes, dela metafisicamente dissociado — constitui também um vector, inapagável, da realidadeMeO, p.404.

 

«Tomar a ontologia a sério: é retomar a historicidade do ser como plano recuado, e como horizonte, das nossas diligências teóricas e práticas determinadas, in-carnando o pensar num devir que o perpassa, que se partilha, e refigura.

Tomar a ontologia a sério: é recolocar a cada passo, e prosseguir — num propósito vigilante de radicalidade que questiona, e se questiona —, aquela que, porventura, se perfila como a nossa destinação constitutiva de seres humanos: a inscrição do nosso cunho de humanidade no ser.

Obra ultimamente prática (porque, a cada começo, em prática tem o assento que acentua), o empenho (individuado, grupal, e colectivo) na consecução deste destino (que não é sorte fatal, mas em cujo decurso fatalidades sucedem) não pode, todavia, realizar-se em plenitude — ainda que numa plenitude sempre relativa, já que não é um per-feito, mas um perfazer —, caso descure a atenção devida às perplexidades, às sugestões, e ao socorro, que decorrem de múltiplas aclarações teóricas, que fazem, e que refazem, as rotas e os rumos de aquilo que é.

A materialidade deveniente do ser — complexa, contraditória, constringente (nas limitações, objectivas e subjectivas) que impõe — não nos apaga do mapa a condição de fazedores de história. Des-mitifica (não anula) o espaço da liberdade. Fornece o quadro relacional da humana responsabilidade ontológica nos quotidianos trabalhos de «escritura» do ser.» MeO, p.405.

 

 

 

Aula nº9 (5ª feira: 22/02/24)

Leitura partilhada e comentada de textos de Joaquim Cerqueira Gonçalves.

 

 

Aula nº10 (2ª feira: 26/02/24)

Leitura partilhada e comentada de textos de José Barata Moura.

Discussão dos temas abordados.

 

Exercício de indicar o autor das seguintes frases (ordenadas por ordem alfabética da 1ª letra):

«A cultura europeia processa-se ou parece processar-se num ritmo geral, de pontos extremos: esgotamento – renascença, sucedendo-se ciclicamente.» Autor:

«Afinal, a consciência e a impressão do estatuto de ser cultural, em que se enraíza a própria ideia de liberdade, é que tem feito da existência humana uma exalação de angústia» Autor:

«A intenção ontológica tem por desígnio combater as pretensões instaurativas do idealismo da consciência representativa, sinalizando o primado ôntico da dialecticidade intrínseca do real.» Autor:

«Aquilo que prova é a feitura, e não apenas a consciência que se tenha dela.» Autor:

«A razão humana não é um espaço puro e asséptico, mas revela-se na construção cultural, mesmo que a fonte desta, insista-se, não seja de índole simplesmente cultural, mas ontológica.» Autor:

«As religiões, ainda as que são consideradas de teor naturalista, são indeclináveis e significativas expressões culturais, assumindo quase sempre funções salvíficas.» Autor:

«A totalidade em devir é, a bem dizer, «aquilo que é».» Autor:

«Concedendo que tudo, no mundo, passa pelas formas culturais, daí não pode ser concluído que estas sejam originárias e terminais.» Autor:

«Cultura, no entanto, diz respeito antes de mais nada à acção que o homem realiza de si, por si e sobre si, em ordem a uma transformação no sentido ascencional, do melhor.» Autor:

«Dever e beatitude, desinteresse e perfeição, inteligência e amor, transcendência e imanência, não se excluem nem se opõem.» Autor:

«É possível conhecer as realidades em devir, mas o conhecimento não dispensa a fadiga dos trabalhos.» Autor:

Não há que empreender um regresso à natureza, mas, sim, um acesso ao ser, não com intenções de refúgio, mas de manifestação e desenvolvimento.» Autor:

«Nem sempre se confundindo com o mito, embora por vezes cultivando-o ou com ele se cruzando, as religiões vivem – e as suas teologias tematizam –, de um modo ou de outro, esse excesso cultural, a que a existência não pode furtar-se.» Autor:

«O mito é a primeira forma da dialéctica entre o homem e a natureza, uma dialéctica de desintegração e reintegração do homem no mundo.» Autor:

«O homem é um ser inserto no mundo e que dele procura levantar-se.» Autor:

«O possível adianta-se ele próprio como pro-tensão de futuro, no horizonte feituro do ser.» Autor:

«O sarilho está metido no próprio enredamento das coisas. E para desenvencilhar é preciso trazê-lo à mastigação do pensamento.» Autor:

«Os materialistas dialécticos não ostracizam as «ideias». O que procuram é compreender o chão ontológico, e a dinâmica social das relações, de onde elas se erguem e perfilam.» Autor:

«Pensar é manter uma relação, e manter-se em relação.» Autor:

«Sendo a noção de cultura enormemente polissémica, entra, todavia, sempre, no âmago da sua tarefa, a construção de uma unidade orgânica de valores, que designamos, geralmente, por mundo.» Autor:

«Radicalizando o escrutínio na raiz, é contudo o ser que se des-cobre» Autor:

«Tanto para a experiência do irrecusável como para a consciência dela, é necessário uma aprendizagem, quer da vida, quer da mente, de que se ocupa, em larga medida, a actividade filosófica.» Autor:

«Toda a nossa actividade, no consentimento, na revolta ou no desespero, é sempre uma afirmação do ser, fonte de todas as formas em que se exprime.» Autor:

«Vem em primeiro lugar a decisão de querer ser ou não. Depois, a de querer o valor maior, sempre informado pela estrutura do ser, que é a capacidade de manifestação.» Autor:

 

 

 

Aula nº11 (5ª feira: 29/02/24)

3. O primado da mística: Francisco da Gama Caeiro. Da filosofia à mística, de uma experiência segunda a uma experiência mais originária: a mística como fonte experiencial da filosofia.

 

Francisco da Gama Caeiro (1928-1994)

 

A questão do estudo de um autor místico medieval

 

«O amor sófico, o hábito mental de nos interrogarmos e de inquirir sobre os fundamentos e justificações mais profundas da realidade, não pode evitar que se faça aqui uma pergunta que é para nós crucial.

Que sentido, que justificação terá hoje este esforço tenaz, despendido no prosseguimento duma investigação iniciada há largos anos sobre a obra de um autor místico medieval? Mera concessão ao gosto da divagação erudita em tema arcaizante, sem outra perspectiva filosófica e cultural?

Vivemos numa época histórica em que o homem chegou ao paroxismo da euforia proporcionada pelo espectacular domínio científico e tecnológico dos recursos materiais, mas na qual, ao mesmo tempo, mais do que nunca se sente perplexo, desiludido, angustiado com a sua actuação no mundo, com as incertezas do destino civilizador da grande sociedade universal. É neste preciso momento que ele procura soluções para problemas vitais e exige da filosofia, não já a descoberta da «pedra filosofal», mas o empenhamento sério, autêntico e vivo nos temas que correspondam a essa profunda e radical situação humana. E, nestas singularíssimas circunstâncias, terá válida consistência filosófica uma inquirição tal como a presente?

A nossa decidida resposta afirmativa, sem quaisquer visos de justificação apologética, é exigida, antes de mais, por certo apelo profundo de sinceridade filosófica; mas não deixa de constituir também expressão conclusiva duma meditação prolongada.

Esperamos que o leitor nos acompanhe e consiga descortinar, para além dos limites rígidos impostos por um estudo monográfico, uma perene problemática filosófica que contém amplas e fecundas perspectivas para a reflexão actual.

E, com efeito, numa rigorosa interpretação histórico-filosófica, é possível descortinar — porventura com certa surpresa — a continuidade desta mesma temática, desde a idade antiga até ao momento presente, no âmbito de uma profunda lucubração especulativa, embora assumindo formas muito díspares.

[...].

Em rapidíssima síntese, a ideia central que é possível extrair de um conjunto muito vasto de problemas e doutrinas filosóficas, no seu confronto com a mística, e que dá justamente o nexo de profunda inteligibilidade aos diversos e aparentemente heterodoxos sistemas e pensamentos dos filósofos, é o constante balancear dilemático de atitudes do espírito entre dois pólos: umas posições tendem a atrair para o domínio do teorético, do lógico e do discursivo a ordem da fé; outras pretendem subsumir, ou de algum modo integrar, o teorético, o cognoscível racionalmente, o discursivo, no domínio do vitalismo, da vivência, do intuitivo, do mistério, da existência, da Gefühl ou do sentimento.

Em última análise, o que a filosofia actual retoma, enquanto trata de conhecer as relações do seu próprio domínio com a mística, ou — noutro plano, que tem com este profundas analogias — as relações entre a razão e a fé, poder-se-á reduzir às duas vias ou dois processos já anunciados por Agostinho, e que são também a trave mestra da doutrina antoniana: «Intellige ut credas. Crede ut intelligas

[...].

Permitimo-nos porém anunciar desde já que a posição perfilhada nesse estudo será guiada por um critério de integração: nem subsunção da fé à razão (e, mutatis mutandis, da filosofia à mística), nem o inverso, nem negação de uma delas, sem separação radical.

Este critério surge ditado pelo facto de o ser humano se revelar ponto de coincidência de duas epifanias do ser: o ser transcendente, pessoal, amoroso, mostrado em um Verbum, que deve ser integrado na vida humana; e o ser como plano radicante, que fundamenta o homem, que alcança o seu sentido último na sua integração no λόγος que é ἀγάπη, no logos que é amor e caridade.» Francisco da Gama Caeiro, Santo António de Lisboa, Vol. II. Lisboa: INCM, 1995, Prefácio, pp.XXIII-XXV.

 

Mística e filosofia

 

«A palavra mística, pela sua própria derivação do étimo grego μυστικός — ligado ao verbo μύειν, que significa «instruir», «iniciar», ou, na voz passiva, «ser instruído», «ser iniciado» —, constitui a expressão daquilo que é difícil de exprimir, do profundamente íntimo, do silencioso, do recôndito, do abissal e do inefável.

E precisamente nesta densa zona da existência humana, carregada da mais profunda significação ôntica, ela será, por direito próprio, objecto da especulação filosófica e realidade nuclear da metafísica. De modo algum se verifica entre mística e filosofia confusão de domínios, uma vez que ambas correspondem a planos distintos — embora convergentes, integráveis e susceptíveis de intersecção —, com diferentes vias de acesso à realidade.

Renunciando por agora a examinar as relações de natureza teórica entre mística e religião — bastará apenas ter em conta a existência de factos psicológicos vividos com intencionalidade religiosa e que se admita a passagem dum nível simplesmente religioso, uma vez verificadas determinadas condições, para um estado místico —, importa salientar que, entre as religiões habitualmente consideradas superiores (como o cristianismo, o judaísmo, o islamismo, o budismo), a mística corresponde a uma forma superior de conhecimento.

E é assim que, no cristianismo — para só aludirmos à religião que mais directamente se liga ao objectivo deste estudo —, a mística corresponde a uma forma elevada de conhecimento e de felicidade que Deus, pela comunicação da Sua própria vida, confere ao homem.

Mas convém considerar desde já duas questões que radicam em comum ponto de partida, uma do maior alcance, de natureza filosófica, e outra sempre presente nos autores espirituais: ambas partem da mística como vivência, da mística como manifestação radical humana extremamente rica e complexa, que consiste, simultaneamente, em experiência e conhecimento — ou, talvez melhor, num conhecimento experimental — da vida divina da graça no homem, nas mais íntimas e recônditas profundidades do ser humano, essa realidade a que Teresa de Ávila tão luminosamente deu expressão nas «moradas» do seu Castelo Interior.

A filosofia, afirmou com penetrante audácia J. G. Fichte, não é como um bragal de roupa que se tome ou se largue; a filosofia depende da espécie de homem que se é. E com isto postula-se que a filosofia, em qualquer tempo, parte duma vivência humana profunda. Como não haviam de existir, no caso dessa singularíssima e radical experiência que é a mística, fortes nexos entre os dois domínios?

Assim, a mística — ou misticismo — designa uma específica experiência humana que, pelas descrições — ou meros indícios apenas sugeridos — daqueles que a tiveram e a transmitiram, apresenta algumas características peculiares que permitem pôr em confronto, ao menos em grandes linhas gerais, o seu domínio próprio com o da filosofia.

Pela caracterização noética que propomos de filosofia — mesmo sem pretender para ela sentido unívoco —, que não inclui apenas uma explicação racional, completa e sintética do homem, do mundo e da vida, mas, simultaneamente, uma atitude do pensar em face do saber, um saber compreensivo da realidade, reflexivo e crítico, um saber que se preocupa com os fundamentos e significações últimas, essa noção não pode ser confundida com a simples vivência. Filosofia não é só vivência — embora as mais profundas criações humanas, as sínteses unitárias da filosofia, se desgarrem de vivências humanas intensas. Santo Agostinho, Descartes, Kant, Hegel e Kierkegaard são do asserto comprovação flagrante.» Idem, Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, pp.IX-X.

 

«Mística, palavra plurívoca — mesmo quando a expressão aparece hoje degradada na linguagem correntia, em acepções vinculadas a qualquer ideologia ou a certas actividades —, traduz sempre uma noção (em certos casos, decerto imprecisa e até confusa) relacionada com uma realidade, de algum modo ambígua, extra ou supra-racional, acessível através de uma intuição ou de uma experiência e revestindo-se de certo carácter sagrado, no sentido mais amplo, que suscita o respeito, a veneração.

Ora, até mesmo neste entendimento abusivo e deturpado, a mística contém no seu âmago um elemento — como denominador comum às demais concepções — de importância capital para a filosofia: está-se aí a valorizar uma certa realidade do espírito humano referido ao ens espiritual com tonalidade religiosa, cujo acento tónico se coloca, não no corpo doutrinal e objectivo das religiões, expresso formalmente numa conceptualização de conteúdo preceptivo, dogmático, moral, social, etc., mas sim no carácter espiritual e trans-racional dessas manifestações. Trata-se aqui — é importante frisar — da predominância de certo elemento, o inefável concreto, que aparece a caracterizar uma forma especial de conhecimento — mas que de modo algum implica a supressão de outras expressões, podendo coexistir com diferentes modalidades cognoscitivas, designadamente com o processo discursivo e racional.» Idem,  Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, pp.XI-XII.

 

«Entre as várias ciências do homem, a história comparada das religiões, a antropologia, a etnologia e a sociologia preocupam-se hoje, especialmente, com as manifestações e o significado dos vários tipos de mitos e de místicas, e esses contributos científicos permitem, com efeito, testemunhar até que ponto o autêntico misticismo corresponde a uma exigência humana profunda, a essa insistente procura do Absoluto, do Uno, do Transcendente, dando satisfação ao mais íntimo e radical apelo interior do homem, a essa experiência que se prolonga para lá das formas habituais da nossa acção e dos esquemas lógicos do nosso pensamento. Tratar-se-ia de uma tendência para uma realidade misteriosa, em sentido englobante, que é força e é luz e para a qual o ser humano se sente poderosamente atraído, tal como se dela participasse e a ela se unisse num todo unitário; e o facto de os veios mais fundos da mística e do mito (não obstante serem domínios tão distintos) continuarem na actualidade a alimentar, sob as formas mais insuspeitadas, a nossa civilização tem dado ensejo a sugestivas monografias, entre as quais se destacam as de um autor célebre, Mircea Eliade.

A mística corresponde, pois, a uma forte aspiração humana, recôndita e inefável, de natureza sacral, anterior e superior a toda a justificação racional e que se cifra numa actividade que tende, no seu termo, a levar a alma a comunicar com uma realidade de carácter absoluto — realidade que na maioria dos casos se designa por Deus, mas que pode assumir também outras expressões — o ser como ser, a alma do mundo, o todo cósmico, a natureza, etc.

Sempre que a filosofia se desenvolve no decurso das civilizações, ela depara com a mística e encontra-se então, historicamente, perante a necessidade, resultante da sua exigência interna, de lhe dar expressão inteligível, socorrendo-se da linguagem discursiva que lhe é específica, no sentido de fundamentar essa realidade, que, por sua natureza, transcende o próprio domínio racional e implica, segundo Gaston Berger, uma redução transcendental.

Deste modo, a mística, considerada more philosophico, como objecto de inquirição especulativa, integra-se, embora sem se confundir — até porque, como plano fundante, lhe é anterior —, numa explicação racional, integral e sintética do mundo e da vida.» Idem,  Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, pp.XII-XIII.

 

Filosofia mística

 

«O cristão em geral — e particularmente o místico — tem um modo próprio de ser, que supõe uma visão escatológica do reino de Deus, a existência de um espírito, Deus, criador do mundo e transcendente ao mundo, princípio e fim do homem e reitor do acontecer humano; e daí resulta uma concepção de um destino humano que não se limita nem esgota neste mundo (embora ele se realize através da construção do mundo, da cidade dos homens e da autoconstrução do homem como orientação livre nesse mesmo mundo, e a edificação do reino constitua já, primordialmente, essa tarefa humana mediante a qual se realiza a presença — que é um desvendar ou uma revelação — do Espírito na história). E aqui a cidade dos homens é encarada dinamicamente, como prolongamento, continuação de algo que se projecta na cidade de Deus.

Esta visão origina e implica uma modalidade própria de ser no mundo, uma atitude específica perante a vida: a do homo viator, o transeunte que, na expressão antoniana, se encontra in via, que se ocupa das tarefas do mundo, mas se não deixa apossar por este, pois a meta situa-se mais além; isto mesmo o impede de dar valor absoluto ao que quer que seja — tudo é «meio», «finalidade para», tudo está em «relação a»: poucas situações podem marcar mais decididamente o homem que pensa, supondo uma tensão espiritual, dramática — e que irá dinamizar todos os seus conceitos, do homem e do mundo, do espírito e da matéria, da natureza e da graça, da antropologia e da moral, da razão e da fé, da ciência e da sabedoria, da metafísica e da mística.

A acção de filosofar apresenta-se assim como uma experiência segunda, a qual supõe, como intuição originária, uma experiência humana anterior, pré-filosófica, e que, no caso em apreço, é uma experiência cristã.

Assim, o místico cristão, quando filosofa, insere no âmago mais fundo, no cerne do seu filosofar, esta visão específica, intuição originária, que constitui o núcleo dinâmico, a força propulsora da sua actividade reflexiva.

Como filósofo, ele não rejeita nenhum domínio do pensar filosófico nem dispensa nenhum dos requisitos da actividade racional. Mas existe uma zona de radicalidade onde todo o homem, para filosofar, tem de se empenhar, de tomar decisões, de optar e decidir. E, aí, nessa dimensão interior e existencial do seu filosofar, quando o místico filosofa, não pode evitar que a sua criação se constitua em filosofia mística Idem,  Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, pp.X-XI.

 

«Mas a filosofia é, não apenas explicação, mas também conhecimento compreensivo (desde Dilthey que, de modo explícito, se apresenta como óbvia a necessidade de distinguir entre compreender e explicar), e a mística surge aqui com idêntica intenção compreensiva: ela não é uma razão da fé, um sermo de Deo ao modo da teologia, mas antes uma fé cognoscente que estrutura a razão, uma gnosis que abrange compreensivamente a razão, como elemento informador desta. É assim que a filosofia mística se não pode entender apenas como uma filosofia sobre a mística, pois supõe, na sua radicalidade, uma estruturação filosófica específica. Neste sentido, história da mística e história da filosofia não podem considerar-se compartimentos estanques, antes, bem ao contrário, se encontram indissociavelmente ligadas, nas afinidades de uma origem comum (bastaria lembrar Platão, com o valor de paradigma, como fonte inspiradora da filosofia e da mística) e nos elos fortíssimos com que ambas se ligam às mais profundas significações da existência humana.

Um dos problemas de maior interesse para a filosofia que é suscitado pela mística incide, com efeito, na natureza de gnosis desta última, ou seja na mística considerada como forma especial de conhecimento directo e como sabedoria, implicando o esclarecimento preliminar do modo como se opera o trânsito do racional para o intuitivo e o sófico.» Idem,  Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, p.XIII.

 

«Não difere muito desta noção de filosofia mística o entendimento que foi dado na Idade Média, à mística especulativa. Na essência, os textos medievais que contêm descrições de certas realidades da vida mística podem situar-se, ou a um nível de mera tradução de uma experiência amorosa do divino, directa e imediata — e ficaram-nos exuberantes testemunhos dessa mística afectiva e prática, como a dum frater Aegidius dos primórdios do franciscanismo —, ou, em plano diverso, ao nível duma speculatio, que abrange, de modo teórico, numa exposição doutrinalmente elaborada e com uma estruturação coerente, o mesmo campo da experiência mística prática, valorizando, sem as suprimir, as vias do conhecimento racional e intuitivo.» Idem,  Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, p.XV.

 

 

 

Aula nº12 (2ª feira: 4/03/24)

Leitura partilhada e comentada de textos de Francisco da Gama Caeiro.

Discussão dos temas abordados.

 

Destaques

Sobre a mística:

Expressão do profundamente íntimo, do silencioso, do recôndito, do abissal e do inefável: «A palavra mística, pela sua própria derivação do étimo grego μυστικός — ligado ao verbo μύειν, que significa «instruir», «iniciar», ou, na voz passiva, «ser instruído», «ser iniciado» —, constitui a expressão daquilo que é difícil de exprimir, do profundamente íntimo, do silencioso, do recôndito, do abissal e do inefável.»

Relacionada com uma realidade extra ou supra-racional: «Mística, palavra plurívoca — [...] —, traduz sempre uma noção (em certos casos, decerto imprecisa e até confusa) relacionada com uma realidade, de algum modo ambígua, extra ou supra-racional, acessível através de uma intuição ou de uma experiência e revestindo-se de certo carácter sagrado, no sentido mais amplo, que suscita o respeito, a veneração.»

A predominância do inefável concreto: «Trata-se aqui — é importante frisar — da predominância de certo elemento, o inefável concreto, que aparece a caracterizar uma forma especial de conhecimento — mas que de modo algum implica a supressão de outras expressões, podendo coexistir com diferentes modalidades cognoscitivas, designadamente com o processo discursivo e racional.»

Uma exigência humana profunda: «o autêntico misticismo corresponde a uma exigência humana profunda, a essa insistente procura do Absoluto, do Uno, do Transcendente, dando satisfação ao mais íntimo e radical apelo interior do homem, a essa experiência que se prolonga para lá das formas habituais da nossa acção e dos esquemas lógicos do nosso pensamento.»

Uma forte aspiração humana, plural quanto à expressão do fim a que aspira: «A mística corresponde, pois, a uma forte aspiração humana, recôndita e inefável, de natureza sacral, anterior e superior a toda a justificação racional e que se cifra numa actividade que tende, no seu termo, a levar a alma a comunicar com uma realidade de carácter absoluto — realidade que na maioria dos casos se designa por Deus, mas que pode assumir também outras expressões — o ser como ser, a alma do mundo, o todo cósmico, a natureza, etc.»

Uma vivência: «mística como vivência, da mística como manifestação radical humana extremamente rica e complexa, que consiste, simultaneamente, em experiência e conhecimento — ou, talvez melhor, num conhecimento experimental — da vida divina da graça no homem, nas mais íntimas e recônditas profundidades do ser humano, essa realidade a que Teresa de Ávila tão luminosamente deu expressão nas «moradas» do seu Castelo Interior.»

Fé cognoscente: «Mas a filosofia é, não apenas explicação, mas também conhecimento compreensivo (desde Dilthey que, de modo explícito, se apresenta como óbvia a necessidade de distinguir entre compreender e explicar), e a mística surge aqui com idêntica intenção compreensiva: ela não é uma razão da fé, um sermo de Deo ao modo da teologia, mas antes uma fé cognoscente que estrutura a razão, uma gnosis que abrange compreensivamente a razão, como elemento informador desta.»

Gnose: «Um dos problemas de maior interesse para a filosofia que é suscitado pela mística incide, com efeito, na natureza de gnosis desta última, ou seja na mística considerada como forma especial de conhecimento directo e como sabedoria, implicando o esclarecimento preliminar do modo como se opera o trânsito do racional para o intuitivo e o sófico

Sobre a filosofia:

Explicação racional, completa e sintética do homem do mundo e da vida, atitude do pensar face ao saber, saber compreensivo da realidade, saber acerca dos fundamentos e significações últimas, síntese unitária: «Pela caracterização noética que propomos de filosofia — mesmo sem pretender para ela sentido unívoco —, que não inclui apenas uma explicação racional, completa e sintética do homem, do mundo e da vida, mas, simultaneamente, uma atitude do pensar em face do saber, um saber compreensivo da realidade, reflexivo e crítico, um saber que se preocupa com os fundamentos e significações últimas, essa noção não pode ser confundida com a simples vivência. Filosofia não é só vivência — embora as mais profundas criações humanas, as sínteses unitárias da filosofia, se desgarrem de vivências humanas intensas. Santo Agostinho, Descartes, Kant, Hegel e Kierkegaard são do asserto comprovação flagrante.»

É uma experiência segunda: «a filosofia depende da espécie de homem que se é. E com isto postula-se que a filosofia, em qualquer tempo, parte duma vivência humana profunda.»; «A acção de filosofar apresenta-se assim como uma experiência segunda, a qual supõe, como intuição originária, uma experiência humana anterior, pré-filosófica, e que, no caso em apreço, é uma experiência cristã.»

A filosofia depara com a mística e a mística integra-se na filosofia: «Sempre que a filosofia se desenvolve no decurso das civilizações, ela depara com a mística e encontra-se então, historicamente, perante a necessidade, resultante da sua exigência interna, de lhe dar expressão inteligível, socorrendo-se da linguagem discursiva que lhe é específica, no sentido de fundamentar essa realidade, que, por sua natureza, transcende o próprio domínio racional e implica, segundo Gaston Berger, uma redução transcendental.

Deste modo, a mística, considerada more philosophico, como objecto de inquirição especulativa, integra-se, embora sem se confundir — até porque, como plano fundante, lhe é anterior —, numa explicação racional, integral e sintética do mundo e da vida.»

Sobre a filosofia mística:

Quando o místico filosofa: «Mas existe uma zona de radicalidade onde todo o homem, para filosofar, tem de se empenhar, de tomar decisões, de optar e decidir. E, aí, nessa dimensão interior e existencial do seu filosofar, quando o místico filosofa, não pode evitar que a sua criação se constitua em filosofia mística

Supõe uma estruturação filosófica específica: «É assim que a filosofia mística se não pode entender apenas como uma filosofia sobre a mística, pois supõe, na sua radicalidade, uma estruturação filosófica específica.»

 

Pergunta: O pensamento filosófico expresso nos textos lidos configura uma filosofia mística ou uma filosofia da mística?

 

 

 

Aula nº13 (5ª feira: 7/03/24)

4. Duas visões da Idade Média: Joaquim Cerqueira Gonçalves e Francisco da Gama Caeiro. Joaquim Cerqueira Gonçalves: uma visão da Idade Média sob o cunho da modernidade. Leitura partilhada de textos de Cerqueira Gonçalves.

 

Joaquim Cerqueira Gonçalves (n. 1930)

 

A Modernidade nasceu na Idade Média

«A Europa e a Idade Média. — A Ideia de Europa tende a confundir-se, para a sociedade do nosso tempo, com os valores e os feitos da Modernidade e a ampliar-se, num esforço de enraizamento de fundamentação, à cultura greco-romana, sobrevoando dez séculos pletóricos de história, a Idade Média. Mas esta bem pode considerar-se o epicentro histórico da Europa, logrando, neste caso, um sentido positivo a designação de Idade Média, ao indiciar uma posição central. A cultura greco-romana ter-se-ia certamente mumificado, por falta de húmus vital, caso os medievais não a tivessem assumido e metamorfoseado, com a intensidade e amplitude da sua existência e especulação.

Por outro lado, as grandes questões, em termos culturais, do início da Modernidade nada mais são do que prolongamentos dos grandes temas da medievalidade. Uma cultura perdura e enriquece-se abrindo-se a outras culturas, por acolhimento e irradiação, precisamente o que sucedeu na Idade Média. Seria impossível imaginar a dinâmica passada e presente da Europa, sem os ideais da cidade grega, sem a amplitude do império romano, sem a presença dos povos bárbaros, sem a mensagem bíblica, vivida e interpretada por judeus, cristãos e, em larga medida, pelo islamismo.

Todo este caldeamento teve lugar na Idade Média, e assim se fixaram em vectores que ainda hoje perduram, na sua configuração essencial. Deve-se, em parte, a essa capacidade de acolhimento, que a Idade Média manifestou, o poder de expansão que a Europa moderna veio a conhecer. A Europa das liberdades, do saber, dos valores universais e da fraternidade não se alimentou apenas da participação de dois extremos temporais, a Antiguidade e a Modernidade, tendo na Idade Média a fase de gestação, o momento que as vicissitudes da interpretação histórica por vezes ocultaram, mas que é sempre determinante, cuja importância vem sendo progressivamente reposta.» J. Cerqueira Gonçalves, “A Modernidade nasceu na Idade Média” (1999), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem. Lisboa: INCM, 2011,pp.98-99.

 

«A grande viragem histórica

Da filosofia antiga para a moderna‑medieval

A modernidade da Idade Média: «Nós vamos estudar a Idade Média porque estamos dentro dela.» FM 98/99; «Nós somos muito mais filhos da Idade Média do que da Idade Antiga.» FM 98/99

A unidade da filosofia medieval e moderna: «Há dois grandes autores a ler, que são Platão e Kant: Platão, um antigo; Kant, um moderno, um medieval, um cristão e um contemporâneo.» FM 83/84; «Quase tudo o que está na filosofia moderna, já estava mais ou menos explicitamente na filosofia medieval.» FM 83/84; «Sem o cepticismo tematizado do séc. XIV, não seriam compreensíveis os irracionalismos e os racionalismos modernos, nem o maquiavelismo.» FM 86/87; «É muito difícil compreender Kant, o maquiavelismo e o liberalismo moderno, sem o séc. XIV.» FM 87/88; «Não obstante a discordância de princípio com a divisão da história da filosofia em épocas, é preferível a divisão em duas épocas, antiga e moderna, marcada esta pelo legado bíblico‑cristão, à divisão em três épocas, antiga, medieval e moderna.» FM 98/99

Novidades filosóficas da Idade Média

Novos focos temáticos, como a existência, a liberdade e outros: «A filosofia medieval foi marcada por dois horizontes cristãos: o da existência e o da liberdade.» FM 82/83; «Em Aristóteles, o saber tem de caber na formulação das quatro causas. Aristóteles não formulou a questão: por que é que as coisas existem? Porquê a existência?» FM 82/83; «A filosofia medieval pergunta radicalmente pelo porquê da existência, no horizonte cristão da Criação e da liberdade, o que era impensável na filosofia antiga.» FM 83/84; «A prioridade da existência nunca fora problematizada nem tematizada no mundo grego; o existencialismo tematizou-a apenas ao nível antropológico; o tomismo tematizou-a a um nível mais radical, o ontológico (contra Avicena, para quem a existência era um acidente).» FM 84/85; «Aristóteles preferiu a causalidade formal à material. Depois do cristianismo, pergunta-se pela causa das formas e pela da existência: porquê eu, porquê aqui, porquê agora (Pascal)?» FM 86/87; «S. Tomás de Aquino pôs uma questão que Aristóteles não pôs: a questão da causa da existência das coisas (Criação) e não apenas a da causa do movimento e do alimento das coisas, que eram eternas.» FM 98/99; «As principais novidades das filosofias medievais são acerca do infinito, da matéria, da vontade e da pessoa.» FM 83/84; «Mundo, liberdade e história são as três grandes categorias inovadoras da cultura medieval.» FM 86/87» Maria Leonor Xavier, “Ditos Filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves”, in Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, org. por DEPARTAMENTO e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp.89-90.

 

A nova dimensão da historicidade

«Não obstante a maioria dos humanistas ser inequivocamente cristã, haviam perdido, do horizonte religioso que os norteava, uma das mais significativas categorias, a da historicidade, que estimularia a mudança e a sensibilidade ao novo, em vez do regresso ao momento primordial. Nesta ausência de historicidade, os humanistas eram certamente mais pagãos do que cristãos. Nem só a Idade Média havia sido mensageira e protagonista de realidades — e linguagens — inéditas, mas, enquanto o entusiasmo com a linguagem antiga escamoteava, com a manutenção do seu vocabulário, supostamente imutável, as reais mudanças que lhe subjaziam, a mundividência medieval, por efeito do cristianismo, era de tal forma inédita e transformadora que, na própria linguagem, se viria a sentir essas inexoráveis descontinuidades, não sendo, então, possível disfarçar o novo com a pátina linguística do antigo, do atemporal.

No entanto, mais do que a insensibilidade ao novo, o que está aqui em causa é a relutância à aceitação de uma das mais importantes categorias bíblicas já referida, a historicidade, sendo tal resistência o maior sintoma da presença activa da cultura antiga nas mentalidades cultas ulteriores, ou, então, o índice da ausência da temporalidade no exercício da razão, seja ele de teor filosófico ou científico. Aliás, embora a Idade Moderna se considere vitoriosa pelo facto de a ciência por ela cultivada dissipar ou, pelo menos, atenuar a filosofia, uma leitura mais distanciada, como a do nosso tempo, estriba-se em boas razões para ver na racionalidade científica a continuidade da racionalidade filosófica ocidental. Mas precisamente este modelo filosófico e científico de razão dificilmente se concilia com a dimensão da historicidade, ao contrário do que sucedeu com a exegese e teologia cristãs, que tematizavam expressamente o Logos histórico, progressivamente manifestado, até atingir a plenitude em Cristo. Com efeito, quando o maniqueísmo, que rejeitava o Antigo Testamento, onde se descreve a criação, segundo essa doutrina obra da Divindade má, denunciava a incoerência dos cristãos, ao aceitarem os dois Testamentos, cujas mensagens são, ainda segundo a interpretação maniqueísta, claramente opostas, já que bom é somente o Deus redentor do Novo Testamento, os exegetas e os teólogos realçavam a unidade de toda a Bíblia, onde se sucedem, cadenciadas no tempo, reais, mas não opostas, diferenciações. Esta decisiva metamorfose da racionalidade diferenciava, flagrantemente, o modelo da racionalidade grega e da racionalidade moderna, relativamente à razão histórica, vivida pelo cristianismo. Este acentuava o sentido positivo da multiplicidade ontológica e histórica. A Idade Média, se bem em graduação diversa, com realce para a sensibilidade à temporalidade do augustinismo, desenvolveu, em diferentes domínios, a dimensão da historicidade, como, por exemplo, na questão da temporalidade/ eternidade do mundo e do intelecto universal/ individual. Ora, faz parte da razão histórica a inesgotabilidade de horizonte, que perturba uma das principais características da racionalidade científica, a determinação fechada e a previsibilidade, pelas quais aliás lutou a epistemologia antiga, consignadas no fatalismo — na moira —, fundamentalmente caracterizado pelo contingente cego, o imprevisível e o aleatório.» J. Cerqueira Gonçalves, “A Idade Média: Razão ou Mito?” (2009), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem. Lisboa: INCM, 2011,pp.90-91.

 

“Ditos de Joaquim Cerqueira Gonçalves” sobre o valor da história vs. natureza

«A valorização da história, por influência do cristianismo: «O cristianismo é a religião mais portadora de uma mensagem histórica.» FM 83/84; «A Idade Média tem uma ideia positiva de história, enquanto movimento que participa da eternidade.» FM 86/87

A valorização agostiniana da história: «O agostinismo é um grande movimento historicista.» FM 87/88; «Toda a tradição ocidental, que valorizaa história, é de estirpe agostiniana.» FM 98/99 

A história para além da essência: «Para Aristóteles, a história nada acrescenta à essência; o medieval considera, com a essência, o estado da essência, isto é, a situação histórica, o que supõe a vulnerabilização da essência ao tempo.» FM 86/87; «A filosofia medieval introduz o tempo na essência e acentua a importância da relação entre as essências.» FM 86/87

O valor da história em oposição ao valor da natureza: «A tendência para a natureza corresponde normalmente a uma fragilização da categoria da história.» FM 83/84; «O mundo agostiniano é muito mais voltado para a história, enquanto o mundo tomista é muito mais voltado para a natureza.» FM 83/84; «O mundo de possibilidades infinitas é o mundo da história, não é o cosmológico.» FM 84/85; «São inversamente proporcionais os valores da natureza e da história, ou da cultura.» FM 85/86; «A Idade Média está muito mais centrada na cultura e na história do que na natureza. Deus manifesta‑se na contingência da história e essa contingência não é necessariamente irracional.» FM 98/99

A natureza em relação com a cultura: «Tem pertinência a ideia de natureza, desde que não a reduzamos a uma só natureza.» FM 86/87; «Não há nenhuma natureza fixa.» FM 86/87; «A cultura é expressão de natureza.» FM 86/87; «A Idade Média é responsável pela fragilização da ideia de natureza: esta é uma ideia cultural. Antes da natureza, há Deus criador.» FM 98/99» Maria Leonor Xavier, “Ditos Filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves”, in Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, org. por DEPARTAMENTO e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Lisboa: Edições Colibri, 2001, p.79.

 

 

Aula nº14 (2ª feira: 11/03/24)

4. Duas visões da Idade Média: Joaquim Cerqueira Gonçalves e Francisco da Gama Caeiro. Francisco da Gama Caeiro: uma visão da Idade Média sob o cunho da nobreza dos ideais. Leitura partilhada de textos de Francisco da Gama Caeiro.

 

Francisco da Gama Caeiro (1928-1994)

 

Escola e Escolástica

«Uma escola, como comunidade de convívio e de cultura, como espaço do trabalho intelectual de jovens que, por mediação das diversas modalidades do Ensino, recebem de homens de outra geração o estímulo de uma disciplina interior e a experiência de uma reflexão em comum, a Escola – dizíamos – tem também, tal como os humanos, uma memória.» F. Gama Caeiro, “Vieira de Almeida e a filosofia em Portugal” (1991), in Dispersos, Volume II, Lisboa, INCM, 1999, p.86.

«Na verdade, é filosofando que se aprende a filosofar, e se o aprendiz despreza o contacto diuturno com os grandes mestres, jamais chegará a ser um deles. – Essa directriz da Escolástica, se, por um lado, estimulou mais tarde um certo fixismo de sinal negativo para o ensino, esteve todavia na base de um desenvolvimento interno da sistemática filosófica e de um enriquecimento da Metafísica moderna, que não pode ser minimizado.» Idem, “Para um quadro das ideias filosóficas em Portugal no tempo de Camões (1520-1580)” (1979) e “O pensamento filosófico do século XVI ao século XVIII em Portugal e no Brasil” (1981), in Dispersos, Volume I, resp., pp.250 e 288.

«A permanência ininterrompida da instituição universitária, desde a sua fundação, deve-se porventura ao facto de ela ser, por antonomásia, um espaço de vida, um processo de humanização. – É, pois, o homem a grande questão da Universidade. – O homem, que é uma natureza, que vai sendo história, que é uma intenção de supranatureza e de meta-história.» Idem, “Elogio do Doutor Manuel Antunes” (Doutoramento Honoris Causa da Universidade de Lisboa, Lisboa, UL, 1981), in Dispersos, Volume II, Lisboa, INCM, 1999, p.160.

 

Idade Média

«A Idade Média, como conceito e periodização – todos o sabemos –, encontra-se hoje posta em questão. Teria mesmo existido a Idade Média? Não será ela antes uma projecção dos mitos, dos sonhos, das nostalgias, do homem de outras épocas? A génese histórica do conceito trouxe decisivos esclarecimentos, no meio de perplexidades ainda subsistentes. Pelo menos, terá de se afastar dela o sentido de intermédia, de secundária, em jeito de cunha entre dois momentos paradigmáticos que seriam a Idade Antiga e a Idade Moderna, impondo-se hoje em dia a nova interpretação que no Medievo vislumbra em larga medida a Idade Moderna, ou, se se preferir, que na Idade Contemporânea se reconhecem estruturas medievais, como Jacques Le Goff veio corroborar no seu estudo já clássico, Para um novo conceito de Idade Média.» “Instituições e espiritualidade medievas em Portugal” (1990), in Dispersos, Volume III, p.404.

«A Bíblia era realmente o mundo dos medievais, como a literatura era o mundo dos autores gregos. – E a Bíblia não estimulava menos o homem medievo do que os poetas gregos inspiraram os filósofos que os comentaram. Quer isto significar que é sobretudo perante um mundo cultural que o homem vive e pensa. E, assim, a actividade racional do homem vai manifestar-se pensando esse mundo, comentando esse mundo, tal como aconteceu ainda na mentalidade grega e depois se verificou na interpretação do texto sagrado pelos cristãos.» Id., Santo António de Lisboa, Volume I: Introdução ao Estudo da Obra Antoniana, Livro II, Cap. I, p.196.

«Existe uma arte de pensar, fecundada desde a Idade Média na disciplina do triuium, pela lógica aristotélica e a retórica clássica, uma arte que exige uma prática, um artesanato, longo e exigente enfim, que moldou o pensamento ocidental. Essa prática supõe o exercício de confronto com os outros pensares, a crítica, a argumentação.» Idem, “O pensamento português nos próximos 25 anos” (1984), in Dispersos, Volume II, Lisboa, INCM, 1999, p.237.

«Muitos afirmam que a aceitação de Aristóteles e dos processos racionais para uma alteração e aperfeiçoamento da exegese patrística e enriquecimento da cultura ocidental irrompeu de modo súbito no fim do século XII e começo do século XIII. – E. Gilson mostra, porém, que a introdução se fez lentamente. Há, diz ele, escolástica já na teologia do século XII, como há patrística na teologia do século XIII. – E é isto o natural. O movimento das novas ideias não corre como a avalanche dos rios. Impõe-se pouco a pouco, pelo seu valor ou pela força da respectiva sedução, e vai fazendo carreira, enquanto as ideias contrárias reagem apegadas ao antigo, para só lentamente cederem no que mereça ser substituído ou dominado. A história ensina que é este o processo normal da evolução.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume I: Introdução ao Estudo da Obra Antoniana, Livro II, Cap. III, pp.322-323.

«Os últimos anos de vida do Santo decorreram, assim, quando estava a aumentar a pressão no sentido da adopção dos novos processos racionais, de origem aristotélica, mas ainda se encontrava viva a defesa dos meios tradicionais, mantida sobretudo pelos místicos, cujas exigências doutrinais naturalmente mais os afastavam da nova orientação. Podia esperar-se que o Santo, não obstante o seu génio e a sua clara visão, fosse alheio ao condicionalismo da transição em que viveu e compôs a sua obra. É, pelo contrário, motivo de justa admiração ver como ele, em tais circunstâncias, pôde ir fazendo a sua progressiva evolução e adaptação.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume I: Introdução ao Estudo da Obra Antoniana, Livro II, Cap. III, p.362.

  

Valores medievais: a discretio antoniana

«E, se é certo que a tendência do seu espírito para o equilíbrio, para uma interpretação sensata da vida, assente sobre a virtude da discretio, que ele tanto elogiou, lhe aconselhava uma atitude prudente perante o novo movimento de ideias, que alguns dos seus amigos, como Tomás Galo, olhavam com desconfiança, mesclada de antipatia, o Santo acabou por ver que a novidade no alargamento e transformação dos processos racionais constituía um avanço humano para a compreensão mais alta e mais perfeita das verdades cristãs, útil, portanto, para o progresso da religião, para convencer os que se desviavam por erro do recto caminho e para o encaminhamento para Deus das almas sequiosas de luz.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume I: Introdução ao Estudo da Obra Antoniana, Livro II, Cap. III, p.327.

«Santo António introduz, porém, nesta altura do processo ascensional contemplativo, um novo elemento, pleno de interesse espiritual, a um tempo esclarecedor e moderador: é a discretio. – A sua noção fundamental é-nos sugerida pela própria raiz da palavra: na verdade, etimologicamente, discretio significa discernimento, aptidão para distinguir o bem do mal ou o justo meio entre dois termos, e, por extensão, ainda designa o efeito do discernimento: a medida – a proporção platónica que realizava a beleza e a virtude (Filebo, [66] AB) – ou a actividade que, segundo Aristóteles, consistia em decidir-se pelo justo meio (Eth. Nic., B, 6, 1106b, 36).» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap. I, pp.28-29.

«A discretio é, pois, para Santo António, um agente espiritual activo e equilibrado, o nos vero in medio, tradução do in medio virtus aristotélico, tantas vezes aplicado por ele, impedindo exageros da razão onde ela não deva entrar, ou restringindo-lhe o campo de acção no que tenha de ser reservado à fé e no que respeite ao objecto íntimo da contemplação, ou distinguindo o vício da virtude e o bem do mal, contribuindo também para a realização prática e exequível do bem e das boas obras que no seu íntimo cada um tenha previamente previsto ou discernido para as executar equilibradamente. – É esta uma das articulações que a discretio estabelece entre o domínio do conhecimento especulativo e o da razão prática e que se exprime concretamente pela valorização do harmónico, do adequado, do justo, do ponderado, do conveniente, ou, numa palavra, pela virtude da prudência.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap. I, p.31.

«Mas o que sobretudo importa frisar agora, pelo papel essencial que desempenha na economia da doutrina antoniana, é a relação especial que a discretio vem determinar entre as virtudes, ou faculdades, éticas e as dianoéticas. – As virtudes dianoéticas, como perfeições que são do puro entendimento, estabelecem um plano do conhecimento intelectual; e tais virtudes vão manifestar-se nas formas especiais que o saber e a sabedoria revestem. Antes de ser um acto da razão prática, a discretio é um acto da inteligência e do recto juízo.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap.I, p.29.

«É a discretio que permite ponderar, dosear razoavelmente, todas as coisas, calcular o esforço de cada homem para a perfeição segundo as suas forças actuais e a medida de graça, de modo que ele não exceda os limites pessoais, mas também se não quede timidamente aquém destes limites. E, assim, a discrição supõe o conhecimento de si – um verdadeiro nosce te ipsum –, o discernimento exacto das reais possibilidades do homem e da justa apreciação das circunstâncias, correspondendo sempre a um recto juízo. Dentro da moldura doutrinal do chamado socratismo cristão, a discretio havia de constituir um elemento dinamizador do pensamento místico antoniano.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap. I, p.30.

«E, com efeito, o Santo lembra, alegoricamente, que, tal como no rosto do homem foram ordenadamente dispostos três sentidos: a vista, o olfacto e o gosto, havendo o olfacto sido colocado como uma balança entre a vista e o gosto, da mesma forma, «no rosto da nossa alma» a sabedoria do Sumo Artífice colocou três sentidos espirituais: a vista da fé, o olfacto da discrição («olfactus discretionis») e o gosto da contemplação. – Com o olfacto moral, ou seja com a virtude da discrição, a fé pressente as lutas da carne, das paixões, e as ofensivas da razão vã contra a alma; e, como se aquela fora um baluarte, defende esta dos ataques da tentação demoníaca. Além disso, a discretio é necessária à fé para que não queiramos aproximar-nos a ver a sarça ardente, «desatando a correia dos sapatos», e a investigar os segredos da Encarnação divina. Crê somente – conclui o Santo – e isso bastará (S, 59 b).» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap. I, p.30.

«O Santo representa por Benjamim a graça da contemplação e por Raquel a razão humana, explicando que, nascendo Benjamim, morre Raquel, porque, quando a alma, depois de elevada sobre si na contemplação, pretende indagar alguma coisa sobre a luz da divindade, toda a razão humana soçobra. E acrescenta que a morte de Raquel é o desaparecimento da razão, e, por isso, alguém (aludia a Ricardo de São Vítor) disse: «Ninguém com a razão humana chega ao ponto em que São Paulo foi arrebatado (II Cor., XII, 2-4). Seja, pois, o olfacto da discrição como que uma balança entre a vista da fé e o gosto da contemplação, para que o rosto da nossa alma resplandeça como o Sol.» (S, 59 b.)» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap. I, p.31.

 

 

 

Aula nº15 (5ª feira: 14/03/24)

Apresentação de projectos de trabalho: Matilde Sequeira, António Lisboa.

 

 

Aula nº16 (2ª feira: 18/03/24)

Balanço das duas influências — Joaquim Cerqueira Gonçalves e Francisco da Gama Caeiro — na minha perspectiva sobre a Idade Média.

5. O valor da história da filosofia: Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura. Joaquim Cerqueira Gonçalves em defesa da historicidade da razão e da filosofia.

 

 

Balanço das duas influências na minha perpectiva sobre a filosofia da Idade Média

 

Joaquim Cerqueira Gonçalves: a Idade Média como a primeira idade moderna

Nunca me preocupei com a aproximação da Idade Média à Modernidade, porventura: porque o magistério de Cerqueira Gonçalves tornou óbvia essa aproximação; e porque os meus estudos não se concentraram na Idade Média tardia e na transição para a Idade Moderna, pois recuei, por sugestão e orientação do Mestre, primeiro, ao estudo de S. Agostinho (Patrística), para avançar depois, na linhagem augustiniana, para o estudo de S. Anselmo (Pré-escolástica). Tendi mais a sublinhar as continuidades entre a filosofia antiga e a filosofia medieval, levando esta a participar da dignidade e da imortalidade dos clássicos.

 

Francisco da Gama Caeiro: a Idade Média como reserva de valores e compensação das carências espirituais do homem moderno

Também me afeiçoei à filosofia da Idade Média como compensação das carências da filosofia contemporânea: o silêncio sobre o tema de Deus, a partir do decreto nietzschiano da morte de Deus; e a desarmonia entre as categorias ontológicas para uma compreensão unitária da realidade.

A primeira carência, o silêncio sobre o tema de Deus, conduziu-me à coordenação do projecto PTDC/FIL/64249/2006 «A Questão de Deus. História e Crítica»: https://aquestaodedeus.blogspot.com/

A segunda carência, a desarmonia entre as categorias ontológicas ou a percepção da filosofia como uma ontomaquia — ser (ontologia de Heidegger) contra o ente (metafísica tradicional); a existência (existencialismo, animalismo anti-especista) contra a essência (essencialismo tradicional); a existência objectiva (filosofia analítica) contra a existência subjectiva (fenomenologia); a subsistência dos universais contra a existência espácio-temporal (B. Russell); o outro (ética de Lévinas) contra o ser (ontologia de Heidegger); ... — conduziu-me a admirar a metafísica dos medievais, na qual todas estas categorias se encontram harmonicamente articuladas, e na qual tem origem o conceito moderno de ontologia.

 

Joaquim Cerqueira Gonçalves em defesa da historicidade da razão e da filosofia

 

«Uma filosofia da razão histórica

Um cepticismo sadio: «Não dominamos nem o princípio nem o fim do conhecimento, ele está necessariamente em aberto. Todas as determinações são temporárias e destinadas a passos futuros.» FM 78/79; «Como nós não sabemos tudo, há que duvidar do que sabemos.» FM 82/83

A razão não se faz sem tempo: «Nós pensamos como se …, porque pensamos num processo e o processo ultrapassa-nos.» FM 82/83; «A razão não existe, faz‑se.» FM 87/88; «A razão não é intemporal. Pelo menos, a razão medieval, apoiada pela ideia de infinito, era uma razão aberta.» FM 98/99

A razão é vida: «A razão é vida, que se vai manifestando historicamente nas relações humanas.» FM 82/83; «A razão é um apelo da vida.» FM 82/83; «A razão, faculdade pura, não existe.» FM 83/84

A razão não é sem cultura: «A razão, em grande parte, é a organização da cultura.» FM 86/87; «Nós não temos a razão vazia; nós temos a razão cheia de tradição.» FM 86/87; «Há tantas razões quantas as culturas, quantos os mundos que organizamos.» FM 86/87

A razão não é substância, é organização: «A razão não é substantivo, mas adjectivo: a realidade é que é racional; a razão não existe.» FM 86/87; «Razão implica organização, coerência entre as partes; o que é racional, não é avulso.» FM 86/87; «A razão é um processo que se vai organizando na relação das razões finitas.» FM 86/87; «As coisas são racionais, quando estão relacionadas umas com as outras.» FM 86/87; «O conhecimento é a procura da mediação entre as coisas que não estão imediatamente articuladas.» FM 98/99

O centramento filosófico da razão: «A história da filosofia, porventura, nada mais é do que uma prolongada tentativa de definir e até de elaborar a razão.» FM 85/86; «Porquê o nosso fascínio pela razão? Porque estamos ligados a tudo; por isso, acreditamos naturalmente que tudo tem sentido.» FM 86/87; «Os critérios da razão podem ser ou mentais ou transcendentes (exs.: o Bem, em Platão; Deus, no cristianismo).» FM 86/87

A razão é histórica: «A historicidade da razão significa relativismo? A nossa razão não é relativa, mas histórica, participada.» FM 86/87; «A razão é englobante e histórica.» FM 86/87; «A ideia de progresso é outra característica inerente da razão, embora o progresso da razão não seja linear, estando sujeito a regressões.» FM 86/87; «A razão constrói‑se.» FM 86/87; «A razão é histórica, não pode quedar‑se em alguma das suas expressões.» FM 87/88

Histórias da razão contra a historicidade da razão: «A doutrina da dupla verdade, no séc.XIII, não atende à historicidade da razão.» FM 82/83; «A dupla verdade traduz a dificuldade de admitir uma verdade que é vida e que é histórica.» FM 86/87; «A história da razão, no mundo ocidental, esteve estreitamente associada à laicização da razão, que teve tendência para anular a própria história.» FM 83/84

Tendências cruzadas acerca da razão: «Toda a razão tende a ser universal, mas cada grupo tende a apossar‑se dela.» FM 86/87; «Ou se alarga o sentido de razão ou ficamos com a oposição do racional ao irracional.» FM 86/87;

A razão em relação com o amor: «O amor cria a razão, a hierarquização axiológica.» FM 86/87; «A razão deve limitar‑se por amor; quando assim se limita, não se limita.» FM 86/87

A razão admite diferenças: «Há três considerações diferentes de razão: a razão científica, a razão dialéctica e a razão mística. A primeira é horizontal, a segunda é em espiral, e a terceira é vertical.» FM 86/87

 

Historicidade da filosofia

Historicidade, uma propriedade essencial da filosofia: «A historicidade é co‑natural à filosofia.» FM 82/83; «Filosofia é história da filosofia.» FM 82/83; «Não há filosofia de direito; há filosofia de facto. A filosofia não é aquilo que ela deve ser, mas aquilo que ela foi e aquilo que ela é capaz de ser.» FM 82/83; «Se a realidade é mutável, a filosofia é mutável.» FM 85/86; «A historicidade faz parte da definição de filosofia.» FM 86/87

A filosofia em oposição à ciência, quanto à respectiva historicidade: «Se a historicidade é inerente à filosofia, tal não é óbvio para a ciência, embora seja mais fácil fazer uma história da ciência. A filosofia não prescinde do passado; a ciência vive renegando o passado.» FM 82/83; «Enquanto o cientista é muitas vezes insensível à historicidade, esta é essencial ao filósofo.» FM 83/84; «A historicidade é constitutiva da filosofia, mas talvez não seja, da ciência.» FM 83/84; «À filosofia é intrínseca a ideia de tradição, de historicidade; à ciência, não.» FM 85/86; «Todo o saber é insensível à história, o que não significa que o saber não seja histórico.» FM 86/87; «Em ciência, um paradigma substitui outro paradigma; em filosofia e nas ciências humanas, não há substituição, tudo é integrado, nada é esquecido.» FM 98/99

A questão do reconhecimento da historicidade da filosofia: «Por que é que não se discutiu durante tanto tempo o problema da historicidade da filosofia? Por causa do prestígio da filosofia grega, aliás pouco sensível à história.» FM 86/87; «A filosofia é considerada histórica ou não, consoante o sentido do nosso agir e conhecer.» FM 86/87; «Sem a vivência do tempo, da nossa unidade e da nossa diferença, não entendemos a história da filosofia, nem nos apercebemos de que a filosofia é estruturalmente histórica.» FM 98/99

 

História da filosofia, mas não cronológica

A filosofia tem o seu próprio tempo: «A filosofia cria o seu próprio tempo, a sua própria história.» FM 78/79; «Fazer história da filosofia é criar um tempo filosófico» FM 82/83; «Fazer filosofia é criar tempo, é encontrar o passado e apontar para o futuro.» FM 98/99

A história cronológica da filosofia não é a história do tempo próprio da filosofia: «Uma história cronológica da filosofia pode ter uma configuração completamente diferente de uma história em que a filosofia cria o seu próprio tempo.» FM 78/79; «A seriação cronológica dos filósofos não corresponde, não coincide com as respectivas inter-influências.» FM 82/83; «Em filosofia, não há anacronismo.» FM 98/99

A história da filosofia, como hermenêutica: «A história da filosofia é depoimento sobre a idêntica e perene filosofia.» FM 82/83; «É um facto que a história da filosofia tem sido um comentário à filosofia grega.» FM 82/83; «É um facto que a filosofia medieval é uma exegese da filosofia antiga.» FM 82/83

Em questão, os critérios de organização para uma história não cronológica da filosofia: «Em filosofia, é discutível o modelo heideggeriano de progresso, segundo o qual o progresso está no desvelamento do ser encoberto pela ciência; é talvez preferível o critério da grandeza do mundo construído pelo filósofo: quanto maior é o mundo tanto mais progressivo ele é.» FM 83/84

Exemplos: «O mundo de Parménides é muito mais excessivo do que o de muitos filósofos contemporâneos; estes passam depressa.» FM 83/84; «Por ser uma época de excesso, a Idade Média estava fadada para ser uma época de interpelação.» FM 86/87»

Maria Leonor Xavier. “Ditos filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves.” In Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, organizado pelo Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Lisboa: Edições Colibri | CFUL | FCT, 2001, pp.80-82.

 

Exercício sobre os “Ditos filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves”

1) Escolher um dito por convergência e procurar fundamentá-lo;

2) Escolher um dito por divergência e procurar refutá-lo.

 

 

 

Aula nº17 (5ª feira: 21/03/24)

5. O valor da história da filosofia: Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura. José Barata-Moura e a solução dialéctica da oposição entre filosofar (Kant) e filosofia (Hegel): “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?" Philosophica 6 (1995): 51-69.

 

 

José Barata-Moura, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?” Philosophica 6 (1995): 51-69.

 

A antinomia

«O tema — em diferentes registos e regimes, glosado — da oposição de «filosofia» e de «filosofar» ilustra bem como uma fixação antinómica, sem deixar de ser indício, carece, todavia, de músculo para dar conta adequadamente da plena concreção e desenvolvimento de uma relação dialéctica.

Abrindo a autoridade de Kant como sombrinha, há quem preconize a valorização em exclusivo de um «filosofar» desembaraçado da ganga bafienta, e da teia emaranhante, da «filosofia» constituída.

Invocando o profano nome de Hegel (em vão), pretendem outros — para efeitos de encómio ou de denegrimento — assacar-lhe a tese de que a filosofia não passa de história da filosofia, isto é, de que o filosofar a mais não aporta do que a um repisar rememorante do, no passado, pensado.

Ocorre, em alguma medida, com os posicionamentos tendenciais que acabo de esboçar o que tantas vezes acontece em produções cénicas grand standing quando há precipitação no enfarpelamento. O guarda-roupa destinado à função transmite aproximadamente uma ideia geral da época e do ambiente em que a acção se desenrola, mas logo por infortúnio o olho da câmara, ou do espectador mais propenso a minúcias, vai poisar num pormenor que só na aparência encaixa no conjunto: ao desenvolver plasticamente este plano do olhar apenas se está a distorcer o que era suposto aprofundar-se.

Impõe-se, por conseguinte, que examinemos esta questão com mais algum cuidado e detenimento, no sentido de procurarmos, designadamente, elucidar

— o teor genuíno das posições de Kant e de Hegel no que respeita ao tópico «filosofia» e «filosofar»;

— os objectivos polémicos e teoréticos centralmente perseguidos pelas respectivas concepções;

— a trama principal em torno da necessária materialização do pensar e da (filosoficamente exigida) apropriação pensante dos materiaisJosé Barata-Moura, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?” Philosophica 6 (1995): pp.51-52.

 

 

Kant em defesa do filosofar: «aprender, não filosofia, mas a filosofar»

 

«Sempre que Kant entende pronunciar-se sobre o conceito de filosofia — em textos por ele próprio preparados para publicação, em anotações destinadas a serem utilizadas em lições, ou em apontamentos de aulas que por intermédio do registo de alunos até nós chegaram — deparamos com uma contraposição principial entre «filosofia» e «filosofar».

Penso que a tese central de Kant tem um alcance exortativo ou pedagógico. Como ele inscreve numa das suas Reflexionen (Reflexões sobre a Lógica): «Nicht philosophie, sondern philosophiren lernen.» (n.1: Immanuel KANT, Reflexionen zur Logik, n. 1629; Ak., vol. XVI, p. 50), «aprender, não filosofia, mas a filosofar»!

No entanto, também se nos deparam, noutros passos, recorrentes declarações de princípio:

a filosofia não é ensinável — «die Philosophie nicht gelehret werden kann» (n.2: KANT, Vorlesungen über Logik. Logik Philippi; Ak., vol. XXIV.1, p. 321), «a filosofia não pode ser ensinada»;

a filosofia não é aprendível — «Man kann keine philosophie lernen, wohl aber philosophieren lernen» (n.3: KANT, Reflexionen zur Logik, n. 1652; Ak., vol. XVI, p. 66), «não se pode aprender filosofia nenhuma, mas sim aprender a filosofar».

Por que não é a filosofia ensinável ou aprendível, segundo Kant?

Fundamentalmente, porque a filosofia não é uma mera informação que se adquire e acumula, mas um exercício de racionalidade que o filósofo tem de assumir originalmente como criação sua.» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, pp.52-53.

 

«No magistério filosófico ou na relação pedagógica, tal como Kant as entende, o próprio acto de filosofar passa, nestes termos, a assumir o papel central e estruturante.

[...].

É indispensável que uma experiência do pensar esteja também presente e possa ser comunicada/ensinada como método do filosofar, ou seja, é imperioso que «der Lehrer selbst philosophirt habe» (n.12: KANT, Vorlesungen über philosophische Enzyklopädie; Ak., vol. XXIX,1.1, p. 6), que «o próprio professor tenha filosofado». Revela-se, por conseguinte, incontornável «fazer uso de mais razão no método da razão», «in der Methode der Vernunft mehr Vernunft zu gebrauchen» (n.13: KANT, Vorlesungen über Logik. Wiener Logik; Ak., vol. XXIV.2, p. 797)

[...].

A uma «filosofia disciplinar» (Philosophia disciplinaris), capaz de reproduzir e de entender uma conexão ou um sistema de proposições (ein Zusammenhang, System, der Sätze), tem assim de sobrepôr-se uma «filosofia habitual» (Philosophia habitualis), uma destreza para poder filosofar (eine Fertigkeit philosophiren zu können) (n.16: KANT, Vorlesungen über Logik. Logik Philippi; Ak., vol. XXIV.1, p. 321).

A habitualidade não ostenta, neste contexto, qualquer rasgo de monótona rotina ou de reverberação costumeira, mas bem pelo contrário um sentido quasi-aristotélico (n.17: Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, Δ, 20, 1022b 4-6) de assunção interiorizada de uma proficiência pronta a irromper e a, a partir de si, determinar-se, qual «segunda natureza».

É, pois, esta «filosofia habitual» (habituelle Philosophie) que, segundo Kant, não pode ser ensinada — ou não pode ser ensinada como outras noções que integram outros saberes. Apenas se pode aprender a evoluir (evoluiren) nela: não há que ensinar/aprender definições, mas tão-só a poder encontrá-las ou descobri-las (erfinden können) — «Os livros filosóficos servem apenas de ocasião para expressar, segundo um método filosófico, pensamentos seus», «Die philosophischen Bücher dienen nur zur Gelegenheit seine Gedanken methodo philosophica auszudrücken.» (n.18: KANT, Vorlesungen über Logik. Logik Philippi; Ak., vol. XXIV.1, p. 322)» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, pp.54-55.

 

«Kant não exclui liminar e principalmente o saber da esfera da filosofia; apenas o relativiza e subordina a uma tarefa de maior fôlego e amplitude: «ohne Kenntnisse wird man nie ein Philosoph werden, aber nie werden auch Kenntnisse allein den Philosophen ausmachen» (n.42: KANT, Logik, Einleitung, III; Ak., vol. IX, p. 25), sem conhecimentos ou noções nunca ninguém se tornará um filósofo, mas também nunca apenas conhecimentos ou noções farão o filósofo.» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, p.59.

 

 

Hegel também defende a autonomia do pensar filosófico:

 

«Hegel cura meditadamente de sublinhar que a autoria é congenital e estruturante de todo o pensamento: «’O meu pensar próprio’ é, propriamente, um pleonasmo. Cada um tem de pensar por si; nenhum pode pensar pelo outro.» - «’Mein eigenes Denken’ ist eigentlich ein Pleonasmus. Jeder muβ für sich denken; es kann keiner für den anderen denken.» (n.55: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 80).

Mais: é esta conjunção de Denken e de Selbstdenken, radicalmente assumida, que inaugura e abre, do ponto de vista subjectivo e do ponto de vista cultural, o próprio espaço da filosofia.

A fonte da verdade não é mais o revelado por dispensação divina, o dado que naturalmente se constata, ou o positivo historicamente instituído. A filosofia emerge quando a autoria triunfa da autoridade: «A este subministrar de um outro fundamento que não o da autoridade chamou-se filosofar.» - «Dies Unterschieben eines anderen Grundes, als den der Autorität, hat man Philosophieren genannt.» (n.56: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 80-81).» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, p.62)

 

Hegel em defesa do conteúdo da filosofia: «não filosofar sem filosofia»

 

«Surgem, assim, três aspectos a fazer ressaltar:

a) Não há filosofia desprovida de um teor, ou de um contorno (objectivo) em que ganha corpo, e a partir do qual pode ser identificada e recuperada (para novos desenvolvimentos): «a filosofia há-de ter e de ganhar um conteúdo positivo; não filosofar sem filosofia» - «die Philosophie soll einen positiven Inhalt haben und gewinnen; nicht philosophieren ohne Philosophie» (n.64: HEGEL, Konzept der Rede beim Eintritt des philosophisschen Lehramtes an der Universität Berlin; TW, v. 10, p. 405), anota Hegel à margem do texto da sua lição inaugural na Universidade de Berlin.

b) Não há ensino de puras formas metódicas, vazias de conteúdo determinado em que se plasme. É significativo o recurso à metáfora da produção artesanal de que Hegel lança mão num dos seus aforismos de Jena: «Kant é citado com admiração (Bewunderung) por ensinar, não filosofia, mas a filosofar; como se alguém ensinasse a carpinteirar, mas não a fazer uma mesa, uma cadeira, uma porta, um armário, etc.» (n.65: HEGEL, Aphorismen aus Hegels Wastebook; TW, vol. 2, p. 559).

c) Correlativa e convertivelmente, todo o aprendizado envolve uma constitutiva referência intencional: aprende-se alguma coisa, ou melhor: a fazer alguma coisa, isto é, a feitura devém uma ingrediência do próprio saber efectivo. Num texto de 1812, é desta vez a metáfora da viagem que abre o passo à elucidação: «Segundo a mania (Sucht) moderna, em particular da pedagogia, não deve tanto ser-se instruído no conteúdo (Inhalt) da filosofia, como se alguém houvesse de aprender a filosofar sem conteúdo; isto significa, aproximadamente: há-de viajar-se, e de viajar-se sempre, sem conhecer [ou aprender a conhecer, kennenlernen] as cidades, os rios, as terras, os homens, etc.» (n.66: HEGEL, Über den Vortrag der Philosophie auf Gymnasien; TW, vol. 4, p. 410).

A conclusão — a um tempo teorética e institucional — a que Hegel pretende chegar é a de que «a filosofia tem de ser ensinada e aprendida, tal como qualquer outra ciência» o tem de ser também, «Die Philosophie muβ gelehrt und gelernt werden, so gut als jede andere Wissenschaft» (n.67: HEGEL, Über den Vortrag der Philosophie auf Gymnasien; TW, vol. 4, p. 411).

Só que esta tese hegeliana sobre o magistério e o estudo filosóficos não corresponde — contrariamente ao que por vezes costuma ser admitido — a uma opção pela «filosofia» (constituída) em detrimento do «filosofar».

É precisamente essa antinomia, e o modo metafísico e abstracto (não dialeticamente concreto) de com ela lidar, que Hegel principialmente rejeita como quadro em que o problema possa e deva ser tratado.

O aprender filosófico, para Hegel, é constitutiva e incontornavelmente um Selbstdenken, um pensar por si; mas é ainda algo mais: um Selbsttun (n.68: HEGEL, Über den Vortrag der Philosophie auf Gymnasien; TW, vol. 4, p.412), um agir por si.

No aprender da filosofia, aprende-se a filosofar e filosofa-se mesmo: «Assim, ao aprender a conhecer o conteúdo da filosofia, aprende-se não só o filosofar, mas filosofa-se também já realmente.» — «So, indem man den Inhalt der Philosophie kennenlernt, lernt man nicht nur das Philosophieren, sondern philosophiert auch schon wirklich.» (n.69: HEGEL, Über den Vortrag der Philosophie auf Gymnasien; TW, vol. 4, p. 410)» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, pp.65-66.

 

«É que o conteúdo que a filosofia nos dispensa devolve-nos essencialmente a um património de humanidade e a um pensar da própria historicidade do ser.

A história da filosofia não se limita a proporcionar «a galeria dos heróis da razão pensante» (die Galerie der Heroen der denkenden Vernunft) (n.70: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 20) para efeitos de piedosa reverência contemplativa; tão-pouco nos propicia um repositório de atafulhados ramalhetes doxásticos, destinados a adornar selectas conversações informadas, ou a alimentar uma bizantina tecelagem de «opiniões a partir de opiniões» (Meinungen aus Meinungen) (n.71: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 30).

A filosofia, na configuração múltipla de positividade histórica, abre aos humanos «um tesouro» (ein Schatz): «o produto que resulta do trabalho dos génios pensantes de todos os tempos» — «das resultierende Erzeugnis der Arbeit der denkenden Genies aller Zeiten» (n.72: HEGEL, Über den Vortrag der Philosophie auf Gymnasien; TW, vol. 4, p. 412).

Este património encontra-se disponível (vorhanden) para ser apreendido (fassen), a fim de que, pela sua frequentação pensante, com ele nos cultivemos (anbilden) num escopo, colectivo, de o continuar a desenvolver (weiterbilden) (n.73: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 22).

Para Hegel, a filosofia — como é sabido — forma um sistema; mas é imperioso não esquecer, sob pena de deturpação grave do seu teor, que ela é constitutivamente: «System in der Entwicklung» (n.74: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 47), sistema em desenvolvimento — na tripla acepção de que possui um passado (a ser conhecido e a fazer frutificar), de que mobiliza um presente de diversificados confrontos com ela, de que aponta a um futuro de tarefas de e em realização.

A filosofia, para Hegel, é sem dúvida filha do seu tempo, «elo em toda a cadeia do desenvolvimento espiritual» (Glied in der ganzen Kette der geistigen Entwicklung) (n.75: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 65); é uma limitação estrutural que carrega consigo enquanto penhor e testemunho da sua radical implantação mundana.

Mas a filosofia é tambémno quadro de uma peculiar dialéctica hegeliana de entardecer que convida à re-colecção e de aurora que anuncia o raiar de novos sóis (n.76: Cf. K.L. MICHELET, Aus meinem Leben; Hegel in Berichten seiner Zeitgenossen, ed. Günther Nicolin, Hamburg, Felix Meiner, 1970, pp. 330-331) — «die innere Geburtstätte des Geistes, der später zu wirklicher Gestaltung hervortreten wird» (n.77: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p.75), «o sítio interior do espírito que, mais tarde, há-de adiantar-se em configuração real».

É por isso que a tarefa (Aufgabe) fundamental da filosofia se desenha como um conceber de aquilo que é (das was ist zu begreifen) (n.78: HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, Vorrede; TW, vol. 7, p. 26); não no sentido de uma mera conformação à positividade do existente, mas no horizonte de uma perscutação dialéctica (e, no limite: prática) da sua racionalidade.» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, pp.67-68.

 

 

J. Barata-Moura em defesa da dialéctica entre filosofar e filosofia

 

«O lugar que o ensino da filosofia ocupa no sistema educativo é função, explícita e implícita, de uma filosofia de ensino, e da representação que uma colectividade faz da sua relação com o pensar.

Aprender não é «importar» e repetir; é apropriar para desenvolver. Ensinar, não é «transferir» ficheiros, é criar condições e pasto para uma aprendizagem.

Educar, não é amestrar, nem adestrar, nem paramentar; educar é eduzir, é conduzir para fora na abertura a um destino de configuração histórica do real.

Não há filosofia sem filosofar; não há filosofar sem materialização. É precisamente a aprendizagem e o exercício que rompem e prolongam em prática um círculo só abstractamente vicioso.

A filosofia é, decerto, feiticizável; mas não é uma «coisa», é um acto de relação connosco, com os outros, com o mundo e com a história: envolve teoria e compromete prática.

 

Termino de maneira abrupta. Alguns entenderão que «à bruta».

Num tempo em que sucessivos despachos ministéricos apontam e apostam na menorização, no debilitamento, na asfixia do cultivo da filosofia em Portugal, importa meditar revitalizadamente algumas palavras de Hegel: «Temos de não acreditar que as perguntas da nossa consciência, que os interesses do mundo actual, se encontram respondidos pelos Antigos.» (n.81: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 64).

De facto, somos nós que temos de responder, pensando e agindo.

Na sentença do insuspeito Henri Bergson: «Il faut agir en homme de pensée et penser en homme d’action» (n.82: Henri BERGSON, L’ Académie Française vue de New York par un de ses membres; Ecrits et Paroles, ed. R.-M. Mossé Bastide, Paris, PUF, 1959, vol. III, p. 613).» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, pp.68-69.

 

 

Exercício sobre os textos citados de José Barata-Moura:

1) Como é que Barata-Moura entende a máxima kantiana: «aprender, não filosofia, mas a filosofar»?

2) Seleccione os passos mais significativos acerca da solução dialéctica da antinomia entre o filosofar e a filosofia, segundo José Barata-Moura.

3) O que significa “materialização” na máxima de José Barata-Moura: «Não há filosofia sem filosofar; não há filosofar sem materialização»?

 

 

 

2ª feira: 25/03/24 — Páscoa

 

5ª feira: 28/03/24 — Páscoa

 

 

Aula nº18 (2ª feira: 1/04/24)

Leitura partilhada e comentada de textos de Joaquim Cerqueira Gonçalves.

Apresentação de projectos de trabalho: Jaime Casanova. 

 

 

Aula nº19 (5ª feira: 4/04/24)

Discussão dos temas abordados em Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura.

Apresentação de projectos de trabalho: Rodrigo Reis, Igor Oliveira.

 

 

Aula nº20 (2ª feira: 8/04/24)

6. O problema do ateísmo contemporâneo: Manuel da Costa Freitas. A autonomia da ciência e o problema do mal.

Apresentação de projecto de trabalho: Maria Rodrigues

 

Manuel Barbosa da Costa Freitas (1928-2010)

 

O ateísmo contemporâneo: a compreensão de um problema

 

«Cientificamente, é desnecessário, inútil. Mais, é um obstáculo, um tropeço no caminho do progresso. Moralmente, surge como um intruso, um usurpador, quando não como um déspota ou tirano, que limita ou rouba a liberdade aos homens — é, por isso, impossível. Relativamente ao mal presente no mundo, Deus mostra-se escandalosamente longíncuo, indiferente, de um silêncio tão profundo e pesado que apenas a sua inexistência o poderá justificar.» Manuel Barbosa da Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in O Ser e os Seres. Itinerários Filosóficos, vol. I, Lisboa, Verbo, 2004, pp.500-501.

 

«Resumindo, podemos dizer que o discurso ateu revela essencialmente uma dupla origem: uma reflexão sobre o conhecimento científico e uma meditação sobre a existência humana. A conclusão ateia de uma e outra origem só é possível pela inevidência de Deus - forma primeira e mais radical do seu silêncioM. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.501.

 

«A existência do ateísmo é um dado irrecusável da nossa realidade sociocultural. A sua possibilidade assenta, por um lado, na inevidência de Deus e, por outro, na liberdade humana.» M. B. Costa Freitas, “Ateísmo”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.641.

 

A prescindibilidade de Deus em ciência

 

«A ciência é um conhecimento objectivo e verdadeiro na sua ordem própria, que a inteligência constrói com plena autonomia sem qualquer recurso a Deus ou à fé. Os fenómenos naturais obedecem a leis próprias que bastam à sua explicação racional. O comportamento do homem, animal racional, é também explicável segundo fins, princípios ou leis imanentes à sua própria natureza. A natureza e o homem são inteligíveis por si mesmos. Neste sentido, a ciência, como tal, goza de plena autonomia na sua esfera de investigação. De facto, Deus não se encontra no seu caminho, nem no princípio, nem no meio, nem no fim: de sua natureza, a ciência prescinde de Deus, é formalmente ateia.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.501.

 

«A autonomia da ciência fica assegurada, mas não é legítimo passar da autonomia necessária para uma independência total, dum método autónomo para uma doutrina racionalista. Com o racionalismo erigido em critério supremo de verdade, a esfera religiosa não passa de um sector residual que começa onde termina o vasto domínio das constantes descobertas científicas, quer dizer, a fé é relegada para o domínio do irracional, do inverificável, que, num futuro mais ou menos próximo, acabará por ser invadido pela ciência.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.508.

 

«É certo que uma longa tradição católica afirma que a existência de Deus pode ser demonstrada pela razão natural chamada a preencher a ausência de um conhecimento directo e imediato. Mas não é menos certo que às dificuldades inerentes a semelhante demonstração, de sua natureza lenta e penosa e tantas vezes de êxito duvidoso, outras acrescem de índole social e cultural que tornam, em muitos casos, praticamente impossível a concretização dessa possibilidade abstracta e ideal. Compreende-se então que o ateísmo constitua uma possibilidade e uma tentação permanente do espírito humano capaz de se articular em discurso aparentemente sólido e coerente. Por isso mesmo, qualquer afirmação de Deus só pode triunfar do ateísmo doutrinal na medida em que for capaz de integrar nas suas razões o fundo de verdade que nele se contém.» M. B. Costa Freitas, “Ateísmo”, in Id., O Ser e os Seres, I, pp.641-642.

 

«Criar significa ao mesmo tempo fazer e separar e, portanto, pôr no ser qualquer coisa de diferente de Deus — algo que é ele mesmo, autónomo, dotado de consistência e identidade própria, a-teuM. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.504.

 

«Para dar lugar à criatura, Deus como que se retraiu e encolheu.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.506.

 

«Deus não é um facto, entre outros, da natureza; não é um agente, entre outros, da história; como criador, é a possibilidade a priori de todos os factos da natureza e de todos os agentes que fazem a história.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, pp.507-508.

 

O postulado existencial do ateísmo

 

«A negação de Deus impõe-se, neste contexto [do ateísmo moderno e contemporâneo], como um postulado da existência humana. Verifica-se, deste modo, que o processo contra Deus continua a desenrolar-se, tácita ou abertamente, segundo as categorias edipianas do antagonismo, da concorrência e rivalidade.» M. B. Costa Freitas, “Ateísmo”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.641.

 

«Na Antiguidade pagã o escândalo do mal encontrou a sua expressão máxima na figura do justo e do herói perseguido pelo ciúme ou inveja dos deuses. No mundo moderno e contemporâneo é sobretudo no sofrimento dos inocentes e das crianças que ele atinge maior acuidade, tornando-se, de certo modo, insuportável. A revolta parece ser a única resposta digna do homem. É o momento em que Deus deixou de ser declarado inútil e incapaz para ser acusado como réu culpado de todos os males, inclusive da própria morte.» M. B. Costa Freitas, “Mal”, in Id., O Ser e os Seres, I, pp.515-516.

 

«Críticas e recriminações contra o cristianismo»

«Enumeremos as principais:

1) A fé, segundo o ateísmo contemporâneo, que neste particular se faz eco do racionalismo de Hegel e do positivismo de Comte, corresponde a um estádio inferior da evolução humana, felizmente já superado; denuncia, deste modo, uma mentalidade infantil, pré-lógica. [São citados ou mencionados autores, como Feuerbach, Bertrand Russell, Lévi-Strauss, ...].

2) Deus é um adversário, um inimigo, um concorrente do homem. «Se Deus existe, o homem é nada» (Sartre). [...]. O ateísmo afirma-se aqui como postulado e exigência de liberdade, como a condição sem a qual o homem não pode ser homem. [...].

3) Deus não passa de uma superestrutura ilusória e alienadora, proveniente, sobretudo, da miséria, da desordem económica em que vive a humanidade. [Citações de Marx ...; «a religião é a expressão da miséria real e ao mesmo tempo reacção contra essa miséria, é o suspirar da criatura oprimida, é o ópio do povo»; ... e são mencionados autores marxistas].

4) O cristianismo representa a floração mais refinada do ressentimento, da vingança dos fracos contra os fortes, dos escravos contra os senhores. É a consagração da degenerescência e perversão do homem, a inversão dos verdadeiros valores humanos. Assim falam Nietzsche, Bataille (Memorandum), Montherland (Solstice de juin). Quem não pode, inventa compensações para os seus fracassos. Quem não consegue triunfar na vida presente, consola-se e refugia-se numa vida futura. Deste modo, ter fé equivale a demonstrar fraqueza. [...]. — O mesmo pensam certos representantes da psicanálise. [...]. A religião moralizante torna a consciência prisioneira e doente (Freud, L’avenir d’une illusion).

5) É moralmente impossível admitir a existência de Deus: «se Deus existe, é responsável pelo mal»; «nada o desculpará perante o sofrimento de uma criança, de um inocente»; «o vosso (dos cristãos) único recurso consiste em apelar para o mistério, um mistério escandaloso e injustificável» (Roger Ykor, Dieu aujourd’hui). É o tema tão decantado e explorado do escândalo do silêncio e indiferença de Deus perante as desgraças que afligem a humanidade (doenças, injustiças, guerras, fome, peste e, sobretudo, o sofrimento dos inocentes).

6) A religião, por sua vez não serve para nada, não resolve nenhum problema, é ineficaz, de uma ineficácia total. Não passa de uma demissão da inteligência, de uma alienação das forças vivas do homem perante os mais graves problemas que se lhe deparam: [...]. A fé em Deus é puramente verbal, encobre um vazio, pois não é «operacional». É o tema tão glosado e tão comentado do «Deus cientificamente inútil». Esta concepção aparece representada de muitas maneiras. Um só exemplo. Num filme de Eisenstein, vemos, por ocasião de uma grande seca, um mujik a beijar a terra e padres a organizarem procissões em contraste com um operário soviético a construir barragens e a abrir canais de irrigação. Perante este quadro, um orador oficial comenta: «há milhares de anos que os crentes pediam a Deus o pão quotidiano; aos trabalhadores soviéticos cabe a glória de terem atendido a oração da humanidade».» M. B. Costa Freitas, “Fé e Ateísmo no Mundo Contemporâneo”, in Id., O Ser e os Seres, I, pp.648-650.

 

«Todas estas críticas só se justificam na medida em que a concepção de Deus e da religião aparecem falseadas e caricaturadas. Simplesmente cabe aqui perguntar: quem foram os autores desta caricatura, os ateus ou os cristãos? Até que ponto a apresentação tradicional e rotineira do cristianismo tem enfermado destes excessos em que Deus aparece identificado com um pronto-socorro, com um enfermeiro-mor e a religião reduzida a uma forma de superstição e de magia? É impossível responder com exatidão e objectividade absolutas. [...]. No entanto, não restam dúvidas de que os crentes tiveram e têm grandes responsabilidades na génese do ateísmo contemporâneo.» M. B. Costa Freitas, “Fé e Ateísmo no Mundo Contemporâneo”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.650.

 

«Os cristãos devem ter a coragem de se perguntar se não terão frequentemente deformado a imagem do verdadeiro Deus pela projecção n’Ele de um providencialismo absoluto e milimétrico, do qual tudo depende tanto na ordem natural como na ordem social, tornando desse modo impossível a relativa autonomia e liberdade do homem. Não terão concebido Deus, embora inconscientemente, como um proprietário da natureza, como um patrão todo-poderoso, que zela pela ordem estabelecida com o imperialismo da sua vontade, sancionando todas as situações mesmo injustas? De uma concepção estática do mundo, que não deixa lugar à liberdade e iniciativa do homem, a uma concepção piramidal da sociedade em que, por exemplo, a coexistência de pobres e ricos é apresentada como necessária à harmonia do conjunto, e, portanto, querida por Deus, vai um passo, que muitas vezes foi decididamente franqueado.» M. B. Costa Freitas, “Fé e Ateísmo no Mundo Contemporâneo”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.651.

 

«Não será verdade que, de um modo geral, a teologia sofre de uma espécie de eutanásia, de um prolongado torpor ou sonolência do qual a custo parece agora começar a despertar? Por falta de contacto com as grandes interrogações, por ignorância dos problemas maiores da sua época, pela sobranceria e desdém com que olhava a filosofia, por carência de reflexão filosófica, a teologia ficou reduzida, muitas vezes, a um mero saber cumulativo, carregado de erudição histórica, teimando numa ruminação contínua de teses e tesinhas até ao fastio, ao esgotamento e à fome. Sem mordente na realidade e na vida, deixou o campo aberto, a estrada larga a todas as incursões cada vez mais impetuosas e avassaladoras de doutrinas estranhas, é certo, mas de perspectivas mais largas e aliciantes, porque mais razoáveis e humanas.» M. B. Costa Freitas, “Fé e Ateísmo no Mundo Contemporâneo”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.652.

 

Exercício sobre os textos citados de Manuel da Costa Freitas:

1) Quais são os argumentos do ateísmo, que Costa Freitas sistematiza em 6 críticas contra o cristianismo? 

2) Quais são os 2 principais argumentos do ateísmo para Costa Freitas? 

3) Como se explicam, em última análise, os 2 principais argumentos do ateísmo contemporâneo? 

 

 

 

Aula nº21 (5ª feira: 11/04/24)

6. O problema do ateísmo contemporâneo: Manuel da Costa Freitas. Pontos cardeais de uma síntese filosófico-teológica em resposta ao problema do ateísmo: um providencialismo de exemplo; uma teologia personalista da criação; uma antropologia de vocação; uma metateologia inclusiva.

 

Manuel da Costa Freitas: pontos cardeais de uma síntese filosófico-teológica

 

1. Um providencialismo de exemplo

2. Uma teologia personalista da criação

3. Uma antropologia de vocação

4. Uma metateologia inclusiva: 4.1. A origem da ideia de Deus; 4.2. Teologia filosófica; 4.3. Personalismo

 

 

1. Um providencialismo de exemplo

 

«Embora o mistério do sofrimento dos justos permaneça obscuro, Job reconhece que a sabedoria de Deus tudo domina e dirige e que em caso algum o homem deve desesperar. O Deus do ouvir dizer, o Deus dos teístas, perdido na indiferença e na distância do seu silêncio e da sua aparente ausência, que parece estar do lado dos carrascos e dos assassinos, é ainda muito humano, demasiado humano. Mas o Deus de Abraão é também o Deus de Jesus, aquele que se comove diante do mal e não fica impassível, toma o partido das vítimas fazendo-se ele mesmo vítima para revelar até que abismos de profundidade e salvação vai o seu amor pelos homens. [...]. Sob este aspecto, a grande novidade que nos trouxe Cristo é a de que o mal pode e deve ser combatido e nisso Ele mostra-se aliado irredutível e incondicional dos homens. Pela sua doutrina e pela sua vida, sabemos que Jesus condena a injustiça. Reagir contra a miséria humana, exprimirmos a nossa indignação contra toda a espécie de injustiça, contra a guerra e seus horrores, são reacções sadias, que longe de se dirigirem contra Deus, devem ser reconhecidas como suscitadas e queridas por ele próprio. Confiar em Deus e lutar com todas as forças e por todos os meios contra o mal e suas causas são exigências cristãs indissociáveis. A morte biológica não é o mal absoluto: há razões de viver — o sentido da existência — que são superiores à própria vida.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia” (2000), in Id., O Ser e os Seres, I, p.511.

 

«Denunciando embora justamente todas as falsas representações de Deus, o ateísmo moderno e contemporâneo não atinge o teísmo da grande tradição filosófico-cristã e muito menos o Deus de Jesus Cristo, cujo silêncio perante os males do Mundo e as injustiças dos homens não é mais do que a expressão da sua transcendênciaM. B. Costa Freitas, “Ateísmo” (Logos, 1, 490-500), in Id., O Ser e os Seres, I, p.642.

 

2. Uma teologia personalista da criação

 

«A tradição judeo-cristã afirma que, «no princípio Deus criou o céu e a terra». No princípio está Deus, quer dizer, um sujeito, uma pessoa, uma inteligência, uma liberdade. Encontramo-nos assim perante uma vontade, uma intenção e não perante uma necessidade ou acaso. Pela primeira vez, a cosmologia é posta em termos e em regime de liberdade pessoal e de invenção criadora. Neste paradigma judeo-cristão rompe-se o anonimato e estabelece-se ou instaura-se o primado da liberdade sobre a natureza na medida em que aquela se encontra inscrita no próprio ser, como uma dádiva original e originante. É ela que doravante articula o tecido da existência criada; é ela, e não a fatalidade, que conduz o mundo, dádiva de Deus e não roubo ou extorsão de salteadores (Prometeu). Porque Deus não é egoísta nem ciumento, a liberdade do homem é não só direito inalienável, mas o nervo de todas as coisas criadas, a sua razão de ser, o seu necessário e autêntico princípio. Nesta perspectiva, o judeo-cristianismo não só venceu o fatalismo da história, mas também do próprio ser — é que a Deus nada faz obstáculo.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id.,O Ser e os Seres, I, p.503.

 

«O homem foi criado para criar, para que haja liberdade na terra e no céu. Mais do que coisas, Deus criou a criação, alguma coisa sempre a inventar e a descobrir, no meio da qual o homem desempenha a função insuperável de concriadorM. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, pp.505-506.

 

«Deus criou uma criação no sentido activo da palavra: realidade ainda em vias de se fazer.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.506.

 

«A creatio continua, tema recorrente na tradição cristã, é entendida não apenas como obra de Deus, mas também do homem.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.506.

 

3. Uma antropologia de vocação

 

«O homem criado criador em relação a si mesmo: tornar-se no que é, realizar na sua existência o apelo da sua essência. Trata-se de uma antropologia de vocação, em que o homem é chamado a ratificar o seu ser, assumindo-o por inteiro.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.506.

 

«A fé na criação, longe de deprimir a consistência ontológica e ética do homem, estabelece-a em bases mais sólidas e flexíveis, garantindo-lhe um universo que constantemente desafia a sua liberdade e imaginação inventiva. Longe de alienar o homem, a ideia de Deus mostra-se exigida pela razão antropológica como sua plena justificação, dando-lhe espaço e tempo para uma aventura infinita. A ideia de Deus diz o ser do homem, que é uma tensão de finito e de infinito e, portanto, a sua verdade autêntica não pode ser o ateísmo.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.507.

 

«A liberdade é antes de mais capacidade metafísica de autodeterminação (libertas contradictionis), direito ontológico a assumir pessoalmente o seu destino de maneira responsável, prestando contas, dizendo sim ou não; acolhendo, consentindo ou rejeitando.

Longe de deprimir, humilhar ou apoucar a liberdade humana, a afirmação dum Terceiro, duma Transcendência, duma Alteridade oferece-lhe o direito e o poder de se decidir, de se afirmar perante ela, o que seria impossível no círculo fechado da imanência.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.504.

 

«Criado criador em relação ao mundo e a si mesmo, o homem foi-o também em relação a Deus na medida em que essa relação é para ser vivida não em termos de coação, de natureza e de necessidade, mas de liberdade, de criação e de invenção.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.501.

 

4. Uma metateologia inclusiva

 

4.1. A origem da ideia de Deus

 

«Muito antes de se pôr filosoficamente como fórmula última do mundo, o problema de Deus é posto exteriormente pela religião e interiormente pela consciência moral. De facto, o que constitui a legitimidade e a especificidade da teologia filosófica como ciência é o esforço por ela desenvolvido para julgar do valor ontológico ou da realidade deste Ser supremo cuja noção se encontra já em nós (consciência moral) e fora de nós (sociedade): noção concreta, existencial, carregada de todo o sentido da vida, da morte e da imortalidade. Deste modo, a teologia filosófica não é apenas o coroamento da metafísica geral, mas também o coroamento de toda a antropologia filosófica.» M. B. Costa Freitas, “Teologia Filosófica” (Logos, 5, 104-107), in Id., O Ser e os Seres, I, p.459.

 

«A própria consciência moral, experiência viva da nossa dependência, acabando por identificar com o Absoluto os valores perante os quais se sente obrigada, termina numa atitude religiosa.» M. B. Costa Freitas, “Consciência Religiosa” (Logos, 1, 1140-1141), in Id., O Ser e os Seres, I, p.565.

 

«O animismo e o naturalismo vêm somente provar o sentimento profundo que o homem sempre teve da sua impotência e a tendência inata de procurar as razões últimas das coisas.

Esta crença no sobrenatural provém, sim, da sua mesma presença no homem e no mundo que o rodeia. É assim que a existência de Deus pode ser conhecida com certeza pela razão.» M. B. Costa Freitas, “Deus no Homem e o Homem em Deus” (1946), in Id., O Ser e os Seres, I, p.478

 

«Como referimos atrás, os grandes pensadores viram sempre na actividade espontânea do espírito humano a origem primeira da noção de Deus. E é precisamente no prolongamento lógico deste dinamismo espontâneo que se inscrevem as provas da existência de Deus, destinadas a garantir a objectividade da religião, ou seja, a mostrar que o Deus que nela se adora não é o termo imanente dos desejos ou aspirações de uma consciência infeliz, mas um Ser transcendente, infinito e pessoal, criador e providente de todas as coisas. O seu apoio [das provas] é também indispensável para a própria comunicação da revelação sobrenatural. De facto, só uma apreensão originária e natural de Deus nos permite concluir que o Deus revelado na Bíblia é o verdadeiro Deus. Por outras palavras, a revelação histórica de Deus só será inteligível se os homens mantiverem vivo o sentido de Deus e reconhecerem que, de algum modo, lhe estão definitivamente ordenados.» M. B. Costa Freitas, “Religião e Religiões” (Verbo — Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 23, 569-593), in Id., O Ser e os Seres, I, p.553.

 

4.2. Teologia filosófica

 

«A existência da teologia filosófica como discurso racional sobre Deus é um facto incontroverso na história do pensamento humano.A sua legitimidade assenta na experiência da gratuidade do ser, ou seja, na experiência da sua finitude e contingência a reclamar logicamente a afirmação de um Princípio Absoluto. » M. B. Costa Freitas, “Teologia Filosófica” (Logos, 5, 104-107), in Id., O Ser e os Seres, I, p.458.

 

«Não sendo Deus, em rigor de termos, objecto de nenhuma ciência, a teologia filosófica não se pode constituir como ciência autónoma. Esta posição é coerente e sublinha vigorosamente a transcendência de Deus. Mas, se considerarmos as coisas mais concretamente, não tanto numa perspectiva abstracta e formal, mas histórica e real, teremos de reconhecer que a teologia filosófica tem conteúdo e finalidade específicos que a distinguem das restantes ciências filosóficas.» M. B. Costa Freitas, “Teologia Filosófica”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.458.

 

«De resto, se a adesão de fé não exige previamente uma demonstração filosófica da existência de Deus, supõe sempre razões pessoais que, no mínimo, a tornem humanamente razoável (cf. F. Van Steenberghen, Dieu caché, 1961, p.9-26).» M. B. Costa Freitas, “Teologia Filosófica”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.459.

 

«Mesmo para aqueles que possuem sólidas e profundas convicções pessoais no domínio religioso, a teologia filosófica não é desprovida nem de interesse, pois uma coisa são as convicções pessoais que alimentam a vida, outra coisa a sua demonstração científica. É legítimo e louvável submeter as convicções a um exame crítico, elevando-as, sempre que possível, ao nível do conhecimento explícito, sistemático e crítico, para melhor estabelecer os seus fundamentos.» M. B. Costa Freitas, “Teologia Filosófica”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.459.

 

«Este movimento de progressiva comunicação, iniciado gratuitamente por Deus no acto da criação, atingiu a plenitude da sua perfeição na revelação de Deus Pai em seu Filho Jesus Cristo. Mas o Deus da consciência religiosa de Jesus Cristo é também o Deus omnipotente e criador, o Ser absoluto, transcendente e imanente, tal como o concebe o pensamento filosófico. Neste sentido, é deveras eloquente o aproveitamento que o pensamento cristão sempre fez das provas filosóficas da existência de Deus, numa clara afirmação da legitimidade e urgência de uma reflexão filosófica no interior do respectivo discurso teológico. A todas essas provas é subjacente a estrutura esquemática que do contingente conclui a uma causa necessária; das verdades parciais, à verdade absoluta; da consciência moral à existência do Sumo Bem.» M. B. Costa Freitas, “Religião e Religiões”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.553.

 

«Aqui chegados, diremos que um conhecimento puramente negativo não é um conhecimento. Os atributos negativos não teriam qualquer interesse se não se aplicassem a um ser que, de algum modo, conhecemos e exprimimos positivamente. Ora, é isto mesmo que se passa com o Ser infinito. Antes de negarmos que seja finito e relativo, Ele é afirmado como ser e como causaM. B. Costa Freitas, “A Realidade de Deus” (1991), in Id., O Ser e os Seres, I, p.463.

 

«Com frequência o ateísmo tem-se revelado o melhor aliado do teísmo na crítica que move a todos os ídolos ou falsos absolutos que não só não revelam a autêntica fisionomia de Deus, mas contribuem até para a obscurecer e degradar, descendo-a à condição de simples objecto. Na denúncia vigilante da parte de antropomorfismo que inevitavelmente se oculta em todas as representações de Deus, o ateísmo converge com a grande tradição ocidental da teologia negativa, apostada na defesa e preservação da transcendência divina.» M. B. Costa Freitas, “Ateísmo” (Logos, 1, 490-500), in Id., O Ser e os Seres, I, p.642.

 

4.3. Personalismo

 

«Com a pessoa atingimos o ponto nevrálgico da realidade divina, que é abertura, liberdade e amor, a exigir e justificar uma atitude religiosa por parte dos homens (acatamento, reconhecimento, obediência, veneração e amor). A nossa experiência interior põe-nos em presença da nossa realidade espiritual, da pessoa que somos, de um sujeito capaz de pensar e de querer, uma forma ilimitada de conhecer e de amar. (...). Mas, contrariamente ao que se passa com as perfeições mistas, a perfeição representada pela pessoa, com tudo o que ela comporta, não se encontra essencialmente ligada à finitude. Não destruímos as noções de pessoa, de consciência, de pensamento, de vontade, de amor, de liberdade, de felicidade, de complacência, etc., se as libertarmos de todo o condicionalismo finito com que se apresentam ao nível da nossa experiência possível. O nosso espírito é dotado de energia capaz de negar este modo limitado de significar, superlativizando-o, isto é, elevando-o a um grau supremo ou eminente.» M. B. Costa Freitas, “A Realidade de Deus” (1991), in Id., O Ser e os Seres, I, p.465.

 

«Também na sua essência, a liberdade é expressão da autonomia e do valor da pessoa, sinal da sua superioridade, da sua absoluta indeterminação face aos bens relativos e limitados que se lhe oferecem. Como tal, é uma perfeição simples, devendo ser atribuída formalmente à Causa criadora. A sua imutabilidade refere-se unicamente à incapacidade em adquirir ou perder qualquer perfeição, mas não à existência de iniciativas livres tomadas com total e soberana independência.» M. B. Costa Freitas, “A Realidade de Deus” (1991), in Id., O Ser e os Seres, I, p.466.

 

«O contributo que o pensamento cristão trouxe à ideia de Deus resume-se essencialmente ao carácter pessoal da sua natureza e ao poder criador da sua actividade ad extraM. B. Costa Freitas, “Deus” (Logos, 1, 1364-1372), in Id., O Ser e os Seres, I, p.450.

 

«É certo que o Cristianismo é uma exigência de vida, mas é antes de mais uma pessoa em que se acredita.» M. B. Costa Freitas, “A Oração num Mundo Secularizado” (1986), in Id., O Ser e os Seres, I, p.616.

 

«No entanto, sem abandonar a teologia filosófica, a resposta cristã ao desafio do ateísmo moderno é a confissão do Deus uno e trino revelado concretamente em Jesus Cristo, para instaurar com os homens e entre os homens relações pessoais de conhecimento e de amor.» M. B. Costa Freitas, “Ateísmo” (Logos, 1, 490-500), in Id., O Ser e os Seres, I, p.643.

 

 

 

Aula nº22 (2ª feira: 15/04/24)

Apresentação de projectos de trabalho: Joana Mendonça, Marta Lopes, Afonso Sousa.

 

 

Aula nº23 (5ª feira: 18/04/24)

Apresentação de projectos de trabalho: Inês Silva, João Cardoso, João Henriques.

 

 

Aula nº24 (2ª feira: 22/04/24)

7. O problema do valor da filosofia: José Barata-Moura. Marx e a filosofia: um «banimento» da filosofia? José Barata-Moura em defesa de um «revolucionamento» da filosofia e de uma dialéctica de compreender e transformar.

 

O problema do valor da filosofia: José Barata-Moura

 

Na Conferência Abertura de Filosofia, realizada no início do ano lectivo de 2014-2015 (6 de Outubro de 2014: vd. vídeos da conferência na pasta de Eventos deste sítio), na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o Professor José Barata-Moura caracterizava assim a diferença do pensar filosófico:

 

«Na diferença de todas as diferências, os cientistas pensam. Os poetas pensam. O engenheiro pensa. Os artistas pensam. O homem comum pensa. As crianças… pensam.

Não obstante, ocorre que é própria dos filósofos uma ocupação com o pensarJosé Barata-Moura, “Traços do pensar filosófico”, Philosophica, Lisboa, 45 (2015), 8.

 

De facto, não cremos que foi ao acaso que o Professor escolheu os termos da sua caracterização da filosofia: «uma ocupação com o pensar». Desde logo, a escolha do termo «ocupação» adverte-nos para o «embasamento» (para usar um termo recorrente na linguagem filosófica de José Barata-Moura, porventura em alternativa a “fundamento”, termo filosoficamente habituado a conotações estritamente teoréticas) do pensar filosófico na vida do filósofo, incluindo as condições reais da sua existência concreta. O pensar não é uma fumaça etérea desligada da vida, mas é uma dimensão constitutiva do ser humano, com a qual é «próprio» do filósofo ocupar-se. Como? De acordo com os «traços» de vivência subjectiva, de relacionalidade, de exame crítico, de compreensão e transformação, com que José Barata-Moura desenha o seu conceito de filosofia.

«Pensando, estamos junto de nós mesmos. No aconchego da nossa casinha.

É o momento subjectivo da «vivência» do pensar.» Id., “Traços do pensar filosófico”, p.10.

 

«O pensar é, todo ele, um acto de entregas à relacionalidade.

Pensamos em relação com o mundo. Pensamos desde, e na respiração de, uma cultura. Pensamos e vivemos sempre em comunidade – mesmo quando dela estamos fisicamente apartados, ou quando apetecemos apartar-nos do seu convívio directo. O nosso singularismo, a nossa individualidade – aspectos constituídos que não são para votar ao menosprezo –, somente ganham efectiva estação no incontornável contorno de uma trama complexa e lábil de relacionamentosId., “Traços do pensar filosófico”, pp.12-13.

 

«Criticar não é dizer-mal; é procurar ver bem. Tão-pouco criticar é contrapôr, de um modo abstracto e mecânico, enunciações que entre si se excluem. A fim de preparar, não raro, uma saída airosa para o elegante salão dos cepticismos.

O assunto em causa é outro. A crítica é um exame: um fazer passar pelos crivos da racionalidade, e do discernimento, tudo aquilo que imediatamente se nos apresenta – ou que nos oferecem de presente na bandeja – como uma datidade inquestionável.

Por isso, o pensar filosófico – descendo uns lanços de escada no trabalho – aponta também a uma demanda de fundamentação.» Id., “Traços do pensar filosófico”, p.14.

 

Mas a filosofia é reposta em questão, quanto ao seu valor e futuro, com o materialismo de Marx. O marxismo pode ser entendido como não sendo uma filosofia e como tendo até declarado o fim da filosofia. É isso mesmo, o que pode sugerir a célebre Tese 11:

 

«Os filósofos têm interpretado o mundo apenas de diversos modos [verschieden]; trate-se, porém, de [es kömmt aber darauf an] o transformar. (Manuscrito 1845)» Id. As Teses das «Teses». Para um exercício de leitura, Lisboa: Editorial «Avante!», 2018, p.29.

 

Barata-Moura encontra filosofia no materialismo de Marx, e empenha-se em trazer à luz essa filosofia, como fora já o caso na obra Filosofia em O Capital. Uma Aproximação (2013), e como acontece também em As Teses das «Teses». Relativamente à Tese 11, o filósofo-leitor de Marx adverte:

 

«Lê-se de um trago, mas deixa travo.

O texto é arqui-conhecido, e foi poli-comentado.

Pleo-citado a torto e a direito, continua a ser, por vezes, mono-entendido em via reduzida: e no uni-direccional da suma, perdem-se-lhe as tortuosidades do sumo.» Id., As Teses das «Teses», “Tese 11”, p.609.

 

José Barata-Moura é um filósofo materialista, mas é também hegeliano no que concerne ao legado da dialéctica: como é que ele se confronta com a Tese 11? Como decorre da leitura da Tese em contexto:

 

«Na verdade, o problema não é a filosofia.

O problema é o tipo de filosofia que se cultiva, e o emprego que, a coberto do idealismo, com ela se cultua.» Id., As Teses das «Teses», “Tese 11”, pp.655-656.

«O problema não consiste, portanto, propriamente em arrumar com a filosofia. Mas em arrimar a filosofia a outros rumos, que a recolocam na pista.» Id., As Teses das «Teses», “Tese 11”, p.657.

 

Considerando a novidade do materialismo de Marx, que não é meramente uma nova doutrina, mais uma doutrina que se acrescenta e opõe a outras, mas um novo modo de cultivar a filosofia em estreita conexão com a prática, Barata-Moura lê a Tese 11, como um manifesto de «revolucionamento na forma de conceber e de fazer filosofia»:

 

«Não enuncia um qualquer acto de contrição em sussurro por pecaminosos desvarios filosofais exumados da catacumba de um passado remoto (de que se abjura); não anuncia, perante a pólis engalanada, e em festiva assembleia para o efeito reunida, uma solene e definitiva proscrição de todo o filosofar; não pronuncia, em tom grave e circunspecto, uma sentença de simples despedimento da filosofia, por envergonhante e recôndita causa ou por indecente e má figura.

Não estamos perante nenhum banimento em forma.

Mas estamos bem dentro de um revolucionamento na forma de conceber e de fazer filosofia.» Id., As Teses das «Teses», “Tese 11”, p.656.

 

Portanto, a Tese 11 não é o que parece, um banimento da filosofia, mas é, no fundo, um «revolucionamento» na filosofia. E em que consiste esse «revolucionamento» intra-filosófico? Consiste por certo numa vinculação da filosofia à prática, a fim de tornar a filosofia participante das forças que transformam a realidade. A vinculação da filosofia à prática significa, em Barata-Moura, uma dialéctica de compreender e transformar:

 

«Compreender, por si só, não transforma. Mas a transformação tem ela também que ser compreendidaId., As Teses das «Teses», “Tese 8”, p.503.

 

«Por isso é que, sob este ponto de vista, o marxismo não é nem um «empirismo» (em que a verdade devém mera comprovação de positividades), nem um «eticismo» (em que a proclamação do «dever-ser» dispensa a boa consciência de outros trabalhos), nem um «pragmatismo» (em que como verdade vale tudo aquilo que «funcione», ou que sirva um determinado propósito), mas uma concepção que, a partir da materialidade dialéctica do real, o procura compreender teoricamente (reflectindo, de modo adequado, na sua concreção, as dinâmicas de que se entretece), e transformar praticamente num sentido revolucionário (afinando, e confirmando assim, na e pela prática, o valor de realidade, o valor de verdade, do seu pensamento).» Id., As Teses das «Teses», “Tese 2”, pp.269-270.

 

«A ontologia materialista dialéctica não se confina a um saber fundamentado que — investigando, com minúcia e discernimento, nas apropriadas camadas do real — se procura. Abre — na unidade de um mesmo movimento vectorial — a todo um complexo programa histórico de transformações materiais.» Id., As Teses das «Teses», “Tese 10”, p.580

 

 

 

5ª feira: 25/04/24 — Feriado

 

 

Aula nº25 (2ª feira: 29/04/24)

Leitura partilhada e comentada de textos.

Discussão dos temas abordados.

 

 

Aula nº26 (5ª feira: 2/05/24)

Prova escrita.

 

 

 

 
 
 
 

© 2009 Todos os direitos reservados.

Crie o seu site grátisWebnode