Grandes Mestres do Pensamento Medieval: SANTO ANSELMO 

 
 

PROGRAMA

 

Introdução

i) A importância de uma visão de conjunto do pensamento de um autor

ii) O caso de Santo Anselmo

 

1. Razão, linguagem e verdade

1.1. Várias acepções de razão (ratio): Monologion

1.2. Elementos de uma teoria da significação; De grammatico; De veritate

1.3. Uma teoria transversal da verdade: De veritate

 

2. “Algo maior do que o qual nada possa ser pensado”

2.1. Summum bonum: Monologion

2.2. O argumento único: Proslogion

 

3. A questão da salvação da humanidade

3.1. Uma obra mal amada: Cur Deus Homo

3.2. Liberdade e perseverança: De libertate arbitrii; De caso diaboli; De concordia praescientiae, praedestinationis et gratiae Dei cum libero arbitrio

 

4. Anselmo e os outros

4.1. Conexões óbvias

4.2. Conexões improváveis

 
 

AVALIAÇÃO

 

A classificação final do aproveitamento individual depende da avaliação dos 3 seguintes elementos obrigatórios:

1) Apresentação oral do trabalho em projecto, sobre uma das obras de S. Anselmo incluídas no programa (45%) — título, resumo e abstract, índice de tópicos a desenvolver, bibliografia — em aulas agendadas para a apresentação dos projectos;

2) Participação nas aulas agendadas para a discussão de tópicos leccionados (10%);

3) Trabalho concluído e escrito (45%), a ser enviado até à penúltima aula.

 

Na impossibilidade de realizar os elementos da avaliação contínua, a/o estudante pode obter a classificação final do aproveitamento na disciplina, através de uma prova escrita sobre o curso leccionado, a decorrer na última aula.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

1. Obras de S. Anselmo

Sancti Anselmi cantuariensis archiepiscopi Opera Omnia, ed. por F.S. Schmitt. Vols. I-VI. Edinburgh: Nelson and Sons, 1946-1961.

Sancti Anselmi cantuariensis archiepiscopi Opera Omnia, ed. por F.S. Schmitt. T. I, vols. I-II, t. II, vols. III-VI. Stuttgart – Bad Cannstatt: Friedrich Fromman Verlag (Günther Holzboog), 1968.

Obras Completas de San Anselmo. Textos da ed. F. S. Schmitt com introdução e versão castelhana de P. Julian Alameda, vols. I-II. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,      1952-1953.

L’Oeuvre d’Anselme de Cantorbéry. Textos da ed. F. S. Schmitt com introduções, tradução e notas por Michel Corbin e outros, tt. 1-5. Paris: Les Éditions du Cerf, 1986-1990.

Anselm. The Complete Treatises with Selected Letters and Prayers and the Meditation on Human Redemption. Edited and translated by Thomas Williams. Indianapolis | Cambridge: Hackett Publishing Company, 2022.

Proslogion. Tradução de António Soares Pinheiro, introdução e análise por Marcello Fernandes e Nazaré Barros. Lisboa: Lisboa Editora, 1995.

Proslogion. Texto integral, leitura orientada e propostas de trabalho por José Silva Rosa. Lisboa: Texto Editora, 1995.

Proslogion. Seguido do Livro em Favor de um Insensato, de Gaunilo, e do Livro Apologético. Tradução, introdução e comentários por Costa Macedo. Porto: Porto Editora, 1996.

 

2. Obras clássicas sobre S. Anselmo

AAVV. Spicilegium Beccense I. Congrès International du IXe Centenaire de l’Arrivée d’Anselme au Bec. Paris: Vrin, 1959.

AAVV. Analecta Anselmiana. Untersuchungen über Person und Werk Anselms von Canterbury. Begründet von Franciscus Salesius Schmitt. IV/ 1-2: Akten der ersten Internationalen Anselm – Tagung Bad Wimpfen – 13 September bis. September 1970, ed. by Helmut Kohlenberger. Frankfurt: Minerva GmbH, 1975.

BALTHASAR, Hans Urs Von. Gloria. II: Stili Ecclesiastici. Traduzione di Michele Fiorillo. Milão: Jaca Book, 1978.

BARTH, K., Fides quaerens intellectum. Anselms Beweis der Existenz Gottes in Zusammenhang seines theologischen Programms. Munchen: Chr. Kaiser, 1931.

GILBERT, Paul. Dire l’Ineffable. Lecture du “Monologion” de S. Anselme. Paris: Éditions Lethielleux; Namur: Culture et Vérité, 1984.

—. Le Proslogion de S. Anselme. Silence de Dieu et joie de l’homme. Roma: Editrice Pontificia Università Gregoriana, 1990.

GILSON, Étienne. “Sens et nature de l’argument de Saint Anselme.” Archives d’histoire doctrinale et littéraire du moyen âge 9 (Paris, 1934): 5-51.

HARTSHORNE, CHarles., Anselm’s Discovery: a re-examination of the ontological proof for God’s existence. La Salle (Ill.): Open Court, 1965.

KOIRÉ, Alexandre. L’Idée de Dieu dans la philosophie de St. Anselme. Paris: Éditions Ernest Leroux, 1923.

MALCOLM, Norman. “Anselm’s ontological arguments”, The Philosophical Review 69 (Ithaca, 1960): 41-62.

MOREAU, Joseph. Pour ou Contre L’Insensé ? Essai sur la Preuve Anselmienne. Paris: Vrin, 1967.

PLANTINGA, Alvin. The Nature of Necessity. Oxford: Clarendon Press, 1974.

VUILLEMIN, Jules. Le Dieu d’Anselme et les apparences de la raison. Paris: Aubier‑Montaigne, 1971.

 

3. Obras do séc. XXI sobre S. Anselmo

AAVV. Anselmo sola ratione 900 anos depois, coord. por M.L. Xavier. Philosophica 34 (Lisboa, 2009): 11-412.

AAVV. Anselm of Canterbury: Communities, Contemporaries and Criticism, ed. by Margaret Healy-Varley, Giles E.M. Gasper and George Younge. Leiden |Boston: Brill, 2022.

AAVV. New Readings of Anselm of Canterbury’s Intellectual Methods, ed. by John T. Slotemaker and Eileen C. Sweeney. Leiden |Boston: Brill, 2022.

BAYER, John. The Unity of the Proslogion. Reason and Desire in the Monastic Theology of Anselm of Canterbury. Leiden |Boston: Brill, 2021.

CAMPBELL, Richard. Rethinking Anselm’s Arguments. A Vindication of his Proof of the Existence of God. Leiden |Boston: Brill, 2018.

—. A Cosmological Reformulation of Anselm’s Proof That God Exists. Leiden |Boston: Brill, 2022.

HOLOPAINEN. Toivo J. A Historical Study of Anselm’s Proslogion. Argument, Devotion and Rhetoric. Leiden |Boston: Brill, 2020.

LEFTOW, Brian. Anselm’s Argument. Divine Necessity. Oxford: Oxford University Press, 2022.

LOGAN, Ian. Reading Anselm’s Proslogion. The History of Anselm’s Argument and its Significance Today. Farnham | Burlington: Ashgate, 2009.

MACEDO, José Costa. Anselmo e a astúcia da razão. Porto Alegre: Edições EST, 2009.

 

4. Estudos da autora sobre S. Anselmo

XAVIER, Maria Leonor. “A Prova Anselmiana, segundo Karl Barth.” Philosophica 5 (Lisboa, 1995): 103-121.

—. “Christologie et Théodicée dans le Cur Deus Homo de saint Anselme. In Cur Deus Homo. Atti del Congresso Anselmiano Internazionale, Roma 21-23 maggio 1998 (Studia Anselmiana, 128), coord. por Paul Gilbert, Helmut Kohlenberger, ed. por Elmar Salmann, 503-514. Roma: Pontificio Ateneo S. Anselmo, 1999.

—. Razão e Ser. Três Questões de Ontologia em Santo Anselmo (Colecção Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian|Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), 1999.

—. “O argumento anselmiano: um argumento ontológico?” Revista Ágora Filosófica. Revista Semestral do Departamento de Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco. Ano 1, n.2 (Recife, 2001): 66‑81.

—. “O conhecimento de Deus: Anselmo e Gaunilo.” In Intellect et imagination dans la Philosophie Médiévale. Actes du XIe Congrès International de Philosophie Médiévale de la Société Internationale pour l’Étude de la Philosophie Médiévale (S.I.E.P.M.), Porto, 26-31 de Agosto de 2002, (Rencontres de philosophie médiévale, 11), edit. por Maria Cândida Pacheco, José F. Meirinhos, vol. II, 867‑880. Turnhout: Brepols Publishers, 2006.

—. “Do pensável e do impensável na filosofia do Argumento Anselmiano.” In Filosofia e Espiritualidade: O Contributo da Idade Média, editado por João J. Vila-Chã, 275-296. Braga: Revista Portuguesa de Filosofia, 2008.

—. “O Argumento Anselmiano entre Continuadores e Críticos.” In A Questão de Deus na História da Filosofia, coordenado por Maria Leonor L.O. Xavier, vol. I, 269-326. Sintra: Zéfiro | FCT / CFUL, 2008.

—. A Questão da Existência de Deus. Uma Disputa Medieval. Sintra: Zéfiro, 2013.

—. “Anselmo hoje e o retorno do dualismo: um novo parricídio contra Parménides?” in Reflexões sobre Éticas gregas e Filosofia contemporânea, organizado por Cícero Cunha Bezerra, Marcos R. N. Costa, 141-163. Recife: Editora UFPE | CAPES, 2014.

—. “Anselm and Dualism Reconsidered.” International Journal of Philosophy and Theology. Published by American Research Institute for Policy Development. Vol. 3, N.2 (December 2015): 1-8.

—. “Anselm’s Metaphysics in the Lineage of Parmenides: nihil est per nihil.” Philosophy Study Vol. 6, N.8 (August 2016): 472-478.

—. Three Questions on God. Saarbrücken: LAP – Lambert Academic Publishing, 2016.

—. “Anselm and Derrida—An Unlikely Connection.” Philosophy Study Vol. 7, N. 7 (July 2017): 360-366.

—. “A Paronímia. Santo Anselmo entre Clássicos da Filosofia da Linguagem.” In Fios de Memória. Liber Amicorum para Fernanda Henriques, organizado por Irene Borges-Duarte, 407-418. V. N. Famalicão: Edições Húmus |Universidade de Évora, Escola de Ciências Sociais, FCT, 2018.

—. “Anselm and Heidegger — A Disquieting Analogy.” Philosophy Study Vol. 9, N.3 (March 2019): 144-150.

—. “Santo Anselmo sobre as relações humanas: firmeza e sensibilidade.” In Filosofía de la Amistad. De amicitia. Amistad en la Filosofía Medieval & de inicios de la Modernidad. Homenaxe ao Profesor César L. Raña Dafonte, editado por Martín González Fernández, Jorge Cendón Conde, Oscar Parcero Oubiña, Rocío Carolo Tosar, 189-205. V. N. Famalicão: Edições Húmus / SOFIME / Seminario de Estudos Galegos (Área de Pensamento), 2020.

—. “The Presence of Saint Anselm in André do Prado’s Horologium Fidei.” The Saint Anselm Journal Vol. 17, n.2 (Spring 2022): 87-102.

 

 

AULAS

 

Aula nº1 (2ª feira: 22/01/24)

Apresentação.

O programa: conteúdos; bibliografia expandida; organização das aulas; avaliação.

 

 

Aula nº2 (5ª feira: 25/01/24)

Introdução. Um pouco de filosofia da hermenêutica. A pujança vocabular: exegese, hermenêutica e interpretação. Condições da interpretação e pluralidade de tendências hermenêuticas. Uma proposta de ordenamento dos sentidos privilegiados pelas várias tendências. A ordem proposta dos sentidos em conexão com a interpretação do pensamento de S. Anselmo.

 

 

Podemos tentar uma harmonização das várias tendências hermenêuticas por analogia com a tradição da exegese medieval (tradição estudada por Henri de Lubac. Exégèse Médiévale. Les quatre sens de l’Écriture. I-IIe, tt.I-II. Paris: Aubier, 1959-1964):

 

Exegese medieval

Ordem possível das várias tendências hermenêuticas

Sentido anagógico

Sentido actual (do leitor)

Sentido moral

Sentido tradicional

Sentido alegórico

Sentido contextual ou histórico

Sentido literal ou histórico

Sentido concordante com o conjunto da obra (do autor)

 

Sentido intencional (do autor)

 

Sentido literal ou cirúrgico

 

Tal como os sentidos da exegese medieval, os sentidos preconizados pelas várias tendências actuais são sobreponíveis e hierarquizáveis entre si. Portanto, não têm de se excluir uns aos outros.

O sentido concordante com o conjunto da obra (do autor) é aquele que acusa a pertença de vários textos a um mesmo autor. Ressalta nos estudos de concordâncias entre vários textos para a determinação da respectiva autoria, quando esta não é óbvia. Articula-se com a noção mínima de autor, que encontramos em Michel Foucault, a «função autor»:

«Um nome de autor não é simplesmente um elemento de um discurso (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome, etc.); ele exerce relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma função classificativa, um tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, seleccioná-los, opô-los a outros textos. Além disso, o nome de autor faz com que os textos se relacionem entre si; Hermes Trimegisto não existia, Hipócrates também não — no sentido em que poderíamos dizer que Balzac existe —, mas o facto de vários textos terem sido agrupados sob o mesmo nome indica que se estabeleceu entre eles uma relação seja de homogeneidade, de filiação, de mútua autenticação, de explicação recíproca ou de utilização concomitante. Em suma, o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, ter um nome de autor, o facto de se poder dizer “isto foi escrito por fulano” ou “tal indivíduo é o autor”, indica que esse discurso não é um discurso quotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro, imediatamente consumível, mas que se trata de um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto. — Chegaríamos finalmente à ideia de que o nome de autor não transita, como o nome próprio, do interior de um discurso para o indivíduo real e exterior que o produziu, mas que, de algum modo, bordeja os textos, recortando-os, delimitando-os, tornando-lhes manifesto o seu modo de ser ou, pelo menos, caracterizando-lho. Ele manifesta a instauração de um certo conjunto de discursos e refere-se ao estatuto desses discursos no interior de uma sociedade e de uma cultura. O nome de autor não está situado no estado civil dos homens nem na ficção da obra, mas sim na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e o seu modo de ser singular. Poderíamos dizer, por conseguinte, que, numa civilização como a nossa, uma certa quantidade de discursos é provida da função “autor”, ao passo que outros são dela desprovidos. Uma carta privada pode bem ter um signatário, mas não tem autor; um contrato pode bem ter um fiador, mas não um autor. A função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade.» Michel FOUCAULT. O que é um autor? (1969) Trad. Fernando Cascais e Edmundo Cordeiro. Lisboa: Vega, 1992, pp.44-46. 

 

 

Aula nº3 (2ª feira: 29/01/24)

1. Razão, linguagem e verdade

1.1. Várias acepções de razão (ratio): Monologion e Proslogion. Uma razão metódica ou o método sola ratione. A razão cognitiva da mente: intellectus.

 

  

Aula nº4 (5ª feira: 1/02/24)

1. Razão, linguagem e verdade

1.1. Várias acepções de razão (ratio): Monologion e Proslogion. A razão que há nas coisas. 

1.2. Elementos de uma teoria da significação: De grammatico; De veritate

1.3. Uma teoria transversal da verdade: De veritate

 

 

Aula nº5 (2ª feira: 5/02/24)

1.3. Uma teoria transversal da verdade: De veritate

Leitura partilhada e comentada de textos.

 

1. Uma razão metódica da filosofia: sola ratione

 

Logo no Prólogo do Monologion, Anselmo caracteriza o método da meditação pela suspensão da autoridade das Escrituras: «Alguns irmãos frequente e insistentemente me pediram que lhes descrevesse, como um exemplo de meditação, aquilo que lhes havia exposto conversando em discurso corrente acerca da essência da divindade e de outros assuntos concernentes a esta meditação. Mais de acordo com a sua vontade do que com a facilidade da tarefa ou a minha possibilidade, eles estipularam a forma da meditação a escrever a ponto de nada absolutamente se persuadir nela pela autoridade das Escrituras, mas quanto àquilo que fosse afirmado no fim de cada uma das indagações, que a necessidade da razão (rationis necessitas) rapidamente confirmasse e a claridade da verdade (veritatis claritas) manifestamente mostrasse que assim é, com um estilo liso, argumentos correntes e simples discussão. Quiseram também que eu não menosprezasse responder sequer às objecções simples e quase tolas que me ocorressem.» S. Anselmo, Monologion (Mon), Prologus, in F. S. Schmitt (Ed.), S. Anselmi Cantuariensis Archiepiscopi Opera Omnia, Stuttgart – Bad Cannstatt, 1968, I, p.7, 1-12.

 

Ainda no Prólogo do Monologion, Anselmo caracteriza também o seu método pela autonomia pessoal do pensamento: «Tudo o que aí disse, fi-lo na pessoa de quem disputa consigo mesma só pelo pensamento (sola cogitatione) e de quem investiga aquilo de que não se tinha advertido antes, como eu sabia que queriam aqueles cujo pedido eu pretendia satisfazer.» Mon, Prologus (Schmitt: I, p.8, 18-21).

 

No Cap. I, Anselmo declara a possibilidade de abordar só pela razão (sola ratione) todas as matérias de fé do Monologion: «Se alguém ignora, ou por não ter ouvido ou por não ter crido, a natureza una, suprema relativamente a todas as coisas que existem, a única que é auto‑suficiente na sua eterna beatitude, que dá e que faz, pela sua omnipotente bondade, com que todas as outras coisas sejam algo e sejam de algum modo bem, e muitos outros dados que cremos necessariamente acerca de Deus ou da sua criatura, considero que de tudo isso, em grande parte, mesmo com pouco engenho, pode alguém persuadir‑se a si mesmo ao menos só pela razão (sola ratione).» Mon 1 (Schmitt: I, p.13, 5-11).

 

A expressão anselmiana sola ratione significa, sim, uma razão solitária, que é: plural e comunicável — «O que, podendo fazer-se de muitos modos, proponho um, que estimo ser facilíssimo (promptissimum) para ele [aquele que tem pouco engenho].» Mon 1 (Schmitt: I, p.13, 11-12) —; tentativa e provisória — «Se, porém, uma autoridade maior não mostrar aquilo que eu disser, quero que seja aceite do seguinte modo: embora pelas razões que me parecem quase com necessidade se conclua, nem por isso, todavia, com toda a necessidade, mas apenas se diga que assim pode por enquanto parecer.» Mon 1 (Schmitt: I, p.14, 1-4).

 

Quando desponta uma questão filosófica, essa razão é activada para conduzir o pensamento na análise e resolução dessa questão. Podemos, por isso, considerá-la uma razão metódica da filosofia. Por exemplo, quando a mente desperta para indagar a origem de todos os bens: «De facto, uma vez que todos desejam fruir apenas daquelas coisas que consideram boas, é fácil (in promptu est) converter por vezes o olhar da mente para investigar aquilo donde são boas aquelas coisas que não deseja senão porque julga serem boas, de modo que, conduzindo a razão (ratione ducente), progrida racionalmente na direcção daquilo que irracionalmente ignora.» Mon 1 (Schmitt: I, p.13, 12-16, p.14, 1).

 

A razão do método não exclui a fé; nem a fé exclui a razão. Sobre a diferença entre uma fé viva e uma fé morta (Tgo. 2, 20; 2, 26; Gal. 5, 6), Anselmo: «Pode dizer-se de modo suficientemente adequado que a fé viva crê naquilo em que deve crer (in id in quod credi debet), enquanto a fé morta crê apenas aquilo que deve crer (id quod credi debet).» Mon 78 (Schmitt: I, p.85, 7-9).

 

 

2. Uma razão cognitiva da mente: intellectus

 

No sujeito do conhecimento, encontram-se os sentidos do corpo e a razão da mente, que é o intelecto.

Os sentidos enganam? Não: «Discípulo. Há decerto verdade nos sentidos do corpo, mas não sempre. Por vezes enganam-nos. Por vezes, quando vejo algo através do vidro, a vista engana-me, pois por vezes reporta o corpo, que vejo atrás do vidro, como sendo da mesma cor do vidro, quando tem outra cor; por vezes faz-me pensar que o vidro tem a cor da coisa que vejo atrás, quando não tem. Há muitos outros casos, nos quais a vista e os outros sentidos enganam. — Mestre. Não me parece que esta verdade ou falsidade esteja nos sentidos, mas sim na opinião. O próprio sentido interior engana-se, não lhe mente o exterior.» DV 6 (Schmitt: I, p.183, 15-23); «De modo similar, quando se julga partida, a vara que tem uma parte dentro da água e outra fora; ou quando julgamos que a nossa vista descobre (inveniat) os nossos rostos no espelho; e como muitas outras coisas nos parecem anunciar a vista e os outros sentidos de modo diferente de como são: não é culpa dos sentidos que reportam o que podem, porque receberam poder assim, mas deve ser imputado ao juízo da alma, que não discerne bem aquilo que eles podem ou aquilo que devem.» DV 6 (Schmitt: I, p.184, 26-31).

 

Sentidos de sentir: experimentar e ajuizar

Experimentar: «Como há tão inumeráveis bens, cuja tão grande diversidade experimentamos pelos sentidos corpóreos (sensibus corporeis experimur) e discernimos pela razão da mente (ratione mentis discernimusMon 1 (Schmitt: I, p.14, 5-7). E a experiência é também valorizada como base universal e segura de saber: «Na verdade, aquilo de que alguma coisa é feita é causa disso que é feito de si, e é necessário que toda a causa forneça à essência do efeito algo adjuvante (aliquod adiumentum). O que todos de tal modo conhecem por experiência (tenent experimento) que a ninguém é retirado pela discussão e a quase ninguém é subtraído pela decepção.» Mon 8 (Schmitt: I, p.22, 13-16).

Ajuizar pela razão da mente: «Por isso talvez, não talvez mas por certo, todo o intelecto ajuiza (omnis intellectus iudicat) que as naturezas de algum modo viventes são superiores às não viventes, as sencientes às não sencientes, as racionais às irracionais.» Mon 31 (Schmitt: I, p.49, 12-14).

Sentir, em sentido lato, é o mesmo que conhecer, e, assim, pode dizer-se que Deus é sumamente sensível: «Mas se sentir não é senão conhecer ou não existe senão para conhecer — quem de facto sente conhece segundo as propriedades dos sentidos, como as cores pela vista, os sabores pelo gosto —: não se diz inconvenientemente que sente de algum modo, aquilo que de algum modo conhece. Logo, Senhor, embora não sejas corpo, és verdadeiramente deste modo sumamente sensível (summe sensibilis), na medida em que conheces sumamente todas as coisas, não na medida em que o animal corpóreo conhece pelo sentido.» Pros 6 (Schmitt: I, p.105, 1-6).

 

Sentidos de intellectus: uso hermenêutico e sentido antropológico.

Uso hermenêutico: «Na verdade, se a própria essência suprema é dita existir no lugar ou no tempo: embora o mesmo seja dito acerca dela e acerca das naturezas espácio-temporais, por causa do costume da fala (propter loquendi consuetudinem), diverso porém é o entendimento (intellectus), por causa da dissemelhança entre as coisas. Naquelas naturezas, a mesma proposição significa duas coisas, a saber: que estão presentes nos lugares e nos tempos nos quais são ditas existir, e que estão contidas neles. Na essência suprema, apenas se percebe um sentido, a saber: que está presente, mas não que está contida.» Mon 22 (Schmitt: I, p.40, 26-33). Vd. também Mon 65 (Schmitt: I, p.76, 1-9).

Sentido antropológico: «Costumamos atribuir muitas vezes e irrepreensivelmente palavras com significado locativo a coisas que nem existem num lugar nem estão contidas nalguma circunscrição de lugar. Como se disser que aí (ibi) está o intelecto na alma (intellectum in anima), onde (ubi) está a racionalidade. Na verdade, embora ‘aí’ (ibi) e ‘onde’ (ubi) sejam locativos (localia verba), nem a alma contém alguma coisa num lugar circunscrito, nem o intelecto ou a racionalidade estão contidos.» Mon 23 (Schmitt: I, p.41, 26-29, p.42, 1-2).

 

Quais são as competências deste intelecto, que é o intelecto humano? Ajuizar e intuir até certo ponto.

Ajuizar é uma competência teórico-prática do intelecto: «Enfim, para a natureza racional, não é uma coisa ser racional e outra, poder discernir o justo do não justo, o verdadeiro do não verdadeiro, o bom do não bom, o mais bom do menos bom. Poder isto seria para ela totalmente inútil e mais que vazio, se ela não amar ou reprovar aquilo que discerne segundo o juízo da verdadeira discrição (secundum verae discretionis iudicium).» Mon 68 (Schmitt: I, p.78, 21-25); «Na verdade, ociosa e completamente inútil é a memória e a inteligência de alguma coisa, se não for, como a razão exige (prout ratio exigit), para amar ou reprovar a própria coisa.» Mon 49 (Schmitt: I, p.64, 21-23).

Intuir até certo ponto o melhor: «E como é possível pensar-se que a sabedoria suprema por vezes não se entenda, quando a mente racional pode não só lembrar-se de si mesma e da própria sabedoria suprema, como entendê-la e entender-se (illam et se intelligere)? Se a mente humana nenhuma memória ou inteligência pudesse ter dela ou de si, de modo nenhum discerniria entre si e as criaturas irracionais, e entre ela e toda a criatura, disputando só e silenciosamente consigo mesma, como faz a minha mente.» Mon 32 (Schmitt: I, p.51, 7-12); «Não pode de todo pensar-se que à criatura racional tenha sido dado naturalmente algo tão excelente e tão semelhante à sabedoria suprema, quanto isto de poder recordar e entender (intelligere) e amar aquilo que é o óptimo e o máximo de todas as coisas.» Mon 67 (Schmitt: I, p.78, 7-10).

Intuir até certo ponto, i.e., com limites: «Não tento, Senhor, penetrar na tua altitude, porque de modo nenhum comparo com ela o meu intelecto (intellectum meum); mas desejo entender até certo ponto (aliquatenus intelligere) a tua verdade, que crê e ama o meu coração.» Pros 1 (Schmitt: I, p.100, 15-18).

A descrição da experiência de pensamento que que conduziu à descoberta do seu argumento único: «Como muitas vezes e zelosamente orientava o pensamento para este propósito, por vezes parecia-me que já podia capturar (capi) aquilo que procurava, outras vezes escapava-se completamente ao alcance da mente: por fim, desesperando, quis cessar a indagação daquilo que era impossível ser descoberto (inveniri). Mas quando queria afastar de mim aquele pensamento, a fim de não impedir em vão a minha mente de se ocupar de outros assuntos em que eu pudesse progredir: então mais e mais começou a impor-se com certa importunidade, contra a minha vontade e defesa. Certo dia, quando eu me cansava a resistir veementemente à sua importunidade, no próprio conflito dos pensamentos (in ipso cogitationum conflictu), de tal modo se ofereceu (se obtulit) aquilo por que eu desesperava que abracei zelosamente o pensamento, que me empenhava em repelir.» Pros, Prooemium (Schmitt: I, p.52, 12-15).

O questionamento do achado: «Descobriste, alma minha, aquilo que procuravas? Procuravas Deus e descobriste que Ele é algo supremo relativamente a todas as coisas, melhor do que o qual nada pode ser pensado; e que isso é a própria vida, a luz, a sabedoria, a bondade, a eterna felicidade e a feliz eternidade; e que isso existe ubiquamente e sempre. Com efeito, se não descobriste o teu Deus: como é que Ele é isso que descobriste, e aquilo que com tão certa verdade e verdadeira certeza inteligiste? Se descobriste: o que é que não sentes, que descobriste? Por que não te sente, Senhor Deus, alma minha, se te descobre? — Porventura não descobre, quem descobre que é luz e verdade? Como é que inteligiu isso, a não ser vendo a luz e a verdade? Ou pôde de todo inteligir algo acerca de ti, a não ser pela »tua luz e a tua verdade« (Sl. 42, 3)? Se, portanto, viu a luz e a verdade, viu-te a ti. Se não te viu, não viu a luz nem a verdade. Ou a verdade e a luz é o que viu, e, no entanto, ainda não Te viu, porque te viu até certo ponto (aliquatenus), mas não te viu tal como és? — Senhor Deus meu, formador e reformador meu, diz à minha alma desejante, que outra coisa és, diferente daquilo que vê, para que veja puramente aquilo que deseja. Pretende ver mais, e nada vê para além disto que vê, a não ser trevas, que nenhumas há em ti, mas vê que mais não pode ver por causa das suas trevas.» Pros 14 (Schmitt: I, p.111, 8-25, p.112, 1). Por isso, o intelecto de Anselmo não viu como Deus é, isto é, não conseguiu contemplá-lo na unidade indivisível dos seus atributos: «Que és, Senhor, que és, [para] que o meu coração te entenda (intelliget)? Decerto és vida, és sabedoria, és verdade, és bondade, és felicidade, és eternidade, e és todo o verdadeiro bem. Muitos são estes bens, e o meu estreito intelecto (angustus intellectus meus) não pode vê-los a todos simultaneamente num único vislumbre (uno simul intuitu), para se alegrar com todos simultaneamente.» Pros 18 (Schmitt: I, p.114, 14-17). Aquilo a que Anselmo chama argumento único (solum argumentum) - «Aquele, na verdade, precisa de outro argumento para além disto que é dito ‘maior que tudo’ (omnibus maius); neste, porém, não é preciso outro para além disto que soa ‘maior do que o qual não possa ser pensado’ (quo maius cogitari non possit).» Resp [5.] (Schmitt: I, p.135, 18-20) - pode, então, dar lugar a um nome divino ainda mais apurado: «Logo Senhor, não só és maior do que o qual não pode ser pensado, mas és algo maior do que possa ser pensado (quiddam maius quam cogitari possit).» Pros 15 (Schmitt: I, p.112, 14-15).

 

 

3. A razão que há nas coisas

 

Conteúdos, que se impõem com força necessitante, e que recebem também a designação de “razão” (ratio). Por exemplo, o princípio da co-integração do uno e do múltiplo, segundo da relação por algo (per aliquid), que rege a relação de participação: «Certíssimo (Certissimum) e evidente (perspicuum) é para todos os que quiserem aperceber-se, que todas as coisas que são ditas algo, de modo que entre si sejam ditas mais ou menos ou igualmente, são ditas por algo, que não é diferente numa e noutra, mas é entendido (intelligitur) como o mesmo nas diversas coisas, quer nelas seja considerado igualmente quer desigualmente.» Mon 1 (Schmitt: I, p.14, 9-13). Por este princípio: «Na verdade, todas as coisas que são ditas justas em comparação umas com as outras, quer igualmente quer mais ou menos, não podem ser entendidas justas senão pela justiça, que não é diferente numas e noutras. Logo, como é certo que todas as coisas boas, se comparadas umas com as outras, são igual ou desigualmente boas, é necessário que todas sejam boas por algo, que é entendido (intelligitur) como o mesmo nos diversos bens, embora por vezes pareçam ser ditos bens, um por algo e outro por outro.» Mon 1 (Schmitt: I, p.14, 13-18). E nem mesmo a separação de dois grandes géneros de bens, os úteis e os nobres, infirma a certeza deste princípio: «Mas porque de modo nenhum pode ser dissolvida a razão já apreendida (Sed quoniam iam perspecta ratio nullo potest dissolvi pacto), é necessário que também todo o útil (utile) ou nobre (honestum), se são verdadeiramente bens, sejam bens por aquilo mesmo pelo qual é necessário que sejam todos os bens, o que quer que isso seja.» Mon 1 (Schmitt: I, p.14, 28, p.15, 1-3).

 

A relação por algo (per aliquid) é tão medular na filosofia anselmiana, que é impossível não considerá-la no tecido do real: «De facto, não pode ser pensado que algo exista não por algo. Por isso, tudo aquilo que existe, não existe senão por algo.» Mon 3 (Schmitt: I, p.15, 30, p.16, 1); «Se nada (nihil) não é algo (aliquid): uma vez que não pode ser entendido (intelligi non potest) que daquilo que absolutamente não existe, algo seja feito, então nada é feito do nada (ex nihilo), como todos dizem: de nada, nada.» Mon 8 (Schmitt: I, p.22, 22-25). Nos termos da universalíssima relação por algo, nenhuma coisa é por aquilo a que dá o ser (princípio de assimetria ou irreciprocidade da relação por algo), e pensar o contrário é um pensamento irracional: «Que muitas coisas existam reciprocamente umas pelas outras, nenhuma razão tolera (nulla patitur ratio), porque é um pensamento irracional (irrationabilis cogitatio) que alguma coisa exista por algo ao qual dá a existência.» Mon 3 (Schmitt: I, p.16, 10-12).

 

No argumento do Proslogion, a lógica intervém na forma por redução ao absurdo e na aplicação do princípio da não contradição, mas não são estes ingredientes lógicos que fundamentam a conclusão do argumento: «Portanto, tão verdadeiramente existe algo maior do que o qual não pode ser pensado, que nem sequer se possa pensar que não existe.» Pros 3 (Schmitt: I, p.103, 1-2). Esta conclusão não é dedutível senão com base em duas razões da ordem da existência: «Se, de facto, existe só no intelecto, pode ser pensado que exista na realidade, o que é maior.» Pros 2 (Schmitt: I, p.101, 16-17); «Na verdade, pode ser pensado que algo existe, que não possa ser pensado não existir, o que é maior do que aquilo que pode ser pensado não existir.» Pros 3 (Schmitt: I, p.102, 6-8). O argumento cairia, sem estes dois juízos de maior, que postulam o valor superior da existência, respectivamente, real e necessária. Na verdade, a existência não é incognoscível nem ininteligível. Todos sabemos discernir o que existe do que não existe; entre ter no intelecto aquilo em que pensamos e entender que isso mesmo existe: «Uma coisa, de facto, é uma realidade existir no intelecto, outra coisa é entender (intelligere) que uma realidade existe.» Pros 2 (Schmitt: I, p.101, 9-10). Todos nós: incluindo o insipiente do argumento — «Mas decerto o mesmo insipiente (insipiens), quando ouve isto mesmo que eu digo — ‘algo maior do que o qual nada pode ser pensado’ (aliquid quo maius nihil cogitari potest), entende (intelligit) aquilo que ouve; e aquilo que entende (quod intelligit) está no seu intelecto (in intellectu eius est), mesmo se não entender que isso existe.» Pros 2 (Schmitt: I, p.101, 7-9) — e o pintor que tem no intelecto a obra que pensa fazer e ainda não fez: «Na verdade, quando um pintor pré-concebe o que há-de fazer, tem decerto no intelecto, mas ainda não entende (intelligit) que existe o que ainda não fez. Quando já tiver pintado, tem no intelecto e entende que existe aquilo que já fez.» Pros 2 (Schmitt: I, p.101, 10-13).

 

A ordem da razão que há nas coisas é a raiz ou o fundamento da ordem da respectiva intelecção, pelo que nenhum bem derivado é inteligível antes do bem originário: «E nenhum bem pode ser entendido (intelligi) antes daquele bem sem o qual nada é bom. Este bem, porém, sem o qual nenhum é bom, é bastante evidente que é esta natureza suprema, de que se trata. Por isso, nenhuma coisa nem pelo intelecto a precedeu, pela qual esta existisse do nada (ex nihilo).» Mon 6 (Schmitt: I, p.20, 1-4).

E nem mesmo Deus pode tornar falso o verdadeiro: «Mas, como és omnipotente, se nem tudo podes? Ou se não podes ser corrompido nem mentir nem fazer o verdadeiro ser falso, como tornar não feito o que foi feito, e outras coisas similares: como podes todas as coisas?» Pros 7 (Schmitt: I, p.105, 9-11).

 

 

4. Uma teoria transversal da verdade

 

Várias questões filosóficas que sobre a verdade se colocam: o que é que pode ser verdadeiro? É possível alguma definição de verdade? Qual é a relação que liga o verdadeiro à verdade? Estas três questões são respondidas em De Veritate, mas, para compreendermos melhor a resposta à terceira questão, convém termos em conta um outro diálogo filosófico de Anselmo, De Grammatico. Aí Anselmo enfrenta a questão da paronímia: o que é que “gramático” significa, um homem ou a gramática? A solução anselmiana é: «D. Foi suficientemente provado que gramático não é apelativo (appellativum) de gramática mas de homem, nem é significativo (significativum) de homem mas de gramática.» De Grammatico (DG) [14] (Schmitt: I, p.159, 26-27); «M. […]. Quando se diz que gramático é qualidade: isso não se diz correctamente senão de acordo com o tratado de Aristóteles, CategoriasDG [16] (Schmitt: I, p.162, 12-14); «D. […]. Por isso, quer se pergunte acerca da palavra quer acerca da coisa: quando se pergunta que é gramático segundo o tratado de Aristóteles e segundo os seus seguidores, responde-se correctamente: qualidade; e, no entanto, segundo a apelação (secundum appellationem) é verdadeiramente substância.» DG [18] (Schmitt: I, p.164, 3-6). Em termos anselmianos, gramático não é um homem que possui a gramática, mas é a gramática que um homem acidentalmente possui; verdadeiro não é aquilo que possui a verdade, mas é a verdade que algo acidentalmente possui.

 

A teoria da significação, na resolução da questão da paronímia, adverte para uma separabilidade entre a verdade e o verdadeiro, que a teoria anselmiana da verdade não deixa de ter em conta. É mesmo essa separabilidade que justifica a distinção entre uma verdade acidental e uma verdade imutável, como é o caso da verdade das proposições:

«MESTRE. Decerto não se costuma dizer verdadeira [a proposição (enuntiatio)], quando significa que é aquilo que não é; possui, no entanto, verdade e rectitude porque faz aquilo que deve. Mas quando significa que é aquilo que é, faz duplamente aquilo que deve, porque significa aquilo que lhe foi dado significar e aquilo para cuja significação foi feita. Mas, segundo esta rectitude e verdade pela qual significa que é aquilo que é, diz-se usualmente (usu) recta e verdadeira a proposição; não, segundo aquela pela qual significa também aquilo que não é. De facto, mais deve por causa daquilo em vista do qual recebeu a significação do que por causa daquilo em vista do qual não a recebeu. De facto, não lhe foi dado significar que uma coisa é quando não é, ou que não é quando é, senão porque não lhe pôde ser dado apenas significar que é quando é, ou que não é quando não é. Uma, portanto, é a rectitude e a verdade da enunciação, porque significa aquilo para cuja significação foi feita (ad quod significandum facta est); a outra, porque significa aquilo que lhe foi dado significar (quod accepit significare). Esta é decerto imutável à própria frase, aquela é mutável. Esta, com efeito, [a proposição] sempre a tem, aquela nem sempre. Esta, de facto, é possuída naturalmente, aquela, acidentalmente e segundo o uso.» ANSELMO, A Verdade (De Veritate) [DV], c.2 (texto da ed. crítica de F. S. Schmitt, Stuttgart – Bad Cannstatt, 1968: I, p.179, ll.1-15).

Caso a proposição seja necessária e indubitável, as duas verdades, acidental e imutável, coincidem entre si: «No entanto, em algumas proposições, estas duas rectitudes ou verdades são inseparáveis, como quando dizemos: um homem é um animal, ou um homem não é uma pedra.» DV 2 (Schmitt: I, p.179, 19-21).

Mas, para além das proposições, que mais pode ser verdadeiro?

O pensamento humano: «MESTRE. O pensamento (cogitatio), também dizemos que é verdadeiro, quando é aquilo que pela razão ou de algum modo julgamos ser, e falso, quando não é. – DISCÍPULO. Assim estabelece o uso. – M. O que te parece, então, [ser] a verdade no pensamento? – D. Segundo a razão que vimos acerca da proposição (propositio), nada mais recto se diz [ser] a verdade do pensamento senão a sua rectitude. De facto, para isto nos foi dado poder pensar que algo é ou não é, a saber, para pensarmos que é aquilo que é, e que não é aquilo que não é. Por isso, quem julga que é aquilo que é, julga o que deve, e, portanto, é recto o pensamento. Se, portanto, não é verdadeiro e recto o pensamento senão porque julgamos que é aquilo que é, ou que não é aquilo que não é: a sua verdade não é outra coisa senão a rectitude. M. Consideras rectamente.» IDEM, DV 3 (Schmitt: I, p.180, ll.7‑18).

A acção natural e intencional: «D. Se o fogo, por possuir o ser (ab eo a quo habet esse) recebe o aquecer (accepit calefacere): quando aquece, faz aquilo que deve. Por isso, não vejo que inconveniência haja em o fogo fazer a verdade e a rectitude, uma vez que faz aquilo que deve. – M. A mim também não me parece de outro modo. Daí pode-se perceber que a rectitude ou verdade da acção se divide em necessária e não necessária. Com efeito, por necessidade faz o fogo a rectitude e a verdade, quando aquece; e não por necessidade faz o homem a rectitude e a verdade, quando faz bem.» IDEM, DV 5 (Schmitt: I, p.182, ll.3‑10).

A vontade e as suas intenções são susceptíveis de verdade acidental ou separável: Cf. DV 4-5 (Schmitt: I, pp.180-183). Trata-se da verdade que coincide com a justiça: «M. Compreendes bem que são necessárias à vontade para a justiça estas duas coisas: querer aquilo que deve e também porque deve. Mas diz se são suficientes. – D. Por que não? – M. Quando alguém quer aquilo que deve porque é coagido, e é coagido porque deve querer isto: não será que de algum modo quer aquilo que deve porque deve? D. Não posso negar, mas este quer de um modo, e o justo de outro modo. – M. Distingue os modos. – D. Na verdade, o justo, quando quer aquilo que deve, guarda a rectitude da vontade, não por outra coisa, enquanto deve ser dito justo, senão pela própria rectitude. Aquele, porém, que a não ser coagido ou motivado por recompensa exterior quer aquilo que deve: se deve dizer-se que guarda a rectitude, não a guarda por ela própria, mas por causa de outra coisa. – M. É, portanto, justa a vontade que guarda a sua rectitude pela própria rectitude. – D. Ou esta vontade é justa ou nenhuma vontade o é. – M. A justiça, portanto, é a rectitude da vontade guardada por si mesma (Iustitia igitur est rectitudo voluntatis propter ser servata).» IDEM, DV 12 (Schmitt: I, p.194, ll.11‑26).

Os sentidos do homem: Cf. DV 6 (Schmitt: I, pp.183-185). Ver acima: 2. Uma razão cognitiva da mente: intellectus.

Pode algo ser verdadeiro para além do homem ou só o homem tem ligação à verdade?

A acção dos agentes naturais, como o fogo, que realiza as suas possibilidades e se adequa à sua finalidade; desse modo, faz o que deve ou cumpre a sua rectitude.

A própria essência e existência das coisas: «M. Há, com efeito, verdade na essência de todas as coisas que existem (Est igitur veritas in omnium quae sunt essentia), porque elas são aquilo que são na verdade suprema (quia hoc sunt quod in summa veritate sunt).» DV 7 (Schmitt: I, p.185, 18-19); «M. [...]. Também na existência das coisas há, de modo similar, verdadeira ou falsa significação, porque, pelo facto de existir (quoniam eo ipso quia est), diz que deve existir (dicit se debere esse).» DV 9 (Schmitt: I, p.189, 24-25).

É possível alguma definição de verdade?

«M. Diz-me, portanto, se te parece que há alguma outra rectitude para além destas que considerámos [na enunciação, no pensamento, na acção, etc.]. – D. Nenhuma outra para além destas a não ser aquela que está nas coisas corpóreas, que é muito diferente destas, como a rectitude da vara. – M. Em que é que aquela te parece diferir destas? – D. É que aquela pode ser conhecida pela visão corpórea, enquanto estas são apreendidas pela contemplação da razão. – M. Mas aquela rectitude dos corpos não é entendida e conhecida pela razão para além do sujeito? Ou, caso se duvide se é recta a linha de um corpo ausente, e se possa mostrar que em nenhuma parte se flecte: acaso não se colhe (colligitur) pela razão que é necessário que ela seja recta? – D. Também. Mas a mesma [rectitude] que é assim entendida pela razão, é sentida pela visão no sujeito. Aquelas, com efeito, não podem ser percebidas senão pela mente. – M. Podemos por isso, se não me engano, definir que a verdade é a rectitude só perceptível pela mente. – D. De modo nenhum vejo que se engane quem diz isso. De facto, nem mais nem menos do que é necessário contém esta definição, porque o nome “rectitude” separa-a de toda a realidade que não se chama “rectitude”; dizer-se que só pela mente é percebida separa-a da rectitude visível.» IDEM, DV 11 (Schmitt: I, p.191, ll.6‑24).

 

 

Aula nº6 (5ª feira: 8/02/24)

Recapitulação da teoria anselmiana da verdade.

Leitura partilhada e comentada de textos.

 

 

2ª feira: 12/02/24 — Carnaval

 

 

Aula nº7 (5ª feira: 15/02/24)

Uma linguagem da mente: cogitatio.

 

 

5. Uma linguagem da mente: cogitatio

 

Que é pensar (cogitare)? Na continuidade de Santo Agostinho, Santo Anselmo utiliza o verbo cogitare para o pensar reflexo ou cônscio do conhecer.

Imaginar: «Qualquer coisa que deseje verdadeiramente pensar (cogitare), seja pela imaginação do corpo seja pela razão, a mente procura exprimir, quanto for capaz, uma semelhança dela no seu próprio pensamento (in ipsa sua cogitatione). Quanto mais verdadeiramente o fizer, tanto mais verdadeiramente pensa a própria coisa. E isto decerto percebe-se mais claramente, quando pensa alguma coisa diferente dela própria, e, sobretudo, quando pensa algum corpo. De facto, quando penso um homem ausente que conheço, a ponta do meu pensamento (acies cogitationis meae) forma-se à imagem dele, a qual trouxe para a memória através visão dos olhos.» Mon 33 (Schmitt: I, p.52, 15-23).

Consciência de si: «Na verdade, por nenhuma razão se pode negar que, quando a mente racional se entende (intelligit) a si mesma pensando (cogitanto), nasce uma imagem dela própria no seu pensamento (in sua cogitatione); ou melhor, o próprio pensamento é a sua imagem, formada à sua semelhança, como que pela sua impressão.» Mon 33 (Schmitt: I, p.52, 12-15). O tema da consciência de si ressurge nos textos do diálogo entre Gaunilo e Anselmo, a propósito do argumento do Proslogion

Gaunilo duvida de poder pensar de si próprio que não existe, quando sabe (scire) com toda a certeza que existe: «Quando se diz que esta realidade suprema não pode ser pensada não existir (non esse nequeat cogitari), talvez fosse melhor dizer que não pode ser entendido (intelligi) não existir ou também poder não existir. Com efeito, segundo é próprio deste verbo, as coisas falsas não podem ser entendidas (intelligi), as quais podem de algum modo ser pensadas (cogitari), como pensou (cogitavit) o insipiente que Deus não existe. E também sei de modo certíssimo (certissime scio) que eu existo, mas não menos sei que posso não existir. Porém, daquele supremo que existe, ou seja, Deus, entendo (intelligo) sem dúvida que existe e que não pode não existir. Pensar (cogitare), todavia, que eu não existo enquanto sei de modo certíssimo que existo, não sei se posso. Mas se posso, por que não também qualquer outra coisa que eu sei com a mesma certeza? Se não posso, não será já isto próprio de Deus.» Gaunilo, Quid ad haec respondeat quidam pro insipiente [7.] (Schmitt: I, p.129, 10-19)

Anselmo admira-se com a dúvida de Gaunilo: «Só se pode pensar (cogitari) que não existem, todas as coisas que têm início ou fim ou conjunção de partes e, como já disse, o que quer que seja que não existe todo em algum lugar ou tempo. Só não se pode pensar (cogitari) que não existe, aquilo no qual não há início nem fim nem conjunção de partes e que um pensamento não encontra senão sempre e ubiquamente. — Fica pois sabendo que podes pensar (cogitare) que tu não existes, enquanto sabes de modo certíssimo que existes, e admiro‑me de que tenhas dito que não saibas.» Resp [4.] (Schmitt: I, p.134, 2-8).

A cogitatio, é o nível mais inclusivo e panorâmico de consciência na mente humana, abrangendo as imagens do mundo, a impressão de si, o inteligível e o ininteligível, o verdadeiro e o falso: «Na verdade, se nenhuma das coisas que existem pode ser entendida (intelligi) não existir, todas as coisas podem ser pensadas (cogitari) não existir, exceptuando aquilo que existe sumamente (id quod summe est).» Resp [4.] (Schmitt: I, p.133, 30, p.134, 1-2). O pensamento só não pode contradizer-se, sinal de que não é arbitrário, mas racional: «De facto, pensamos (cogitamus) que não existem muitas coisas que sabemos (scimus) que existem, e que existem muitas que sabemos não existirem; não estimando, mas fingindo que assim é como pensamos (ut cogitamus). E, decerto, podemos pensar (cogitare) que algo não existe, enquanto sabemos (scimus) que existe, porque simultaneamente podemos aquilo e sabemos isto. E não podemos pensar (cogitare) que não existe, enquanto sabemos (scimus) que existe, porque não podemos pensar (cogitare) simultaneamente que existe e que não existe.» Resp [4.] (Schmitt: I, p.134, 8-13).

Também na continuidade de Agostinho, Anselmo descreve o pensamento (cogitatio) como linguagem da mente: «É conhecido (cognoscitur), de acordo com um uso frequente, que uma coisa pode ser dita de três maneiras: ou a coisa é dita por signos sensíveis, isto é, usando sensivelmente signos que podem ser sentidos pelos sentidos corpóreos; ou pensando não sensivelmente dentro de nós (intra nos insensibiliter cogitando) os mesmos signos, que fora são sensíveis; ou não usando estes signos quer sensivelmente quer não sensivelmente, mas dizendo interiormente na nossa mente (intus in nostra mente dicendo) as próprias coisas, seja pela imaginação dos corpos (corporum imaginatione) seja pelo intelecto da razão (rationis intellectu), segundo a diversidade das próprias coisas.» Mon 10 (Schmitt: I, p.24, 29-31, p.25, 1-4). O segundo nível é aquele que permite explicar a possibilidade de pensarmos em palavras sem entendimento do seu significado, como é o caso do insipiente: «De um modo é pensada uma coisa quando é pensada (cogitatur) a palavra que a significa, de outro modo, quando é entendido (intelligitur) isso mesmo que a coisa é. Daquele modo pode ser pensado (potest cogitari) que Deus não existe, deste, verdadeiramente, não.» Pros 4 (Schmitt: I, p.103, 18-20). O terceiro nível é aquele que implica o entendimento do significado das palavras: «Estas três variedades da fala (tres loquendi varietates) têm cada uma um verbo do seu género (sui generis) [um tipo de palavra]. Sed os verbos (verba) daquela fala que coloquei em terceiro e último lugar, quando são acerca de coisas não ignoradas, são naturais e os mesmos em todos os povos (naturalia sunt et apud omnes gentes sunt eadem).» Mon 10 (Schmitt: I, p.25, 10-11); «E porque todos os outros verbos (verba) foram inventados por causa destes: onde estes existem, nenhum outro verbo (verbum) é necessário para conhecer uma coisa; e onde estes não podem podem existir, nenhum outro é útil para mostrar uma coisa. Podem também não absurdamente ser ditos tanto mais verdadeiros quanto mais semelhantes os verbos (verba) forem às coisas e quanto mais expressamente as assinalarem (signant). Exceptuando aquelas coisas que usamos como os seus próprios nomes para se significarem a si mesmas, como são algumas palavras, como a vogal ‘a’; digo, exceptuando estas, nenhum outro verbo (verbum) parece ser tão semelhante à coisa de que é verbo (verbum), ou a exprime tanto (sic eam exprimit), como aquela semelhança (similitudo), que é expressa (exprimitur) na ponta da mente (in acie mentis) de quem pensa a própria coisa (rem ipsam cogitantis). Isso, justamente, deve ser dito o verbo maximamente próprio e principal da coisa (maxime proprium et principale rei verbum).» Mon 10 (Schmitt: I, p.25, 12-22). A linguagem mental é um olhar do pensamento sobre as coisas:«Não é outra coisa, para o espírito supremo (summo spiritui) dizer deste modo senão intuir como que pensando (quasi cogitando intueri), assim como a fala da nossa mente (nostrae mentis locutio) não é senão o olhar de quem pensa (cogitantis inspectio).» Mon 63 (Schmitt: I, p.73, 10-12).

 

Podemos pensar para além do que podemos conhecer? Só a partir do que conhecemos: «De facto, embora um homem possa ficcionar (confingere), pensando ou pintando (cogitando vive pingendo), um animal como em lado nenhum existe: de modo nenhum, porém, consegue fazer isto senão compondo nele partes, que trouxe à memória a partir de outras coisas conhecidas.» Mon 11 (Schmitt: I, p.26, 13-16); «Através da imagem do corpo, como quando é imaginado (imaginatur) [um homem], com a sua figura sensível; através da razão (per rationem), como quando pensa (cogitat) a sua essência universal, que é ‘animal racional mortal’.» Mon 10 (Schmitt: I, p.25, 7-9). E podemos pensar aquilo que não tem corpo nem essência universal, como o inefável? Por enigmas: «Por vezes dizemos muitas coisas que não exprimimos propriamente tal como são, mas significamos através de outra coisa (per aliud) aquilo que ou não queremos ou não podemos expor (depromere) propriamente, como quando falamos por enigmas.» Mon 65 (Schmitt: I, p.76, 11-14). Em espelho: «E por vezes vemos algo não propriamente, do modo como a própria coisa é, mas por alguma semelhança ou imagem (per aliquam similitudinem aut imaginem), como quando consideramos o rosto de alguém num espelho. Assim dizemos e não dizemos a mesma coisa, vemos e não vemos. Dizemos e vemos através de outra coisa (per aliud), não dizemos e não vemos pela sua propriedade.» Mon 65 (Schmitt: I, p.76, 14-18).

 

 

 

Aula nº8 (2ª feira: 19/02/24)

2. «Algo maior do que o qual nada possa ser pensado»

2.1. Summum bonum: Monologion. A origem do nome divino de Proslogion 2-3.

Leitura partilhada e comentada do texto de Monologion 1-2.

 

 

SANTO ANSELMO

Monologion (1076)

(Texto da ed. crítica de F.S. Schmitt: I, pp.13‑15. Tradução nossa)

 

«Capítulo I

Que é algo óptimo e máximo e supremo relativamente a todas as coisas que são

 

Se alguém ignora, ou por não ter ouvido ou por não ter crido, a natureza una, suprema relativamente a todas as coisas que são, a única que é auto‑suficiente na sua eterna beatitude, que dá e que faz, pela sua omnipotente bondade, com que todas as outras coisas sejam algo e sejam de algum modo bem, e muitos outros dados que cremos necessariamente acerca de Deus ou da sua criatura, considero que de tudo isso, em grande parte, mesmo com pouco engenho, pode alguém persuadir‑se a si mesmo ao menos só pela razão. O que, podendo fazer-se de muitos modos, proponho um, que estimo ser facilíssimo. De facto, uma vez que todos desejam fruir apenas daquelas coisas que consideram boas, é fácil converter por vezes o olhar da mente para investigar aquilo donde são boas aquelas coisas que não deseja senão porque julga serem boas, de modo que, conduzindo a razão, progrida racionalmente na direcção daquilo que irracionalmente ignora. Se, porém, uma autoridade maior não mostrar aquilo que eu disser, quero que seja aceite do seguinte modo: embora pelas razões que me parecem quase com necessidade se conclua, nem por isso, todavia, com toda a necessidade, mas apenas se diga que assim pode por enquanto parecer.

Fácil é, portanto, que alguém diga assim consigo mesmo silenciosamente: como tão inumeráveis bens são, cuja grande diversidade experimentamos pelos sentidos corpóreos e discernimos pela razão da mente, não é de crer que é algo uno, pelo qual sejam bons todos os bens, ou são bens diferentes um por algo outro por outro? Certíssimo e evidente é, para todos os que querem reparar, que todas as coisas que são ditas algo, de modo que são ditas mais ou menos ou igualmente entre si, são ditas por algo, que não é diferente, mas é entendido como o mesmo em diversas coisas, quer nelas seja considerado igualmente quer desigualmente. Na verdade, todas as coisas que são ditas justas, quer paritariamente quer mais quer menos umas relativamente às outras, não podem ser entendidas como justas senão pela justiça, que não é uma numa coisa e outra noutra coisa diversa. Portanto, uma vez que é certo que todas as coisas boas, se comparadas umas com as outras, são boas igual ou desigualmente, é necessário que todas sejam boas por algo, que é entendido como o mesmo em diversos bens, embora por vezes pareçam dizer‑se bens diferentes um por algo outro por outro.

De facto, por uma razão parece dizer‑se que um cavalo é bom, porque é forte, e, por outra, que um cavalo é bom, porque é veloz. Embora pareça que se diz bom pela fortaleza e bom pela velocidade, não parece que a fortaleza e a velocidade sejam o mesmo. Mas, se um cavalo é bom, porque é forte ou veloz, como é que um ladrão forte e veloz é mau? Antes, tal como um ladrão forte e veloz é mau porque é nocivo, assim também um cavalo forte e veloz é bom porque é útil. E, decerto, nada se costuma considerar bom senão por causa de alguma utilidade, como se diz que é boa a saúde e aquilo que favorece a saúde, ou por causa de alguma qualidade nobre, como se estima que é boa a beleza e aquilo que ajuda à beleza. Mas, porque a razão já percebida de modo nenhum pode ser dissolvida, é necessário que todas as coisas úteis ou nobres, se são verdadeiramente boas, sejam boas por isso mesmo, pelo qual é necessário serem boas, todas sem excepção, o que quer que isso seja.

Quem, no entanto, duvidará que isso mesmo, pelo qual todas são boas, é um grande bem? Este é bom por si mesmo, porque todo o bem é por ele. Segue‑se, portanto, que todos os outros bens são por algo diferente daquilo que eles próprios são, e só ele é por si mesmo. E nenhum bem, que é por outra coisa, é igual ou maior do que aquele bem, que é o único que é bom por si. Aquele, de facto, é supremo, o qual sobreleva de tal modo os outros que não tem par nem superior. Mas aquilo que é sumamente bom é também sumamente grande. É, portanto, algo uno, sumamente bom e sumamente grande, isto é, supremo relativamente a todas as coisas que são.

 

Capítulo II

Da mesma coisa

 

Do mesmo modo que se descobriu que algo é sumamente bom, porque todas as coisas boas são boas por algo uno, que é bom por si mesmo, assim também necessariamente se conclui que algo é sumamente grande, porque todas as coisas grandes são grandes por algo uno, que é grande por si mesmo. Digo grande, não quanto ao espaço, como é um corpo, mas tal que, quanto maior tanto melhor é, ou mais digno, como é a sabedoria. E, porque não pode ser sumamente grande senão aquilo que é sumamente bom, é necessário que seja algo máximo e óptimo, isto é, supremo relativamente a todas as coisas que são.»

 

 

 

Aula nº9 (5ª feira: 22/02/24)

2. «Algo maior do que o qual nada possa ser pensado»

Leitura partilhada e comentada do texto de Proslogion 2-3.

 

 

SANTO ANSELMO

Proslogion (1077-1078)

(Texto da ed. crítica de F.S. Schmitt: I, pp.101‑103. Tradução nossa)

 

Capítulo II

Que Deus é verdadeiramente

 

Portanto, Senhor, tu que dás a inteligência da fé (intellectum fidei), dá‑me, na medida do que consideras conveniente, que eu entenda que és como cremos e que és aquilo que cremos. E decerto nós cremos que tu és algo maior do que o qual nada possa ser pensado (aliquid quo nihil maius cogitari possit). Ou então uma tal natureza não é, porque “disse o insipiente no seu coração: Deus não é” (Sl. 13, 1; 52, 1). Mas certamente este mesmo insipiente, quando ouve isto mesmo que eu digo: algo maior do que o qual nada pode ser pensado (aliquid quo maius nihil cogitari potest), entende o que ouve; e aquilo que entende é no seu intelecto, mesmo se não entender que aquilo é. Uma coisa, de facto, é algo ser no intelecto, outra coisa é entender que algo é. Na verdade, quando um pintor concebe aquilo que há‑de fazer, tem decerto no intelecto, mas ainda não entende que é aquilo que ainda não fez. Quando já tiver pintado, tem no intelecto e entende que é, aquilo que já fez. Portanto, também o insipiente está convencido de que algo maior do que o qual nada pode ser pensado (aliquid quo nihil maius cogitari potest) é no intelecto, porque entende isto quando ouve, e o que quer que seja entendido é no intelecto. E decerto aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius cogitari nequit) não pode ser só no intelecto. Se, de facto, é só no intelecto, pode pensar‑se que é também na realidade, o que é maior (Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re, quod maius est). Se, portanto, aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius cogitari non potest) é só no intelecto, aquilo mesmo maior do que o qual não pode ser pensado (id ipsum quo maius cogitari non potest) é aquilo maior do que o qual pode ser pensado. Mas certamente isto não pode ser. Existe (existit), portanto, sem dúvida, no intelecto e na realidade, algo maior do que o qual não pode ser pensado (aliquid quo maius cogitari non valet).

 

Capítulo III

Que não se pode pensar que não é

 

O que é tão verdadeiramente que nem sequer se pode pensar que não é. Na verdade, pode pensar‑se que algo é, que não possa pensar‑se que não é; o que é maior do que aquilo que pode pensar‑se que não é (Nam potest cogitari esse aliquid, quod non possit cogitari non esse; quod maius est quam quod non esse cogitari potest). Por isso, se aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius nequit cogitari) pode pensar‑se que não é, aquilo mesmo maior do que o qual não pode ser pensado (id ipsum quo maius cogitari nequit) não é aquilo maior do que o qual não pode ser pensado (id quo maius cogitari nequit); o que não pode convir. Assim, portanto, algo maior do que o qual não pode ser pensado (aliquid quo maius cogitari non potest) é tão verdadeiramente que nem sequer se possa pensar que não é.

 

 

 

Aula nº10 (2ª feira: 26/02/24)

2. «Algo maior do que o qual nada possa ser pensado»

2.2. O argumento único: Proslogion. Leitura partilhada e comentada do texto de Proslogion 3. «Algo maior do que o qual nada possa ser pensado»: uma dupla negação; vale mais do que supremo, como argumento; um conceito vazio? Um conceito a priori?

 

 

«Algo maior do que o qual nada possa ser pensado»

 

Uma dupla negação

Se atentarmos bem na perífrase «algo maior do que o qual nada possa ser pensado», podemos verificar que ela não nomeia a essência divina senão através de uma dupla negação: por um lado, ela não afirma, por omissão, a relação de supremacia de Deus na ordem do pensável; por outro lado, ela nega expressamente toda a relação a um termo superior na mesma ordem. Há, pois, uma negação implícita e outra explícita.

A negação implícita é uma omissão intencional, e, apesar disso, uma suposição necessária, porquanto não se pode dispensar a ordem subjacente do pensável, a fim de que Deus seja ainda pensável no limite dessa ordem. O nome anselmiano de Deus não pode, por isso, abster‑se completamente de ser um nome de supremo, ainda que negativo.

A negação explícita é, por sua vez, um aviso: ela adverte‑nos para não identificarmos Deus com algum termo menor, ou superável, na ordem do pensável. Este aviso é, a nosso ver, o principal alcance do nome anselmiano de Deus. Nós encaramo‑lo, por isso, como uma regra para pensar Deus, segundo a qual Deus não deve ser identificado com algo menor do que o insuperável na ordem do pensável.

A perífrase «algo maior do que o qual nada possa ser pensado» — omissa a relatividade de supremo e explicitamente negada a relatividade de superável — é um nome de absoluto.

 

Vale mais do que supremo, como argumento

«Antes de mais, tu repetes frequentemente que eu digo que o que é maior do que todas as coisas existe no intelecto, se existe no intelecto, existe na realidade – caso contrário, o maior do que todas as coisas não seria o maior do que todas as coisas –: nunca em todos os meus ditos se encontra tal prova. De facto, dizer ‘o maior de todas as coisas’ não vale o mesmo que ‘maior do que o qual não pode ser pensado’, para provar que existe na realidade aquilo que é pensado. Se alguém disser que ‘maior do que o qual não possa ser pensado’ não existe na realidade ou pode não existir ou pode ser pensado que não exista, essa pessoa pode ser refutada facilmente. Na verdade, o que não existe pode não existir; e aquilo que pode não existir, pode ser pensado não existir. Tudo aquilo, porém, que pode ser pensado não existir: se existe, não é ‘maior do que o qual não possa ser pensado’. Se não existe: mesmo se existisse, não seria ‘maior do que o qual não possa existir’. Mas não se pode dizer: ‘maior do que o qual não possa ser pensado’, se existe, não é ‘maior do que o qual não possa ser pensado’; ou se existisse, não seria ‘maior do que o qual não possa ser pensado’. É, portanto, evidente que nem não existe nem pode não existir ou ser pensado não existir. Caso contrário, se existe, não é aquilo que é dito; e, se existisse, não existiria.

Parece, no entanto, que isto não pode ser provado tão facilmente acerca daquilo que é dito o maior do que todas as coisas. De facto, não é tão evidente que o que pode ser pensado não existir não é o maior do que todas as coisas que existem, como é evidente que não é ‘maior do que o qual não possa ser pensado’; nem é tão indubitável que, se existe algo ‘maior do que todas as coisas’, não é outro senão ‘maior do que o qual não possa ser pensado’, ou, se existisse, não seria, de modo semelhante, outro, tal como é certo acerca daquilo que se diz ‘maior do que o qual não pode ser pensado’. E então, se alguém disser que existe algo maior do que todas as coisas que existem, e que isso mesmo pode, no entanto, ser pensado não existir, e que algo maior do que isso, mesmo se não existir, pode, todavia, ser pensado? Será que aqui pode ser inferido tão claramente – logo, não é o maior do que todas as coisas que existem – assim como ali se diria com toda a clareza – logo, não é ‘maior do que o qual não pode ser pensado’? Na verdade, aquele precisa de outro argumento para além disto que é dito, ‘o maior do que todas as coisas’; neste, porém, não é preciso outro para além disto que soa, ‘maior do que o qual não possa ser pensado’. Portanto, se, de modo similar, não pode ser provado acerca daquilo que se diz ‘o maior do que todas as coisas’, o que de si mesmo e por si mesmo prova ‘maior do que o qual não pode ser pensado’: injustamente me repreendeste por ter dito aquilo que não disse, uma vez que tanto difere daquilo que disse.» Resp. [5.] (Schmitt: I, p. 134, 24-31; p.135, 1-23).

 

Um conceito vazio?

«Como não me repreende, nestes ditos, aquele ‘insipiente’, contra quem falei no meu opúsculo, mas alguém não insipiente e católico pelo insipiente, pode bastar-me responder ao católico.

Tu dizes, quem quer que sejas que dizes que o insipiente pode dizer isto: que não existe no intelecto algo maior do que o qual não possa ser pensado, de modo diferente daquilo que não pode ser pensado, pelo menos segundo a verdade de alguma coisa; e que não mais se segue disto que digo ‘maior do que o qual não possa ser pensado’, que por existir no intelecto existe também na realidade, do que existir de modo certíssimo a ilha perdida, quando é descrita por palavras, por o ouvinte não duvidar de que ela existe no seu intelecto. Pois eu digo: se ‘maior do que o qual não pode ser pensado’ não é entendido nem pensado, nem existe no intelecto ou no pensamento, então, certamente, ou Deus não é maior do que o qual não possa ser pensado, ou não é entendido nem pensado, e não existe no intelecto ou no pensamento. Quão falso isto seja, uso a tua fé e a tua consciência como um firmíssimo argumento. Portanto, ‘maior do que o qual não pode ser pensado’ é verdadeiramente entendido e pensado, e existe no intelecto e no pensamento. Por conseguinte, ou não são verdadeiras as [razões] pelas quais te esforças por provar o contrário, ou delas não se segue o que tu julgas concluir de modo consequente.

Tu porém pensas que pelo facto de ser entendido algo maior do que o qual não pode ser pensado, não se segue que isso exista no intelecto nem que, se existir no intelecto, exista também na realidade. Eu digo com certeza: se pode ser pensado que exista, é necessário que isso exista. Na verdade, ‘maior do que o qual não pode ser pensado’ não pode ser pensado que exista a não ser sem início. O que quer que pode ser pensado existir e não existe, pode ser pensado existir por um início. Portanto, ‘maior do que o qual não pode ser pensado’ não pode ser pensado existir e não existe. Se, portanto, pode ser pensado existir, existe por necessidade.

Mais. Se, em qualquer caso, pode ser pensado, é necessário que isso exista. De facto, ninguém que nega ou duvida de que exista algo maior do que o qual não possa ser pensado, nega ou duvida de que, se existisse, nem actual nem intelectualmente poderia não existir. Caso contrário, não seria maior do que o qual não possa ser pensado. Mas o que quer que pode ser pensado e não existe: se existisse, poderia não existir quer actual quer intelectualmente. Por isso, se pode ser pensado, não pode não existir ‘maior do que o qual não pode ser pensado’. Mas suponhamos que não existe, se pode ser pensado. Ora, o que quer que pode ser pensado e não existe: se existisse, não seria ‘maior do que o qual não possa ser pensado’. Se, portanto, existisse ‘maior do que o qual não possa ser pensado’, não seria ‘maior do que o qual não possa ser pensado’; o que é demasiado absurdo. Por isso, é falso que não exista algo maior do que o qual não possa ser pensado, se pode ser pensado. Muito mais, se pode ser inteligido e existir no intelecto.

Direi algo mais. Sem dúvida, o que quer que algures ou alguma vez não existe: mesmo se existe algures ou alguma vez, pode ser pensado que nunca e nenhures exista, assim como não existe algures ou alguma vez. Na verdade, aquilo que ontem não existiu e hoje existe: assim como se entende que ontem não existiu, assim também pode subentender-se que nunca exista. E aquilo que não existe aqui e existe ali: assim como não existe aqui, assim também pode ser pensado que nenhures exista. De modo semelhante, algo do qual umas partes não existem onde ou quando existem as outras partes, todas as suas partes e, por isso, o próprio todo podem ser pensados nunca ou nenhures existirem. E se se disser que o tempo existe sempre e o mundo ubiquamente, nem aquele, todavia, existe todo sempre nem este todo ubiquamente. E, assim como umas partes do tempo não existem quando existem as outras, assim também podem ser pensadas nunca existirem. E algumas partes do mundo, assim como não existem onde existem as outras, assim também podem ser subentendidas nenhures existirem. Mas aquilo que é composto de partes pode ser dissolvido pelo pensamento e não existir. Por isso, o que quer que não exista todo algures ou alguma vez: mesmo se existir, pode ser pensado não existir. Ora ‘maior do que o qual não pode ser pensado’: se existe, não pode ser pensado não existir. Caso contrário, se existe, não é maior do que o qual não possa ser pensado; o que não é consistente. De modo nenhum, portanto, não existe todo algures ou alguma vez, mas existe todo sempre e ubiquamente Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli [1.] (Schmitt: I, p.130, 3-21; p.131, 1-33; p.132, 1-2).

 

Um conceito a priori?

«Também quanto ao que dizes, que aquilo maior do que o qual não pode ser pensado, não o podes pensar, quando ouvido, nem ter no intelecto, segundo alguma coisa genérica ou especificamente conhecida, porque nem conheces essa mesma realidade nem podes conjecturar acerca dela a partir de outra semelhante: é evidente que o caso é de outro modo. Na verdade, uma vez que todo o bem menor é semelhante a um bem maior, enquanto é um bem, é evidente para qualquer mente racional que, ascendendo dos bens menores aos maiores, a partir daqueles relativamente aos quais algo maior pode ser pensado, muito podemos conjecturar acerca daquilo maior do que o qual nada pode ser pensado. Quem, por exemplo, não pode pensar isto, mesmo se não crê que existe na realidade aquilo que pensa, a saber, que: se há um bem que tem início e fim, muito melhor é um bem que embora comece não acaba; e assim como este é melhor do que aquele, assim também é melhor do que este, aquele que não tem fim nem início, mesmo se transitar sempre do pretérito, através do presente, para o futuro; e quer exista quer não exista na realidade, algo semelhante, muito melhor do que isto é aquilo que de modo nenhum necessita ou é coagido à mudança ou ao movimento? Ou isto não pode ser pensado, ou pode ser pensado algo maior do que isto? Ou não é isto conjecturar acerca daquilo maior do que o qual não pode ser pensado, a partir destes relativamente aos quais maior pode ser pensado? Há, por isso, donde possa conjecturar‑se acerca daquilo maior do que o qual não possa ser pensado.» Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli [8.] (Schmitt: I, 137, 11‑28).

 

 

 

Aula nº11 (5ª feira: 29/02/24)

Discussão dos temas abordados.

Apresentação de projectos de trabalho: Joana Mendonça, Maria Helena.

 

 

Aula nº12 (2ª feira: 4/03/24)

2. «Algo maior do que o qual nada possa ser pensado»

2.2. O argumento único: Proslogion. A questão do argumento anselmiano: 1) se o argumento anselmiano é uma inferência directa da existência como perfeição da essência divina; 2) se o argumento anselmiano é a priori ou a posteriori; 3) se o argumento anselmiano impede a construção de outro argumento estruturalmente idêntico a favor da existência real e necessária de algum mal insuperavelmente pensável.

 

 

A questão do argumento anselmiano

“A Questão do Argumento Anselmiano.” Philosophica 37. Lição em Filosofia Medieval, apresentada a 18 de Janeiro de 2011, durante as provas de habilitação ao título de Agregada pela Universidade de Lisboa (Lisboa, 2011): 241-270. Ler aqui

Alessandro Ghisalberti. “Riflessioni Critiche sulla Lezione di Maria Leonor L. O. Xavier, ‘A Questão do Argumento Anselmiano’.” Philosophica 37. Arguição, por Alessandro Ghisalberti, da Lição em Filosofia Medieval, realizada a 18 de Janeiro de 2011, durante as provas de habilitação ao título de Agregada pela Universidade de Lisboa, de Maria Leonor L. O. Xavier (Lisboa, 2011): 271-281. Ler aqui

 

 

Aula nº13 (5ª feira: 7/03/24)

Discussão dos temas abordados.

Apresentação de projectos de trabalho: Daniela Mugeiro, Ana Morgado, Lucas Sabino.

 

 

Aula nº14 (2ª feira: 11/03/24)

3. A questão da salvação da humanidade

3.1. Uma obra mal amada: Cur Deus Homo. Cur homo? A razão maior.

 

 

A questão: cur homo?

 

Um momento relevante para o sentido do humanismo no pensamento medieval foi a controvérsia do séc. XII em torno da questão: cur homo? (Porquê o homem?). Nesta questão, confrontavam‑se duas interpretações da Criação: uma de pendor historicista, que condicionava a criação do homem pela queda do anjo; e outra de pendor naturalista, que integrava a criação do homem, desde a origem, no plano divino da Criação. Marie‑Dominique Chenu introduz assim o essencial da controvérsia do séc. XII, em torno da questão da criação do homem:

 

«Foi o homem criado por causa de si mesmo? E, portanto, segundo a densidade original de uma certa natureza, conduzida segundo certas leis, num ambiente de seres e de coisas a si referidos, onde ele encontra o seu contexto vital e a matéria para as suas iniciativas. Ou então não terá ele sido, na génese do universo, acerca da qual nos ensina a Escritura que uma catástrofe perturbou a ideia primeira, pelo pecado e a perdição de um certo número de criaturas angélicas, uma substituição admirável e paradoxal: um outro tipo de espíritos, induzidos estes na matéria terrestre, e destinados a substituir junto do Criador, num mundo restaurado, os anjos caídos? – Sob a referência ao texto bíblico, desenha‑se implicitamente a tensão interna de toda a reflexão antropológica: deve o homem julgar‑se como uma natureza no universo que o envolve e que determina as suas leis de base? Ou então a história, uma certa história (aqui a história primitiva da Génese, a partir das livres volições de Deus), entra ela na sua constituição e no seu destino?» La théologie au XIIe siècle, 3ª ed., Paris, 1976, pp.52‑53.

 

A questão – cur homo? –, isto é, a questão da razão de ser da criação do homem, ou do sentido da existência do homem, era, no séc. XII, a seguinte: o homem foi criado por causa de si mesmo ou por causa da queda dos anjos? Se o homem foi criado por causa da queda dos anjos, a criatura humana não vale senão pelo número de indivíduos humanos necessários para suprir a falta dos anjos caídos na cidade celeste. Deste modo, o valor do homem fica circunscrito a um certo número de indivíduos. Em contrapartida, se o homem foi criado, porque fazia parte do plano primitivo da Criação, então isso significa que a criatura humana vale pela sua perfeição própria e pela diferença que acrescenta à diversidade da Criação. Deste modo, o valor do homem é, antes de mais, o valor da sua diferença específica e, portanto, da sua natureza. A questão – cur homo? – pode, então, traduzir‑se do seguinte modo: a natureza humana é ou não necessária ao plano da Criação?

A controvérsia decorreu, sobretudo, na escola de Laon e nos seus círculos de influência. Nas variações do debate, foi progressivamente ganhando força a posição em defesa da criação do homem pelo valor intrínseco da sua natureza.

Entre os antecedentes da questão, destacam‑se Gregório Magno e Anselmo de Cantuária. Gregório Magno (m. 604) associara já estreitamente a criação do homem com a queda dos anjos, na interpretação da parábola das dez dracmas (Luc. 15, 8), identificando a décima dracma com o homem, que teria sido criado para completar o número dos eleitos da cidade celeste, de acordo com Deut. 32, 8: «Fixou os limites dos povos segundo o número dos anjos de Deus» (cf. M.‑D. Chenu, op. cit., p.57). Anselmo retoma a associação da criação do homem e da queda dos anjos, mas questionando‑a subtilmente.

 

A razão maior: a perfeição da cidade celeste

 

Em Anselmo (1035‑1109) já se prenuncia a questão – cur homo? – na questão da perfeição da cidade celeste: os homens foram criados para perfazer, na cidade celeste, o número dos anjos caídos ou porque a natureza humana faz falta à perfeição daquela cidade? Procuremos discernir a posição de Anselmo, com base em Porquê o Deus‑Homem (Cur Deus Homo I, cc.16‑18).

 

«Anselmo. Que a natureza racional, que é ou será feliz na contemplação de Deus, tenha sido pré‑conhecida por Deus num número racional e perfeito, de modo que não convém que este seja maior ou menor, disso não há que duvidar. De facto, ou Deus não sabe com que número convém melhor constituí‑la, o que é falso; ou, se sabe, constituí‑la‑á com aquele número que entender mais conveniente. Por isso, ou os anjos que caíram foram feitos para entrarem naquele número, ou, porque não puderam permanecer fora daquele número, caíram por necessidade, o que é absurdo pensar. – Boso. É clara verdade aquilo que dizes. – A. Uma vez, portanto, que deviam pertencer àquele número, ou deve ser necessariamente restaurado o número deles, ou permanecerá em número imperfeito a natureza racional, que foi pré‑conhecida em número perfeito, o que não pode ser. – B. Sem dúvida que devem ser restaurados. – A. É, pois, necessário que eles sejam restaurados através da natureza humana, porque não há outra através da qual o possam ser.» Cur Deus Homo (CDH), I, c.16 ( texto da ed. crítica de F. S. Schmitt (II, pp.74‑75), reprod. em L’Oeuvre de S. Anselme de Cantorbéry 3, Paris, Cerf, 1988, pp.354‑356).

 

Porquê a reposição do número dos anjos caídos só através da natureza humana?

 

«A. Outros anjos não podem substituí‑los – para não dizer como isto repugna à perfeição da primeira criação – porque não devem, a não ser que pudessem ser tais quais fossem aqueles [os anjos caídos], se não pecassem, desde que perseverassem sem ver a vingança do pecado, o que, depois da queda de uns, seria impossível para aqueles que os viessem substituir. De facto, não são igualmente louváveis, se permanecem na verdade, aquele que nenhuma pena de pecado conhece e aquele que sempre a vê eterna. Nunca se deve julgar que os bons anjos são confirmados pela queda dos maus, mas pelo seu mérito.» CDH I, c.17 (Schmitt, II, p.75).

 

A reposição do número dos anjos caídos não pode ser feita através da própria natureza angélica, porque os anjos substitutos já não teriam o mesmo mérito na perseverança do que os bons anjos da primeira criação, uma vez que já não poderiam perseverar incondicionadamente, mas já na condição de conhecerem a consequência da queda de outros. Ademais, a perseverança sustentada pelo mal dos outros não só perderia o mérito como perderia a bondade.

Excluída a possibilidade da reposição dos anjos caídos por outros anjos, resta a possibilidade dessa reposição ser feita através da natureza humana. A questão que se coloca é, então, a seguinte:

 

«A. Se os anjos, antes que alguns deles caíssem, existiam naquele número perfeito de que falámos, os homens não foram feitos senão para a restauração dos anjos perdidos, e é evidente que não serão mais numerosos do que estes. Se aquele número não se perfaz em todos aqueles anjos, então deve ser preenchido por homens quer o que se perdeu quer o que primeiro faltava, e existirão mais homens eleitos do que anjos réprobos. E assim dizemos que os homens não foram feitos apenas para restaurar um número diminuído, mas também para perfazer um ainda não perfeito. – B. O que é que se deve pensar: que os anjos foram feitos primeiro em número perfeito ou não? – A. Direi o que me parece. – B. Não posso exigir mais de ti.» CDH I, c.18 (Schmitt, II, p.76).

 

O número dos homens confirmados na cidade celeste excede ou não o número dos anjos caídos? Se não excede, presume‑se que a natureza humana terá sido criada só para substituir os anjos caídos. Se excede, torna‑se plausível pensar que a natureza humana tenha sido criada não só para aquela substituição como por fazer falta à perfeição da cidade celeste.

Caso a criação do homem seja posterior à dos anjos, as duas hipóteses são admissíveis:

 

«A. Se o homem foi feito depois da queda dos maus anjos, como alguns entendem em Génesis, não vejo que possa provar uma ou outra coisa de forma determinada. Pode ser, como penso, que os anjos existissem primeiro em número perfeito e que o homem tenha sido feito depois para restaurar o número diminuído daqueles; e pode ser que não existissem em número perfeito, porque Deus diferia, como difere até agora, preencher aquele número, e fazer a natureza humana no seu tempo, de modo que ou apenas perfizesse o número ainda não perfeito ou também o restituísse, se ele diminuísse.» CDH I, c.18 (Schmitt, II, p.76).

 

Caso a criação seja simultânea, só a segunda hipótese permanece admissível:

 

«Se toda a criatura foi feita simultaneamente, e se aqueles dias, em que Moisés parece dizer que este mundo foi feito não simultaneamente, devem ser entendidos de modo diferente daquele como vemos estes dias nos quais vivemos: não posso compreender como é que os anjos foram feitos naquele número perfeito. Com efeito, se assim fosse, parece‑me a mim que, necessariamente, ou alguns anjos ou homens cairiam, ou existiriam em maior número naquela cidade celeste do que exigiria aquela conveniência do número perfeito. Portanto, se todas as coisas foram feitas simultaneamente, parece que os anjos e os dois primeiros homens existiram em número imperfeito de modo que, se nenhum anjo caísse, o que faltava só seria preenchido por homens, e, se algum perecesse, também este que caísse seria restituído. Além disso, a natureza humana, que era mais fraca, como que escusaria Deus e confundiria o diabo, se este imputasse a sua queda à sua própria debilidade, uma vez que ela, mais fraca, perseveraria; e se ela própria caísse, muito mais defenderia Deus contra o diabo e contra si mesma, uma vez que ela própria, tornada muito mais fraca e mortal, a partir de tanta fraqueza ascenderia tão alto, nos eleitos, quanto o lugar donde cairia o diabo, e quanto os bons anjos, cuja igualdade lhe é devida, progredissem depois da ruína dos maus, porque perseveraram.

Por estas razões, mais me parece que não estava nos anjos aquele número perfeito, segundo o qual se há‑de perfazer a cidade celeste, porque, se o homem não foi feito simultaneamente com os anjos, isso é possível; e, se foram feitos simultaneamente, o que muitos preferem admitir, porque se lê “quem vive no eterno criou todas as coisas simultaneamente” (Ecles. 18, 1), parece que [isso mesmo] é necessário.» CDH I, c.18 (Schmitt, II, pp.76‑77).

 

Em caso de criação simultânea, a primeira hipótese – os anjos perfaziam originariamente o número perfeito da natureza racional e a natureza humana não foi criada senão para repor o número dos anjos caídos – implica uma consequência inaceitável: alguma queda seria necessária.

Caso o número perfeito seja relativo às naturezas e não aos indivíduos, só a segunda hipótese permanece admissível:

 

«Mas se a perfeição da criatura mundana não deve ser compreendida tanto em número de indivíduos quanto em número de naturezas, é necessário que a natureza humana ou tenha sido feita para completar essa mesma perfeição, ou que ela lhe sobeje, o que não ousamos dizer da natureza do mais pequeno verme. Por isso, [a natureza humana] foi feita em razão de si mesma (pro se ipsa), e não só para restaurar os indivíduos de outra natureza. Donde é evidente que, se nenhum anjo perecesse, os homens teriam o seu lugar na cidade celeste. Segue‑se, portanto, que, nos anjos, antes que alguns deles caíssem, não estava aquele número perfeito. De contrário, era necessário que caíssem alguns homens ou anjos, porque nenhum lá [na cidade celeste] podia permanecer fora do número perfeito.» CDH I, c.18 (Schmitt, II, pp.77‑78).

 

Em caso de número perfeito de naturezas, a primeira hipótese – os anjos perfaziam originariamente o número perfeito da natureza racional e a natureza humana não foi criada senão para repor o número dos anjos caídos – implica a mesma consequência inaceitável do caso anterior: alguma queda seria necessária. A felicidade de alguns à custa da perda de outros é a inconveniência ética da primeira hipótese:

 

«A. Há outra razão, como me parece, que muito favorece aquela posição [a segunda hipótese], que estima que os anjos não foram feitos no número perfeito. – B. Di‑la. – A. Se os anjos foram feitos naquele número perfeito, e de modo nenhum foram feitos os homens senão para a restauração dos anjos perdidos, é evidente que, se os anjos não caíssem daquela felicidade, os homens não ascenderiam a ela.» CDH I, c.18 (Schmitt: II, p.78).

 

Este inconveniente ético é razão suficiente para recusar a primeira hipótese em favor da segunda.

 

 

 

Aula nº15 (5ª feira: 14/03/24)

3. A questão da salvação da humanidade

3.1. Uma obra mal amada: Cur Deus Homo. Renovação do mundo e congratulação universal.

 

 

Renovação do mundo e congratulação universal

 

Acresce a renovação final do mundo material, a favor da segunda hipótese:

 

«A. Admito que pode dizer‑se ainda outra razão em favor da mesma posição [a segunda hipótese]. – B. Deves também dizê‑la. – A. Cremos que esta mole corpórea do mundo deve ser renovada para melhor (2 Ped. 3, 13; Apoc. 21, 1), e isto não acontecerá até que seja preenchido o número dos homens eleitos e se perfaça aquela cidade bem‑aventurada, nem deve ser diferido para depois de consumada a perfeição desta cidade. Donde, pode inferir‑se que Deus propôs, desde o início, perfazer uma e outra, por forma que a natureza menor, que não sentisse Deus, de modo nenhum se perfizesse antes da natureza maior, que deveria fruir de Deus, e, mudada para melhor a seu modo, como que se congratulasse na perfeição da maior; mais ainda, por forma que todas as criaturas se regozijassem com tão gloriosa e tão admirável consumação, comprazendo‑se eternamente, com o próprio Criador, consigo mesmas e umas com as outras, cada uma a seu modo, pois aquilo que a vontade espontaneamente fez na natureza racional, a criatura insensível exibi‑lo‑ia naturalmente por disposição de Deus. Com efeito, nós costumamos comprazermo‑nos na exaltação dos nossos antepassados, como quando nos regozijamos com a exultação festiva dos aniversários natalícios dos santos, alegrando‑nos com a glória deles. Parece reforçar esta posição, o seguinte: se Adão não pecasse, Deus, porém, diferiria o perfazer daquela cidade, até que estivesse completo o número de homens que esperava, e os próprios homens se transmutassem, por assim dizer, para a imortal imortalidade dos corpos. No paraíso tinham alguma imortalidade, isto é, o poder de não morrer, mas não era imortal este poder, porque podia morrer, de modo que eles próprios não pudessem não morrer.» CDH I, c.18 (Schmitt: II, pp.79‑80).

 

A renovação do mundo material vem favorecer a segunda hipótese – os anjos não perfaziam originariamente o número perfeito da natureza racional e a natureza humana não foi criada apenas para repor o número de anjos caídos –, pois a natureza humana também contribui para a renovação do mundo material, não só por prover ao ao total comprazimento das naturezas inferiores renovadas como pela própria transmutação da sua originária imortalidade mortal numa imortal imortalidade.

Há ainda outro factor a ponderar na orientação anselmiana em favor da segunda hipótese, que é a articulação entre a confirmação dos anjos e a renovação do mundo:

 

«Se assim é, de modo que Deus terá proposto desde o início perfazer simultaneamente aquela cidade racional e bem‑aventurada e esta natureza mundana sem sensibilidade, parece que: ou aquela cidade não estava completa com o número de anjos, antes da ruína dos maus, mas Deus esperava que ela se completasse com homens, quando a natureza corpórea do mundo mudasse para melhor; ou se era perfeita no número, não era perfeita na confirmação, e devia ser diferida a sua confirmação, mesmo se ninguém pecasse nela, até à mesma renovação do mundo, que esperamos; ou, se aquela confirmação não devia ser diferida por mais tempo, a renovação do mundo devia ser acelerada, para que se fizesse com a mesma confirmação. Mas que Deus renovasse de imediato o mundo acabado de fazer, e resolvesse destruir, no próprio início, estas coisas que não existirão depois daquela renovação, antes que fosse evidente a razão por que foram feitas, eis o que carece de toda a razão. Segue‑se, pois, que os anjos não eram de tal modo em número perfeito que a sua confirmação não diferisse por muito tempo, porque era necessário que a renovação do mundo novo fosse feita logo depois, o que não convém. Que Deus quisesse diferir a mesma confirmação até à futura renovação do mundo, parece inconveniente, especialmente, quando a perfez tão depressa em alguns, e uma vez que se pode compreender que, nos primeiros homens, quando pecaram, tê‑la‑ia feito, se não pecassem, como fez nos anjos perseverantes. Embora ainda não tivessem sido elevados àquela igualdade dos anjos, que haviam de alcançar os homens, quando se tivesse perfeito o número que deles havia de ser assumido, parece que, naquela justiça em que existiam, se vencessem, de modo que, tentados, não pecassem, seriam confirmados, com toda a sua descendência, para que não pudessem pecar no futuro; de igual forma, porque, vencidos pecaram, foram infirmados, de modo que, tanto quanto deles depende, não podem existir sem pecado. Quem ousará dizer que a injustiça é mais capaz de sujeitar à servidão o homem que nela consente na primeira persuasão, do que a justiça, de confirmar na liberdade aquele que a ela adere na primeira tentação? De igual forma, porque a natureza humana existia toda nos primeiros parentes, toda neles foi vencida para que pecasse, excepto apenas aquele homem, que Deus soube separar do pecado de Adão, tal como soube fazer da virgem sem semente de homem; assim também, neles, toda a natureza humana teria vencido, se não pecassem. Resta dizer, portanto, que a cidade celeste não estava completa com aquele primeiro número de anjos, mas que devia completar‑se com homens. Ratificado isto, haverá mais homens eleitos do que anjos réprobos.» CDH I, c.18 (Schmitt: II, pp.80‑81).

 

Retoma‑se aqui a primeira hipótese, com uma nova adenda: os anjos perfaziam originariamente o número perfeito da natureza racional, mas esse número perfeito não é condição suficiente para a perfeição da cidade celeste. A perfeição desta cidade exige ainda a confirmação dos anjos, ou seja, a confirmação da sua perseverança, mesmo que nenhum dela caísse. Como é que a necessidade de confirmação dos anjos se articularia com a necessidade de renovação do mundo, em ordem à perfeição última da obra da Criação? Ou a renovação do mundo seria acelerada em função do tempo breve requerido para a confirmação dos anjos, o que não parece plausível, pois perderia sentido a existência demasiado breve das naturezas não renováveis; ou a confirmação dos anjos seria diferida em função do tempo longo requerido para a renovação do mundo, o que também não parece plausível, pois não haveria razão para adiar uma confirmação que poderia ser feita em muito menos tempo. Por conseguinte, a necessidade de confirmação dos anjos não basta por si só para compreender o tempo da renovação do mundo material. A natureza humana faz falta a essa compreensão.

Resta, por isso, a segunda hipótese, como sendo a mais plausível: os anjos não perfaziam originariamente o número perfeito da natureza racional e a natureza humana não foi criada apenas para repor o número de anjos caídos. Deste modo, Anselmo defende a criação do homem em função, sobretudo, da perfeição dos fins últimos da Criação, e não apenas da queda dos anjos. Quer isso dizer que a natureza humana tem um valor irredutível.

 

 

 

Aula nº16 (2ª feira: 18/03/24)

Leitura partilhada e comentada de excertos de Cur Deus Homo.

 

 

Aula nº17 (5ª feira: 21/03/24)

Apresentação de projectos de trabalho: Rodrigo Reis, Leandro Crespo.

 

 

2ª feira: 25/03/24 — Páscoa

 

5ª feira: 28/03/24 — Páscoa

 

 

Aula nº18 (2ª feira: 1/04/24)

3.2. Liberdade e perseverança: De libertate arbitrii; De caso diaboli; De concordia praescientiae, praedestinationis et gratiae Dei cum libero arbitrio. Liberdade: a definição e a justificação da definição. Leitura partilhada e comentada de textos.

Apresentação de projectos de trabalho: Maria Rodrigues.

 

 

Liberdade

 

A liberdade não é o poder de escolher entre o bem e o mal

 

O livre arbítrio, de acordo com a herança da filosofia patrística, vocaciona-se tradicionalmente para a expressão do sentido da liberdade criada, como seja, em especial, a liberdade humana. Enquanto tal, o livre arbítrio conota principalmente uma liberdade electiva escorada numa ordem não arbitrária de bens. A reversão desta ordem por meio do livre arbítrio constitui a origem do mal no foro interior da criatura racional. Tal fora o papel em realce do livre arbítrio, ao serviço da retratação anti-maniqueia de Santo Agostinho. A controvérsia anti─maniqueísta tornou por demais óbvia a associação entre o livre arbítrio e o poder de pecar. Ora, se o poder de pecar for indissociável do livre arbítrio, este não poderá constituir uma noção de liberdade extensiva a Deus. Com o intuito de evitar esta consequência, Santo Anselmo empenha─se em dissociar o livre arbítrio do poder de pecar e em tematizar uma noção transcendental de liberdade. Tais são as coordenadas que determinam a construção da noção de liberdade do arbítrio em De libertate arbitrii. Este título do opúsculo anselmiano anuncia esse intuito, ao sublinhar o tema da liberdade relativamente ao do arbítrio, uma vez que trata substantivamente da liberdade do arbítrio.

 

«Não penso que a liberdade do arbítrio seja a potência de pecar e de não pecar. Com efeito, se fosse esta a definição dela, nem Deus nem os anjos, que não podem pecar, teriam livre arbítrio, o que não se pode dizer.» De libertate arbitrii (=DLA) 1 (Schmitt: I, p.207).

 

A dissociação entre liberdade e poder de escolher entre o bem e o mal (potência de pecar e de não pecar) concretiza─se na exclusão deste poder, da definição da liberdade: o poder de pecar não participa da essência da liberdade do arbítrio:

 

«M. [...]. Uma vez que o livre arbítrio divino e dos bons anjos não pode pecar, não pertence à definição da liberdade do arbítrio o ‘poder de pecar’. Enfim, nem a liberdade nem parte da liberdade é o poder de pecar.» DLA 1 (Schmitt: I, p.208).

 

A origem do mal está no arbítrio (poder de esolha), mas não por causa deste ser livre:

 

«Pelo livre arbítrio, pecou o anjo apóstata ou o primeiro homem, porque pecou pelo seu arbítrio, que era de tal modo livre que por nenhuma outra coisa poderia ser coagido a pecar. E, por isso, é justamente repreendido, porque, com a condição de ter esta liberdade do seu arbítrio, pecou sem alguma coisa coagente, sem alguma necessidade, mas espontaneamente (sed sponte). Pecou pelo seu arbítrio, que era livre; mas não pela causa de ser livre (sed non per hoc unde liberum erat), isto é, pelo poder pelo qual podia não pecar e não servir o pecado, mas pelo poder que tinha de pecar, pelo qual não era exortado para a liberdade de não pecar nem era coagido à servidão de pecar.» DLA 2 (Schmitt: I, p.210).

 

A definição de liberdade

 

A liberdade do arbítrio é, segundo a definição anselmiana, o poder de guardar a rectitude da vontade, isto é, a justiça, pela própria rectitude:

 

«Portanto, uma vez que toda a liberdade é poder, aquela liberdade do arbítrio é o poder de guardar a rectitude da vontade pela própria rectitude (illa libertas arbitrii est potestas servandi rectitudinem voluntatis propter ipsam rectitudinem).» DLA 3 (Schmitt: I, p.212).

 

A justificação da definição de liberdade

 

Em resposta a uma objecção: uma vez que temos o poder de guardar coisas que podemos perder por força de adversidades externas, não deveríamos acrescentar à definição dada que o poder da liberdade é insuperável, i.e., infalível?

 

«D. Há uma coisa que ainda me inquieta um pouco nela [liberdade]. Na verdade, temos muitas vezes o poder de guardar algo, que todavia não é livre, de modo que não possa ser impedido por uma força exterior. Por isso, quando dizes que a liberdade do arbítrio é o poder de guardar a rectitude da vontade pela própria rectitude: vê se não deve ser acrescentada a precisão de que esse poder é tão livre que por nenhuma força pode ser superado.

M. Se o poder de guardar a rectitude da vontade pela própria rectitude pudesse por vezes ser encontrado sem aquilo que apreendemos como liberdade, então seria preciso acrescentar o que dizes. Mas, como a dita definição é de tal modo perfeita segundo o género e as diferenças que nem menos nem mais inclua do que aquela liberdade que buscamos, nada pode ser entendido que lhe deva ser acrescentado ou subtraído. É, de facto, o poder (‘potestas’) o género da liberdade. Aquilo que foi acrescentado — de guardar (‘servandi’) — separa-a de todo o poder que não é de guardar, como é o poder de rir ou de andar. Acrescentando — rectitude (‘rectitudinem’) — separamo-la do poder de guardar o ouro ou o que quer que seja que não é a rectitude. Pelo aditamento de ‘vontade’ (‘voluntatis’), ela é separada do poder de guardar a rectitude de outras coisas, como da vara ou da opinião. Por isto que foi dito — pela própria rectitude (‘propter ipsam rectitudinem’) — ela é distinta do poder de guardar a rectitude da vontade por outra coisa, como quando é guardada por dinheiro ou naturalmente. De facto, o cão guarda naturalmente a rectitude da vontade, quando ama os seus cachorros ou o dono que o beneficia. Por conseguinte, nada há nesta definição que não seja necessário para precisar a liberdade do arbítrio da vontade racional e para excluir o restante, e suficientemente ela é incluída e o restante excluído; nem é excessiva nem indigente, esta nossa definição. Não te parece?» DLA 13 (Schmitt: I, p.225).

 

Esta é efectivamente a definição de uma noção unívoca, similar, segundo Anselmo, àquela que define o género animal: tal como a mesma definição de animal compete a todos os animais, quer seja substancial quer seja acidental a diferença entre eles, assim também a mesma definição de liberdade deve caber a todas as formas de liberdade, ainda que, entre elas, haja diferenças substanciais:

 

«M. Embora o livre arbítrio dos homens difira do livre arbítrio de Deus e dos bons anjos, a definição desta liberdade, segundo este nome, deve ser a mesma nuns e noutros. De facto, ainda que um animal difira de outro animal quer substancialmente quer acidentalmente, a definição, segundo o nome ‘animal’, é a mesma para todos os animais. Por conseguinte, é preciso dar uma definição de liberdade que nem mais nem menos do que ela contenha.» DLA 1 (Schmitt: I, p.208).

 

A divisão da liberdade

 

Mas as diferenças entre o livre arbítrio dos homens e o livre arbítrio de Deus, e dos bons anjos, justificam a seguinte divisão da liberdade:

 

«D. Resta agora que dividas a mesma liberdade. De facto, embora, segundo esta definição, ela seja comum a toda a natureza racional, muito difere, porém, aquela que é de Deus, daquelas que são da criatura racional, e estas entre si.

M. Uma é a liberdade do arbítrio por si (a se), que nem foi feita nem foi recebida de outro, a qual só pertence a Deus; outra, a que foi feita por Deus e dele foi recebida, que é a dos anjos e dos homens. Da que foi feita ou recebida, uma é a que possui a rectitude que guarda, outra, a que dela carece. Da que possui a rectitude, uma tem-na separavelmente, outra inseparavelmente. Aquela que a possui separavelmente, foi de todos os anjos, antes que os bons fossem confirmados e que os maus caíssem; e é de todos os homens antes da morte, que possuem a mesma rectitude. Aquela que a possui inseparavelmente, é dos eleitos, anjos e homens. Mas dos anjos após a ruína dos réprobos, e dos homens após a sua morte. Daquela, porém, que carece de rectitude, uma carece recuperavelmente, outra irrecuperavelmente. Aquela que carece recuperavelmente, é de todos os homens que dela carecem apenas nesta vida, embora muitos não a recuperem. Aquela que carece irrecuperavelmente, é dos réprobos, anjos e homens; mas dos anjos após a sua ruína, e dos homens após esta vida.» DLA 14 (Schmitt: I, p.226).

 

As diferenças que dividem a liberdade são aquelas que distinguem entre a liberdade divina e a forma de liberdade comum a toda a criatura racional. Por diferenças próprias da liberdade divina, Anselmo toma as seguintes: duas diferenças que caracterizam negativamente aquela liberdade, enquanto a mesma não é nem criatura nem dom de outro; a diferença de ser a se, que podemos entender no mesmo sentido que obtém, para Anselmo, a determinação do ser per se, isto é, a determinação substancial do ser. Na medida em que é a se, portanto, substancial, a liberdade é um dos múltiplos atributos divinos ou nomes da essência suprema; na medida em que não é relacionalmente ab alio, a liberdade divina não pode ser dom, nem de criação nem outro. Diversamente, a forma de liberdade comum a toda a criatura racional é relacionalmente ab alio, pois é criada e, enquanto tal, recebida como dom. Ademais, a liberdade criada é, fundamentalmente, aquela que possui de modo separável a rectitude da vontade: libertas arbitrii habens rectitudinem separabiliter. Ao contrário da liberdade incriada, que coincide com a própria justiça ou rectitude da vontade, na essência divina, a liberdade criada não se identifica com a rectitude da vontade, mas distingue─se dela, tecendo─se entre ambas uma relação de posse. Tal como o que quer que seja possuído é, pelo menos em princípio, separável do seu possuidor, assim também a justiça ou rectitude da vontade é separável da liberdade que a possui. Enquanto a justiça é essencialmente inseparável da liberdade incriada, a mesma justiça é originariamente separável da liberdade criada. A inseparabilidade e a separabilidade da justiça são as diferenças que tornam irredutíveis entre si, respectivamente, a liberdade divina e a liberdade humana.

 

 

 

Aula nº19 (5ª feira: 4/04/24)

3.2. Liberdade e perseverança: De libertate arbitriiDe caso diaboliDe concordia praescientiae, praedestinationis et gratiae Dei cum libero arbitrio. A divisão da liberdade. Liberdade e necessidade. Leitura partilhada e comentada de textos.

 

 

Liberdade e necessidade

 

Na sua última obra, com o extenso título de De concordia praescientiae et praedestinationis et gratiae Dei cum libero arbitrio, Anselmo sistematiza as três grandes questões que se colocaram, na filosofia da Idade Média, acerca da liberdade: a questão da compossibilidade da presciência com o livre arbítrio (Quaestio I: de praescientia et libero arbitrio); a questão da compossibilidade da predestinação com o livre arbítrio (Quaestio II: de praedestinatione et libero arbitrio); e a questão da compossibilidade da graça com o livre arbítrio (Quaestio III: de gratia et libero arbitrio). As decisões de Anselmo, no âmbito destas questões, inscrevem‑se na linhagem de Agostinho.

 

A questão da compossibilidade da presciência com o livre arbítrio

 

Esta era uma questão que Agostinho retoma expressamente a partir de Cícero. Este tinha considerado a questão em De natura deorum e em De divinatione, renunciando à presciência em favor do livre arbítrio. Agostinho dá‑nos conta da posição de Cícero em De Civitate Dei V (9‑10), e, relativamente a esta, define a sua própria posição. Agostinho também é muito crítico a respeito das práticas e técnicas humanas de presciência, especialmente as da astrologia, a qual combate com grande veemência verbal (De Civitate Dei V, 1‑7; De doctrina christiana II, 21, 32 – 24, 37). Todavia, Agostinho não nega a possibilidade de toda e qualquer presciência. Agostinho não nega, sobretudo, a necessidade da presciência divina, em função da perfeição de Deus. Ele não pode, por isso, salvar o livre arbítrio, negando pura e simplesmente a presciência. Agostinho empenha‑se, sim, em defender que a presciência divina não impede o livre arbítrio (De libero arbitrio III, 2, 4 – 4, 11; De Civitate Dei V, 9‑10). E isto por duas razões. Antes de mais, porque a presciência divina, não podendo ser falsa, previu o livre arbítrio do ser humano; logo, a presciência divina não anula, antes postula a liberdade humana. Ademais, porque o conhecimento não obriga a vontade, não há coacção do conhecer sobre o querer; logo, a presciência divina não afecta a liberdade da vontade.

Anselmo pronuncia‑se, na continuidade de Agostinho, a favor da compossibilidade da presciência com o livre arbítrio. Aquilo que Anselmo acrescenta é uma reelaboração da solução de Agostinho, com base na sua distinção entre necessidade precedente (praecedens) e necessidade sequente (sequens): a necessidade precedente é uma necessidade coagente e é aquela que qualquer causa imprime no seu efeito, por força de o ter causado; a necessidade sequente é uma necessidade não coagente, mas decorrente quer da existência das coisas quer da verdade do conhecimento. À luz desta distinção, podem reformular‑se do seguinte modo as duas razões, acima discriminadas, da resposta augustiniana: por um lado, a verdade da presciência divina postula com necessidade o livre arbítrio, mas apenas com uma necessidade sequente; por outro lado, a presciência não anula o livre arbítrio da vontade, porque o conhecimento não obriga a vontade, isto é, porque o conhecimento não imprime na vontade alguma necessidade precedente, que anulasse a sua liberdade.

 

A formulação da questão

 

«Na verdade, presciência de Deus e livre arbítrio parecem contradizer-se (repugnare), porque é necessário que aconteça no futuro aquilo que Deus antevê (praescit), e por nenhuma necessidade acontece aquilo que se faz por livre arbítrio (per liberum arbitrium). Mas, se se contradizem, é impossível haver, ao mesmo tempo, a presciência de Deus, que antevê todas as coisas (omnia praevidet), e algo ser feito pela liberdade do arbítrio (per libertatem arbitrii). Se se entender que esta impossibilidade não existe, também é removida aquela contradição que parece existir.» De concordia praescientiae et praedestinationis et gratiae Dei cum libero arbitrio (= Conc.) q.1 [1] (Schmitt: II, pp.245-246).

 

A solução e a distinção entre necessidade sequente e necessidade precedente

 

«Eu digo: deve saber-se que muitas vezes dizemos que é necessário, aquilo que nenhuma força obriga a ser; e que não é necessário, aquilo que nenhuma proibição impede. De facto, dizemos: é necessário que Deus seja imortal e é necessário que Deus não seja injusto, não porque alguma força o obrigue a ser imortal ou proíba de ser injusto, mas porque nenhuma coisa pode fazer com que não seja imortal ou que seja injusto. Assim, portanto, se digo: é necessário que tu venhas a pecar ou não venhas a pecar só pela vontade (sola voluntate), como Deus antevê: não se deve entender que algo proíba a vontade que não prevalecer, ou que obrigue aquela que prevalecer. Isto mesmo antevê Deus, que prevê algo futuro só pela vontade (ex sola voluntate), i.e., que a vontade não é obrigada ou proibida por alguma outra coisa, e, assim, por liberdade (ex libertate) é feito o que é feito por vontade (ex voluntate). Se isto for entendido com a devida atenção (diligenter), julgo que nenhuma inconveniência impede a presciência de Deus e a liberdade do arbítrio de co-existirem (simul esse).

Enfim, se alguém considerar propriamente o sentido da palavra (intellectum verbi): por isto mesmo que se diz ‘ser antevisto algo’ (praesciri aliquid), pronuncia-se que é futuro. De facto, não é senão o que é futuro, que se antevê, porque a ciência não é senão da verdade. Por isso, quando digo que, se Deus antevê algo, é necessário que isso seja futuro. É o mesmo, se eu disser: se existir, por necessidade existirá (Si erit, ex necessitate erit). Mas esta necessidade nem obriga nem proibe algo de ser ou não ser. Portanto, por ser suposto que uma coisa existe (quia ponitur res esse), diz-se que por necessidade existe (ex necessitate esse); ou, por ser suposto que não existe, afirma-se que não existe por necessidade; não porque a necessidade obrigue ou proíba uma coisa de ser ou não ser. Na verdade, quando digo: se existir, por necessidade existirá, aqui a necessidade segue a posição da coisa, não a precede. Vale o mesmo, se assim se pronunciar: aquilo que será, por necessidade será. Nenhuma outra coisa significa esta necessidade senão que aquilo que será, não poderá, ao mesmo tempo, não ser.» Conc. q.1 [2] (Schmitt: II, pp.248-249).

 

«Assim, quando o futuro é dito do futuro, é necessário que seja o que é dito, porque o futuro nunca é não futuro, assim como todas as vezes que dizemos o mesmo do mesmo. De facto, quando dizemos que todo o homem é homem; ou se é homem, homem é; ou todo o branco é branco; ou se é branco, branco é: é necessário que seja aquilo que é dito, porque não pode algo, ao mesmo tempo, ser e não ser. Com efeito, se não é necessário que todo o futuro seja futuro, algum futuro não é futuro, o que é impossível. Portanto, por necessidade todo o futuro é futuro; e se é futuro, futuro é, uma vez que o futuro se diz do futuro; mas por uma necessidade sequente (necessitate sequente), que nada obriga a ser.» Conc. q.1 [2] (Schmitt: II, p.250).

 

«Quando, porém, o futuro é dito de uma coisa, nem sempre por necessidade a coisa é, embora seja futura. Pois se digo: ‘amanhã haverá uma revolta no povo’, não haverá revolta por necessidade. Antes que haja, pode, de facto, ser feito com que não haja. Por vezes é verdadeiro que uma coisa, que é dita futura, aconteça por necessidade, como se disser que amanhã haverá um nascer do sol. Se, portanto, com necessidade pronuncio o futuro de uma coisa futura: deste modo, a revolta futura de amanhã é futura por necessidade, ou o nascer do sol futuro de amanhã é futuro por necessidade. A revolta, porém, que não acontecerá por necessidade, só por uma necessidade sequente (sola sequenti necessitate) é dita futura, porque o futuro é dito do futuro. Se acontecer (futura est) amanhã, por necessidade acontecerá (futura est). Já o nascer do sol é entendido como futuro segundo duas necessidades, a saber: a precedente (praecedenti), que faz a coisa ser — acontecerá, porque é necessário que aconteça —, e a sequente (sequenti), que nada obriga a ser, dado que por necessidade há-de ser (futurus est), porque há-de ser (quia futurus est).» Conc. q.1 [3] (Schmitt: II, p.250).

 

Ressalve‑se que os actos livres não estão isentos de toda e qualquer necessidade: eles são passíveis de necessidade sequente, que é uma acepção universalíssima de necessidade, segundo Anselmo; eles são passíveis também de necessidade precedente, aquela que neles é impressa pela sua causa, a vontade livre.

 

«Assim, aquilo que quer a vontade livre (libera voluntas): pode e não pode não querer, e é necessário que ela queira. Pode, na verdade, não querer antes que queira, porque é livre, e quando já quer, não pode não querer, mas é necessário que queira, porque é impossível para ela isso mesmo, ao mesmo tempo, querer e não querer. A obra da vontade (opus voluntatis), à qual foi dado que seja aquilo que quer e que não seja aquilo que não quer, é voluntária ou espontânea (voluntarium sive spontaneum est), porque é feita por vontade espontânea (spontanea voluntate), e é duplamente necessária, porque pela vontade é obrigada a ser feita, e aquilo que é feito não pode, ao mesmo tempo, não ser feito. Mas estas necessidades, faz a liberdade da vontade (voluntatis libertas), que pode evitá-las antes delas existirem. Tudo isto, Deus, que sabe toda a verdade e só a verdade, vê como é espontâneo ou necessário, e como vê, assim é. Por esta consideração, é, pois, evidente que, sem qualquer contradição (sine omni repugnantia), Deus antevê todas as coisas, e muitas são feitas pela vontade livre (ex libera voluntate), que pode fazer com que não existam, antes de serem feitas, e, no entanto, de certo modo existem por necessidade, necessidade essa, que, como disse, descende da vontade livre.» Conc. q.1 [3] (Schmitt: II, pp.251-252).

 

Cabe ainda notar certa inflexão da questão, de Agostinho para Anselmo. Para Agostinho tratava‑se da questão da compossibilidade da presciência divina com o livre arbítrio humano, portanto, da compossibilidade de Deus presciente com o homem livre. A questão denunciava de certo modo um conflito entre Deus e o homem. Já para Anselmo, a questão penetra mais profundamente no âmbito da teologia, denunciando o conflito entre dois atributos divinos: o da presciência e o da liberdade. Como pode Deus ser simultaneamente presciente e livre? Esta é, a nosso ver, a feição mais singularmente anselmiana da questão:

 

«Pode também ser conhecido que nem todas as coisas que Deus antevê, existem por necessidade, mas algumas são feitas pela liberdade da vontade, pois, quando Deus quer ou faz algo, quer se diga segundo a imutável presença da eternidade, na qual nada é pretérito ou futuro, mas tudo simultaneamente e sem todo o movimento – como quando dizemos que não quis nem quererá ou fará algo, mas apenas que quer e faz –, quer se diga segundo o tempo – tal como quando dizemos que quererá ou fará aquilo que ainda não conhecemos que tenha feito –: não se pode negar que saiba aquilo que quer e faz e que anteveja aquilo que quererá e fará. Por isso, se o saber e o prever de Deus imprime necessidade em tudo aquilo que sabe ou antevê, nada segundo a eternidade ou segundo algum tempo Deus quer ou faz por liberdade, mas tudo por necessidade. Se é absurdo pensar isto, então não por necessidade é ou não é, tudo aquilo que Deus sabe ou antevê que é ou não é. Portanto, nada proíbe que por Ele seja sabido ou antevisto algo ser feito nas nossas vontades e acções ou haver de ser por livre arbítrio, de modo que, embora seja necessário acontecer aquilo que sabe ou antevê, muitas são as coisas que por nenhuma necessidade acontecem, mas por vontade livre (libera voluntate), como acima mostrei.» Conc. q.1 [4] (Schmitt: II, p.252).

 

Anselmo não responde à questão da compossibilidade da presciência e da liberdade em Deus, de maneira diferente daquela como responde à mesma questão no caso do homem: os actos livres de Deus não são precedentemente necessários senão por efeito da própria vontade divina, e, devido à presciência divina, os mesmos actos não são senão sequentemente necessários.

 

A questão da compossibilidade da predestinação com o livre arbítrio

 

Esta é uma questão decorrente da doutrina paulina da predestinação dos eleitos (Rom. 8, 28‑30): a predestinação divina é ou não uma coacção inelutável para a liberdade humana? Para Agostinho, esta questão aproxima-se mais da questão da compossibilidade da graça com o livre arbítrio, enquanto que, para Anselmo, esta questão se subsume na primeira, a da compossibilidade da presciência com o livre arbítrio. Com efeito, Anselmo mostra não ter uma noção forte de predestinação, reduzindo‑a praticamente à noção de presciência, uma vez que ela não imprime maior necessidade nos actos humanos do que a presciência. A resposta anselmiana a esta questão é, por isso, a mesma que foi dada à questão anterior.

 

 

 

Aula nº20 (2ª feira: 8/04/24)

3.2. Liberdade e perseverança: De libertate arbitriiDe caso diaboliDe concordia praescientiae, praedestinationis et gratiae Dei cum libero arbitrio. Liberdade e necessidade: a distinção entre duas necessidades, a precedente e a sequente. Leitura partilhada e comentada de textos.

Apresentação de projecto de trabalho: António Lisboa.

 

  

Aula nº21 (5ª feira: 11/04/24)

Apresentação de projectos de trabalho: Paula Costa, Ramiro Azevedo.

 

 

Aula nº22 (2ª feira: 15/04/24)

3.2. Liberdade e perseverança: De libertate arbitrii; De caso diaboli; De concordia praescientiae, praedestinationis et gratiae Dei cum libero arbitrio. Natureza e graça: a análise da vontade: instrumento de querer; afecções do instrumento; uso do instrumento. Leitura partilhada e comentada de textos.

 

 

Natureza e graça

 

A questão da compossibilidade da graça com o livre arbítrio

 

Na história da filosofia, cabe especialmente à controvérsia pelagiana o mérito de ter posto em questão a relação entre o livre arbítrio e a graça, com respeito à salvação. A questão pode formular‑se do seguinte modo: o livre arbítrio é suficiente ou é necessária a graça para a salvação? O monge contemporâneo de Agostinho, Pelágio, defendeu a suficiência do livre arbítrio, receando que a crença na graça diminuísse o esforço e o zelo humanos na prática do bem. Contrariamente a Pelágio, o bispo de Hipona advogou a necessidade da graça para a salvação e, consequentemente, a insuficiência soteriológica (σωτηρία=salvação) do livre arbítrio, o que lhe valeu o epíteto de “Doutor da Graça”, considerando obras da última fase da sua vida e produção literária (412-430), como De natura et gratia contra Pelagium (415), De gratia Christi et peccato originali (418), De gratia et libero arbitrio ad Valentinum Adrumet (426-427), De praedestinatione sanctorum ad Prosperum et Hilarium (428-429), De dono perseverantiae ad eosdem (428-429), Opus imperfectum contra Julianum (429-430), entre outras. Contudo, a pugna augustiniana pela necessidade da graça não anula o papel do livre arbítrio na trama do destino humano. Antes de ser anti‑pelagiano, Agostinho fora anti‑maniqueu: contra o maniqueísmo, enfatiza a responsabilidade do livre arbítrio na origem do mal, nem necessário nem substancial; contra o pelagianismo, adverte da necessidade da graça no processo da salvação. Mais do que a necessidade da graça contra a suficiência do livre arbítrio, Agostinho defende a necessidade da graça com o livre arbítrio. Qualquer que seja a proporção relativa do livre arbítrio e da graça, na ponderação de Agostinho, a sua afirmação da compossibilidade dos dois opostos converteu‑se em paradigma da posição anti‑pelagiana, para a tradição filosófica posterior.

Anselmo não formula já, em ambiente polémico, a questão da compossibilidade da graça com o livre arbítrio. A controvérsia pelagiana tornara-se uma referência longínqua. A questão torna-se, para o autor de De concordia praescientiae et praedestinationis et gratiae Dei cum libero arbitrio, uma exigência interna do desenvolvimento da filosofia da liberdade, que emerge em escritos anteriores, como De veritate, De libertate arbitrii e De casu diaboli, escritos estes, que deviam preparar o estudo das Bíblia. Não será, portanto, de admirar que Anselmo faça da questão da compossibilidade do livre arbítrio com a graça uma dificuldade suscitada pela leitura da Bíblia. A dificuldade emerge do facto de haver múltiplas passagens nos textos sagrados que sugerem ora a suficiência do livre arbítrio ora a necessidade da graça para a salvação. Por um lado, a favor da necessidade da graça, Anselmo considera os seguintes passos bíblicos: Jo 15, 5 e 6, 44; 1 Cor 4, 7; Rom 9, 16 e 18. Por outro lado, a favor da suficiência do livre arbítrio, são mencionados os seguintes passos: Is 1, 19; Sl 33, 13-15; Mt 11, 28-29. A questão da compossibilidade do livre arbítrio com a graça surge, assim, do confronto entre diversos passos bíblicos aparentemente discordantes.

 

Aquilo que é mais singularmente significativo na versão anselmiana da questão é o descentramento do tema da salvação e, com este, o do pecado original. O pecado original e a necessidade de salvação justificam a fortiori a necessidade da graça, mas, não fosse o pecado original e a necessidade de salvação, a graça não não deixaria por isso de ser necessária. Porquê? Por exigência da própria natureza da vontade humana. De facto, Anselmo defende a necessidade da graça como uma necessidade natural da nossa vontade. A presente questão torna‑se, por isso, assunto de filosofia da vontade. Ora, Anselmo analisa a vontade sob três aspectos: o instrumento de querer (instrumentum volendi), que é a vontade como potência ou faculdade; a afecção do instrumento (affectio instrumenti), que é a inclinação própria da vontade, como seja a afecção para querer a justiça e a afecção para querer a felicidade; e o uso do mesmo instrumento (usus eiusdem instrumenti), ou seja, o acto voluntário determinado por um objecto exterior (De conc. III, [11], in Schmitt: II, pp.279‑281).

 

Análise da vontade

 

«Assim como temos no corpo membros e cinco sentidos, cada um apto para o seu uso, os quais usamos como instrumentos, como são as mãos aptas para agarrar, os pés para andar, a língua para falar, a vista para ver; assim também a alma (anima) possui em si algumas forças (quasdam vires), que usa como instrumentos para usos condizentes (usus congruos). Na verdade, existe na alma a razão (ratio), que usa como instrumento seu para raciocinar (ad ratiocinandum), e a vontade (voluntas), que usa para querer (ad volendum). Não é a razão ou a vontade, toda a alma, mas cada uma delas é algo na alma. Uma vez que cada um dos instrumentos possui aquilo que é, as suas aptidões e os seus usos, podemos discernir na vontade, por causa da qual dizemos estas [distinções], o instrumento, as suas aptidões e os seus usos. Às aptidões na vontade, podemos chamar ‘afecções’ (‘affectiones’). Com efeito, o instrumento de querer é afectado (affectum est) pelas suas aptidões. Donde se diz que a alma do homem, quando quer algo veementemente, é afectada para querer isso, ou quer afectuosamente.

Assim, parece que a vontade se diz equivocamente de três maneiras: uma coisa é o instrumento de querer; outra, a afecção do instrumento; e outra, o uso do mesmo instrumento. O instrumento de querer é aquela força da alma que usamos para querer, assim como a razão [é] o instrumento de raciocinar, que usamos quando raciocinamos, e a vista o instrumento de ver, que usamos quando vemos. A afecção deste instrumento é aquilo pelo qual o próprio instrumento é de tal modo afectado para querer algo — mesmo quando não pensa naquilo que quer — que, se vem à memória, logo o quer, ou a seu tempo. Com efeito, o instrumento de querer é de tal modo afectado para querer a saúde — mesmo quando não pensa nela — que, logo que venha à memória, imediatamente a quer. E é de tal modo afectado para querer o sono — mesmo quando não pensa nele — que, quando vier à mente, o vai querer a seu tempo. Nunca é afectado de modo que queira por vezes a doença, ou de modo que queira nunca dormir. Também no homem justo, de forma semelhante, o mesmo instrumento é afectado para querer a justiça — mesmo quando dorme — de modo que, quando nela pensa, de imediato a quer. O uso do mesmo instrumento é, por outro lado, aquilo que não temos senão quando pensamos na coisa que queremos.

Diz-se ‘vontade’, o instrumento de querer, a sua afecção e o seu uso. Chamamos decerto vontade ao instrumento, quando dizemos que orientamos a vontade para diversas coisas: ora para querer andar, ora para querer sentar-se, ora para querer outra e outra coisa. Este instrumento, o homem sempre o tem, embora nem sempre o use, assim como tem a vista, que é o instrumento de ver, mesmo quando não a usa, como quando dorme. E quando a usa, orienta-a ora para ver o céu, ora para ver a terra, ora para alguma outra coisa. E assim como sempre temos o instrumento de raciocinar, i.e. a razão, que nem sempre usamos e que, raciocinando, orientamos para diversas coisas. A afecção do instrumento de querer diz-se vontade, quando dizemos que o homem tem sempre vontade de bem-estar (ut bene sibi sit). Chamamos aqui vontade àquela afecção do mesmo instrumento pela qual o homem quer bem-estar (bene sibi esse). Do mesmo modo, quando se afirma que um homem santo, mesmo quando dorme e não pensa nisso, tem sem cessar a vontade de viver justamente. E quando afirmamos que esta vontade, alguém a tem maior que outro, não dizemos que a vontade é outra coisa senão aquela afecção do próprio instrumento, pela qual quer viver justamente. De facto, o instrumento não é maior num e menor noutro. O uso deste instrumento denomina-se vontade, quando alguém diz: ora tenho vontade de ler, i.e., ora quero ler; ou, ora tenho vontade de escrever, i.e., ora quero escrever. Com efeito, assim como ver é usar a vista, que é o instrumento de ver, e o seu uso é a visão ou a vista, quando a vista significa o mesmo que visão — a vista significa também o próprio instrumento —, assim também querer é usar a vontade, que é o instrumento de querer, e o seu uso é a vontade, que não aparece senão quando pensamos naquilo que queremos.

A vontade, que é instrumento, é uma só, i.e., o instrumento de querer é um só no homem, como uma só razão, i.e., um só instrumento de raciocinar. Mas a vontade, pela qual aquele instrumento é afectado, é dupla. Com efeito, assim como a vista tem várias aptidões, designadamente, para ver a luz, e, através da luz, para ver as figuras, para ver as cores, assim também o instrumento de querer tem duas aptidões, que chamo ‘afecções’, das quais uma é para querer a comodidade, a outra para querer a rectitude. Na verdade, nada quer a vontade que é instrumento senão ou a comodidade ou a rectitude. O que quer que queira de diferente, quer ou pela comodidade ou pela rectitude, e a estas — mesmo se se engana — julga que se refere aquilo que quer. Através da afecção, que é para querer a comodidade, sempre quer o homem a felicidade e ser feliz (beatitudinem et beatus esse). Através daquela que é para querer a rectitude, quer a rectitude e ser recto, i.e., ser justo (iustus esse). Pela comodidade, porém, quer algo, como quando quer cultivar ou trabalhar, para ter donde sustentar a vida e a saúde, que julga serem comodidades. Pela rectitude, como quando quer aprender com esforço, para saber rectamente, i.e., viver justamente. A vontade, que é o uso do várias vezes dito instrumento, não se dá senão quando alguém pensa naquilo que quer, como foi dito. Desta vontade, a divisão é múltipla, da qual falaremos, não agora, mas talvez noutra ocasião.» Conc. q.3 [11] (Schmitt: II, pp.278-282).

 

As duas graças necessárias à liberdade

 

Terá a graça algum cabimento nesta análise? Sim, ao nível das afecções da vontade: o ser humano não possui estas afecções, as inclinações que são constituintes da vontade, senão porque as recebeu, isto é, porque são dons da graça, quer da graça preveniente (praeveniens), aquela que dá a posse, quer da graça subsequente (subsequens), aquela que dá a guarda:

 

«A todos, excepto só a Deus, é dito: «Que é que tens, que não recebeste? Se recebeste, de que é que te glorias, como se não tivesses recebido?» (Rom 9, 16; 1 Cor 4, 7).

De que modo a liberdade da vontade, que tem a rectitude recebida, por nenhuma necessidade é vencida para abandoná-la, mas é atacada pela dificuldade, e à mesma dificuldade não cede forçada mas querendo: julgo que já mostrei no tratado Da liberdade do arbítrio. De que modos, após a mesma rectitude recebida, a graça ajuda o livre arbítrio a guardar o que recebeu: embora não consiga enumerar todos — pois fá-lo de muitas maneiras — não será inútil dizer algo a partir de agora. Ninguém, por certo, guarda esta rectitude recebida senão querendo. Querê-la, porém, alguém não pode senão tendo-a. Tê-la, de modo nenhum consegue senão pela graça. Portanto, assim como ninguém a recebe senão pela graça preveniente (gratia praeveniente), assim também ninguém a guarda senão pela mesma graça subsequente (gratia subsequente). Na verdade, embora aquela seja guardada pelo livre arbítrio, não deve ser imputado tanto ao livre arbítrio quanto à graça, quando esta rectitude é guardada, porque o livre arbítrio não a tem nem a guarda senão pela graça preveniente e subsequente.» Conc. q.3 [3-4] (Schmitt: II, p.267).

 

Compreende‑se agora que o livre arbítrio não possa exercer o seu poder de liberdade, sem a graça, pois o livre arbítrio só pode guardar a justiça que a vontade já possui pelo dom da graça. A natureza da liberdade postula a necessidade da graça. Julgamos, por isso, que Anselmo naturalizou a noção de graça.

 

 

 

Aula nº23 (5ª feira: 18/04/24)

Discussão dos temas abordados.

Apresentação de projectos de trabalho: Afonso Sousa, Miguel Lourenço.

 

 

Aula nº24 (2ª feira: 22/04/24)

3.2. Liberdade e perseverança: De libertate arbitrii; De caso diaboli; De concordia praescientiae, praedestinationis et gratiae Dei cum libero arbitrio. Natureza e graça: a distinção entre graça preveniente e graça subsequente; a necessidade da graça para a liberdade. Leitura partilhada e comentada de textos.

Apresentação de projectos de trabalho: João Galamba.

 

 

5ª feira: 25/04/24 — Feriado

 

 

Aula nº25 (2ª feira: 29/04/24)

4. Anselmo e os outros

4.1. Conexões óbvias, como Anselmo e Descartes; Anselmo e Kant.

4.2. Conexões improváveis, como Anselmo e Heidegger; Anselmo e Derrida.

 
 
 

4.1. Conexões óbvias

 

Anselmo e Descartes

 

“Descartes e Santo Anselmo: O Argumento Ontológico.” In Descartes, Leibniz e a Modernidade. Actas do Colóquio, coordenado por Leonel Ribeiro dos Santos, Pedro Alves, Adelino Cardoso, 81-96. Lisboa: Edições Colibri/ Centro e Departamento de Filosofia da FLUL | FCT, 1998. ISBN 972-772-001-3

 

Descartes e Anselmo tinham concepções diversas dos argumentos que expuseram: para Descartes, o argumento da "Quinta Meditação de Filosofia Primeira" é de certo modo o mais evidente entre os que haviam já sido avançados nas "Meditações" anteriores; para Anselmo, o argumento do Proslogion é o mais independente ou auto-suficiente, em comparação com os que havia produzido no Monologion. A consciência que ambos os filósofos exprimem acerca dos casos respectivos de argumento ontológico denuncia que este esconde grande complexidade debaixo da simplicidade aparente que o grau de evidência e de independência obtido pode sugerir, uma vez que este grau significa o apuramento ou o momento culminante de um processo de elaboração, mediado, inclusivamente, pela construção de argumentos de outro género.

Essa condição de um complexo processo de elaboração não ressalta, porém, com a concepção corrente, padronizada e banalizada, de argumento ontológico, que circula nos meios escolares. Tornou-se, com efeito, habitual tomar por argumento ontológico a inferência directa ou imediata da existência de Deus a partir do próprio conceito de perfeição divina. Esta formulação abreviada e simplificada é aquilo que entendemos por "argumento normalizado" ou "versão normalizada" do argumento ontológico, visto que ela se converteu em padrão comum deste género de argumento.

O argumento normalizado é a versão que tem servido de objecto a grande parte das refutações e objecções ao argumento ontológico. Lugares comuns da crítica têm sido os seguintes: por um lado, o conceito de Deus e da sua perfeição é uma construção do sujeito cognoscente; por outro lado, o juízo de existência é um juízo de realidade, que não pode ser formado legitimamente apenas com base na definição de um objecto conceptualmente construído pelo sujeito.

Os argumentos cartesiano e anselmiano têm sido frequentemente reduzidos à versão normalizada do argumento ontológico e sujeitos aos lugares comuns da crítica. Propomo-nos, então, revisitar, neste estudo, os argumentos de Descartes e de Anselmo a fim de verificarmos que não são redutíveis ao argumento normalizado. Teremos em consideração os tópicos recorrentes na análise dos argumentos ontológicos, como a concepção de Deus, a noção de existência e, também, os princípios decisivos do argumento.

 

 

Anselmo e Kant

 

“O Argumento Ontológico: Kant e Santo Anselmo.” In Religião, História e Razão da Aufklärung ao Romantismo, coordenado por Manuel José do Carmo Ferreira, Leonel Ribeiro dos Santos, 107-123. Lisboa: Edições Colibri/ Dep. de Filosofia da FLUL, 1994. ISBN 972-8047-69-X

“O Argumento Ontológico: Kant e Santo Anselmo.” In Kant em Portugal: 1974-2004, organizado por Leonel Ribeiro dos Santos, 447-460. Lisboa: CFUL | FCT, 2007. ISBN 978-972-8531-53-9

 

A relação entre Kant e Santo Anselmo, com respeito ao argumento a favor da existência de Deus no Proslogion, é o que está em causa no presente estudo. Tal é o conhecido argumento anselmiano, reputado, depois de Kant, de «prova ontológica». Como indica o sucesso desta classificação, Kant ocupa um lugar eminente na tradição daquele argumento. Todavia, Kant, para quem a prova ontológica é tipificada pela prova cartesiana, não se debruça directamente sobre o argumento anselmiano, nem comenta o texto do Proslogion. Não obstante esta omissão ou esquecimento do autor e do escrito medievais, a que é especialmente imputável o legado de uma prova ontológica, Kant tornou-se de facto o pai de todas as críticas modernas (pós-kantianas) do argumento anselmiano. Por esta razão, não se pode ignorar a decisão kantiana da questão da possibilidade ou da impossibilidade de uma prova ontológica, para uma revisitação hodierna do Proslogion de Anselmo. É, pois, incontornável a relação entre Kant e Santo Anselmo acerca do argumento do Proslogion. Não é, contudo, nosso propósito reiterar a filosofia crítica de Kant sobre o argumento anselmiano, mas antes, pelo contrário, confrontar a filosofia implícita do Proslogion com a crítica kantiana. Trata-se, no fundo, de rever a filosofia de Kant, sobre a prova ontológica, à luz da filosofia anselmiana que está na base do argumento do Proslogion. De acordo com este ponto de vista de análise, está em questão, não a validade ou a invalidade do argumento anselmiano segundo Kant, mas, sim, a extensibilidade ou inextensibilidade da crítica kantiana àquele argumento. Ora, a decisão desta questão depende escolasticamente da resolução de dois artigos constituintes, a saber: se o argumento anselmiano é uma prova ontológica; se Kant é omnimodamente contra ou de algum modo a favor do argumento anselmiano. O primeiro destes dois artigos conduz, por um lado, a redefinir o argumento anselmiano em termos de argumento ontológico, não só com base na definição kantiana de prova ontológica, como, sobretudo, a partir da ontologia constituinte do argumento anselmiano. O segundo artigo permite, por outro lado, advertir, para além da habitual oposição de Kant a Santo Anselmo, de uma apreciável aproximação entre os dois filósofos em função da afinidade, com o teor do argumento anselmiano, do ensaio de uma via singularmente kantiana para a prova ontológica.

 

 

“Kant e o argumento anselmiano.” In Kant: Posteridade e Actualidade. Colóquio Internacional, coordenado por Leonel Ribeiro dos Santos, 151-162. Lisboa: CFUL | FCT, 2006. ISBN 978-972-8531-46-1

 

É lugar comum reconhecer, em Anselmo, o fundador da tradição do argumento ontológico, não obstante os sempre admissíveis antecedentes dos fundadores; e, em Kant, o mais decisivo dos seus críticos. É lugar comum entender o argumento anselmiano como uma inferência imediata da existência de Deus a partir do seu conceito, e a crítica kantiana, como a refutação que tornou definitivamente ilegítima essa inferência.

Contra estes lugares comuns, temos já denunciado, por um lado, que o argumento anselmiano do Proslogion nem é uma inferência imediata da existência de Deus a partir do seu conceito nem é o alvo explícito da crítica kantiana; e, por outro lado, que há uma bem menos notada afinidade entre Anselmo e Kant, quanto ao empenho que de ambos mereceu e ao fascínio que sobre ambos exerceu esse empreendimento da razão especulativa, que se dá habitualmente pelo nome de “argumento ontológico”. Nem Anselmo conseguiu desistir da compulsão que terá conduzido à sua descoberta, nem Kant resistiu a fazer uma nova tentativa de formulação, em Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseyns Gottes (1ª ed.: 1763), integrando assim também o lado dos proponentes da tradição do argumento ontológico. Como tivemos também já ocasião de salientar, os argumentos anselmiano e kantiano convergem entre si na relevância que conferem ao possível: Anselmo, considerando a ordem do pensável (quod cogitari potest), mediante cujos princípios infere a existência omnimodamente necessária do insuperável nessa ordem; Kant, procedendo à análise da possibilidade, como um composto de matéria e forma, cuja componente material postula, como sua condição, uma existência absolutamente necessária.

Neste momento do nosso estudo do confronto de Anselmo com os seus críticos, urge revisitar o mais célebre e influente entre eles, no próprio texto da crítica a todas as provas da existência de Deus, Kritik der reinen Vernunft (1ª ed.: 1781). Na verdade, não só o argumento anselmiano como a crítica kantiana revelam maior complexidade do que permitem captar os referidos lugares comuns. Entre aquele argumento e esta crítica, não só há aspectos óbvios de oposição como há também aspectos menos óbvios quer de aproximação quer de afastamento.

 

 

4.2. Conexões improváveis

 

Anselmo e Heidegger

 

“Anselm and Heidegger - A Disquieting Analogy.” Philosophy Study Vol. 9, N.3 (March 2019): 144-150.

DOI: 10.17265/2159-5313/2019.03.003

ISSN 2159-5313 (Print) 2159-5321 (Online).

 

Resumo

Este artigo versa sobre o desígnio humano de salvação e a questão do homem, sob o estímulo comum de duas grandes figuras da tradição filosófica, ainda que apartadas entre si por cerca de nove séculos: Santo Anselmo e Martin Heidegger. Ambos defendem a necessidade de um Deus para salvar o homem: segundo Anselmo, por causa das consequências do mal, que o homem consentiu e não pode reverter; segundo Heidegger, por causa das consequências da técnica, que o homem criou e não pode já controlar. Em qualquer dos casos, o desígnio de salvação coloca a questão do homem: porquê o homem? Esta foi uma questão pensada já no remoto séc. XII, num século de renovação na cultura europeia, e volta a colocar-se com especial acuidade nos nossos dias, num tempo de acelerado progresso tecnológico da civilização humana. Daí que a reflexão anselmiana em torno da salvação e a questão medieval do homem abram aqui portas a reequacionar o valor do homem no estado actual e num horizonte de futuro da humanidade.

 

 

Anselmo e Derrida

 

“Anselm and Derrida—An Unlikely Connection.” Philosophy Study Vol. 7, N. 7 (July 2017): 360-366.

DOI: 10.17265/2159-5313/2017.07.000

ISSN 2159-5313 (Print) 2159-5321 (Online).

 

Resumo

Este ensaio propõe um encontro improvável entre o recente pensador da desconstrução dos discursos, Jacques Derrida, e o construtor medieval de discursos teológicos, Santo Anselmo. O mote comum é a ideia de dom. O dom da morte de Cristo na economia da salvação é o alvo da desconstrução derridiana. Anselmo até dá o ensejo. Há, no entanto, uma metafísica do dom de ser e de ser outro, elaborada a respeito da processão do Espírito Santo, na teologia anselmiana da Trindade. E é possível submeter esse dom originário do Espírito Santo ao mesmo tipo de desconstrução, isto é, de redução económica, a que fora reduzido o dom da morte de Cristo. Mas tanto a construção quanto a desconstrução da teologia do dom recorrem ao mesmo tipo de procedimentos de analogia. E a economia não permite pensar o dom da forma depurada como o admite a teologia.

 

 

 

Aula nº26 (5ª feira: 2/05/24)

Prova escrita.

 

 

 
 
 
 

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