Manuel Antunes (1918-1985)
Exerceu entre 1957 e 1985
Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa (1981)
A marca do seu magistério ecoa ainda na nossa actividade, tanto através daqueles que o conheceram directamente, como pelos mais “recentes”, que vislumbram nos seus textos o sempre gratificante encontro com a palavra. Foram marcantes as suas lições no âmbito da Ontologia, da História da Cultura Clássica, da História da Civilização Romana ou da Filosofia Antiga.» Pedro Calafate, “Filosofia”, in Sérgio Campos Matos, Jorge Ramos do Ó (Coord.), A Universidade de Lisboa nos Séculos XIX e XX, Vol. II, Lisboa, Universidade de Lisboa e Edições Tinta-da-China, 2013, p.946. Autor de: Obra Completa (14 volumes), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005-2012. Homenagens: AAVV (Docentes de Filosofia da FLUL), Ao Encontro da Palavra. Homenagem a Manuel Antunes, Lisboa, Faculdade de Letras (Filosofia), 1986; José Eduardo Franco e Hermínio Rico (Coord.), Padre Manuel Antunes (1918-1985). Interfaces da cultura portuguesa e europeia, Lisboa, Campo das Letras – Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, 2007; José Eduardo Franco, Guilherme d’Oliveira Martins (Coord. científica), Susana Alves-Jesus (Coord. executiva), Repensar Portugal, a Europa e a Globalização: Saber Padre Manuel Antunes, SJ - 100 Anos, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022.
Francisco da Gama Caeiro (1928-1994)
Exerceu entre 1959 e 1990
«Outra das linhas marcantes deste Departamento foi e é, ao que me parece, a investigação em torno do pensamento filosófico português, […], sendo elevado a um mais alto patamar de exigência com Francisco da Gama Caeiro, que dedicou parte relevante do seu labor de investigador e mestre à questão da radicação cultural da filosofia, abrindo caminho para a valorização do pensamento filosófico de tantos autores portugueses, partindo de Santo António até Leonardo Coimbra.» Pedro Calafate, “Filosofia”, in Sérgio Campos Matos, Jorge Ramos do Ó (Coord.), A Universidade de Lisboa nos Séculos XIX e XX, Vol. II, Lisboa, Universidade de Lisboa e Edições Tinta-da-China, 2013, p.947. Autor de: Santo António de Lisboa, Volumes I-II, Lisboa, INCM, 1995; Dispersos, Volumes I-III, Lisboa, INCM, 1998-2000. Homenagens: AAVV, Pensar a Cultura Portuguesa. Homenagem a Francisco da Gama Caeiro, Lisboa, Edições Colibri – Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1993; Maria Leonor L.O. Xavier (Coord.), Francisco da Gama Caeiro. A presença 20 anos depois, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2014.
Manuel Barbosa da Costa Freitas (1928-2010)
Exerceu entre 1987 e 1998
«Homem de cela e da instituição universitária, Costa Freitas chega à sociedade, através, ora dos textos que esculpiu, na alma dos seus alunos, em colaboração com eles, ora da palavra escrita, sobretudo em publicações periódicas e em enciclopédias, que constituem veículos práticos, versáteis e actualizados de transmissão do saber. Assim conseguiu alargar a atmosfera dos claustros que inspiraram a sua filosofia, ou seja, o franciscano e o universitário.» Joaquim Cerqueira Gonçalves, “Apresentação”, in Manuel Barbosa da Costa Freitas, O Ser e os Seres. Itinerários Filosóficos, Volume I, Lisboa, Editorial Verbo, 2004, p.13. Autor de: O Ser e os Seres. Itinerários Filosóficos, Volumes I-II, Lisboa, Editorial Verbo, 2004. Homenagens: Cassiano Reimão (Org.) e Manuel Cândido Pimentel (Coord.), Os Longos Caminhos do Ser. Homenagem a Manuel Barbosa da Costa Freitas, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2003; AAVV, Manuel Barbosa da Costa Freitas, OFM, 1928-2010. Homenagem. Itinerarium. Revista Quadrimestral de Cultura publicada pelos Franciscanos de Portugal, Ano LVI (Lisboa, 2010).
Joaquim Cerqueira Gonçalves (n. 1930)
Exerceu entre 1963 e 2000
Agraciado pela Presidência da República Portuguesa com o Grande Colar da Ordem da Instrução Pública (2002)
«Catedrático do Departamento de Filosofia da FLUL e durante muitos anos do último quartel do século passado, coordenador da sua Comissão Científica. A par do seu sentido de serviço à comunidade académica, traduzido na dedicação às tarefas de administração do Departamento de Filosofia e da Faculdade, bem como no dinamismo com que impulsionou a criação do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, de que foi primeiro director, Cerqueira Gonçalves regia a disciplina de Filosofia Medieval, mas construiu o seu percurso académico em acentuada pluralidade de interesses, partindo sempre da matriz personalista da cultura cristã, sobretudo na sua vertente franciscana, tendo dedicado a S. Boaventura a sua dissertação de doutoramento.» Pedro Calafate, “Filosofia”, in Sérgio Campos Matos, Jorge Ramos do Ó (Coord.), A Universidade de Lisboa nos Séculos XIX e XX, Vol. II, Lisboa, Universidade de Lisboa e Edições Tinta-da-China, 2013, p.952. Autor de: Homem e Mundo em São Boaventura, Braga, 1970; Itinerâncias da Escrita, Volumes I-III, Lisboa, INCM, 2011-2015. Homenagens: Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa (Org.), Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Lisboa, Edições Colibri, 2001; AAVV, Florilégio Medieval: Itinerários Filosóficos com Joaquim Cerqueira Gonçalves, Revista Quadrimestral de Cultura publicada pelos Franciscanos de Portugal, Ano LXII nº especial (Maio-Dezembro 2016) nº 215/216.
Carlos Henrique do Carmo Silva (n. 1947)
Licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1970 com a apresentação de uma tese intitulada: Do Ser e da Aparência ou da Diferença Ontológica Fundamental (2 volumes). Nesse mesmo ano foi contratado como assistente da FLUL, tendo leccionado várias disciplinas nas áreas da Filosofia Antiga, da Lógica, da Filosofia da Linguagem e da Metafísica. A partir de 1972 inicia a sua leccionação no Departamento de Filosofia e de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa). Tem uma vasta obra publicada, em particular nas revistas Didaskalia, Itinerarium e Revista Portuguesa de Filosofia. É autor de obras como Experiência Orante em Santa Teresa de Jesus (1986), Deserto e Metamorfose de Vida (2001) e O Ócio na Tradição Cristã (2003). Especializou-se na relação entre filosofia e mística, tanto na tradição ocidental como oriental.
José Adriano Barata-Moura (n.1948)
Exerceu entre 1971 e 2018.
Professor Catedrático e Emérito
Vice-Presidente da Internationale Gesellschaft Hegel-Marx für dialektisches Denken.
Deputado ao Parlamento Europeu (1993-1994).
Reitor da Universidade de Lisboa (1998-2006).
Membro do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (1999-2006).
Membro do Conselho Nacional de Educação (2007-2011).
Sócio correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa.
Sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa.
Grande-oficial da Ordem Militar de Sant'iago da Espada.
Publicou em livro:
Kant e o conceito de Filosofia, Lisboa, Sampedro, 1972, 194 pp. (2ª ed.: Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007, 176 pp.);
Da redução das causas em Aristóteles, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1973, 124 pp.;
Estética da canção política. Alguns problemas, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, 168 pp.;
Totalidade e contradição. Acerca da dialéctica, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, 200 pp. (2ª ed. aumentada: Lisboa, Editorial Avante, 2012, 432 pp.);
Ideologia e prática, Lisboa, Editorial Caminho, 1978, 296 pp.;
EPISTEME. Perspectivas gregas sobre o saber. Heraclito - Platão - Aristóteles, Lisboa, Ed. do autor, 1979, XX+832 pp.;
Para uma crítica da «Filosofia dos Valores», Lisboa, Livros Horizonte, 1982, 152 pp.;
Da representação à «práxis». Itinerários do idealismo contemporâneo, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, 180 pp.;
Ontologias da «práxis» e idealismo, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, 260 pp.;
A «realização da razão» - Um programa hegeliano?, Lisboa, Editorial Caminho, 1990, 224 pp.;
Marx e a crítica da «Escola Histórica do Direito», Lisboa, Editorial Caminho, 1994, 412 pp.;
Prática. Para uma aclaração do seu sentido como categoria filosófica, Lisboa, Edições Colibri, 1994, 114 pp.;
Materialismo e subjectividade. Estudos em torno de Marx, Lisboa, Editorial Avante, 1997, 368 pp.;
Estudos de Filosofia Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 1998, 288 pp.;
Da mentira: um ensaio transbordante de errores, Lisboa, Editorial Caminho, 2007, 226 pp.;
O outro Kant, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007, 256 pp.;
Estudos sobre a ontologia de Hegel. Ser, verdade, contradição, Lisboa, Editorial Avante, 2010, 268 pp.;
Sobre Lénine e a Filosofia. A reivindicação de uma ontologia materialista dialéctica como projecto, Lisboa, Editorial Avante, 2010, 176 pp.;
Filosofia em «O Capital». Uma aproximação, Lisboa, Editorial Avante, 2013, 426 pp.;
Três ensaios em torno do pensamento político e estético de Álvaro Cunhal, Lisboa, Editorial Avante, 2014, 188 pp;
Marx, Engels e a crítica do utopismo, Lisboa, Editorial Avante, 2015, 363 pp;
Ontologia e política. Estudos em torno de Marx - II, Lisboa, Editorial Avante, 2016;
As Teses das «Teses». Para um exercício de leitura, Lisboa, Editorial Avante, 2018, 673 pp;
Contexturas e Texturas. Sobre o Anti-Düring de Engels, Lisboa, Editorial Avante, 2020, 337pp;
Metafísica e Ontologia, Lisboa, Página a Página, 2022, 413pp;
Ontologias da «Práxis» e Idealismo, 2ª edição revista e aumentada, Lisboa, Editorial Avante, 2023, 409pp.
Traduziu:
Karl Marx, O Capital. Crítica da Economia Política, Lisboa, Editorial Avante, 1990-2017, 8 vols.
Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach e a Saída da Filosofia Alemã Clássica, nova tradução, estudo introdutório e notas de José Barata-Moura, Lisboa, Editorial Avante, 2019, 489 pp;
G.W.F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, tradução e notas de José Barata-Moura, Lisboa, Página a Página, 2021, 633pp;
Introdução
1. Mito, filosofia e felicidade: Manuel Antunes e o método da busca da definição
2. O primado da ontologia: Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura
3. Filosofia e mística: Francisco da Gama Caeiro e Carlos H. do Carmo Silva
4. Duas visões da Idade Média: Joaquim Cerqueira Gonçalves e Francisco da Gama Caeiro
5. O valor da história da filosofia: Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura
6. O problema do ateísmo contemporâneo: Manuel da Costa Freitas
7. O problema do valor da filosofia: José Barata-Moura
A classificação final do aproveitamento individual depende da avaliação dos 3 seguintes elementos obrigatórios:
1) Apresentação oral do trabalho em projecto, sobre um dos autores contemplados no programa (45%) — título, resumo, índice de tópicos a desenvolver, bibliografia — em aulas agendadas para o efeito;
2) Participação na leitura partilhada e comentada na aula de textos escolhidos dos autores contemplados no programa (10%);
3) Trabalho concluído e escrito (45%), a ser enviado até à penúltima aula.
Na impossibilidade de realizar os elementos da avaliação contínua, a/o estudante pode obter a classificação final do aproveitamento na disciplina, através de uma prova escrita sobre o curso leccionado, a decorrer na última aula.
I. Obras dos Mestres
ANTUNES, Manuel. Obra Completa. Tomos I-VII, 14 vols. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005-2012.
BARATA.MOURA, José. Kant e o conceito de Filosofia. Lisboa: Sampedro, 1972. (2ª ed. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007).
—. Totalidade e contradição. Acerca da dialéctica. Lisboa: Livros Horizonte, 1977 (2ª ed. aumentada. Lisboa: Editorial Avante, 2012).
—. Ontologias da «práxis» e idealismo. Lisboa: Editorial Caminho, 1986.
—. “A Objectividade como Categoria Filosófica. Subsídios para uma caracterização.” Philosophica. Lisboa: Edições Colibri e Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), 1 (1993): 13-30.
—. “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?” Philosophica, Lisboa: Edições Colibri e Departamento de Filosofia da FLUL, 6 (1995): 51-69.
—. Estudos sobre a ontologia de Hegel. Ser, verdade, contradição. Lisboa: Editorial Avante, 2010.
—. Filosofia em «O Capital». Uma aproximação. Lisboa: Editorial Avante, 2013.
—. Marx, Engels e a Crítica do Utopismo. Lisboa: Editorial «Avante!», 2015.
—. “Traços do pensar filosófico.” Philosophica. Lisboa: Departamento de Filosofia e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 45 (2015): 7-19.
—. As Teses das «Teses». Para um exercício de leitura. Lisboa: Editorial «Avante!», 2018.
—. Metafísica e Ontologia. Lisboa: Página a Página, 2022.
CAEIRO, Francisco da Gama. Santo António de Lisboa. Vols. I-II. Lisboa: INCM, 1995.
—. Dispersos. Vols. I-III. Lisboa: INCM, 1998-2000.
FREITAS, Manuel da Costa. O Ser e os Seres. Itinerários Filosóficos. Vols. I-II. Lisboa: Editorial Verbo, 2004.
GONÇALVES, Joaquim Cerqueira. Homem e Mundo em São Boaventura. Braga: Editorial Franciscana, 1970.
—. Itinerâncias da Escrita. Vols. I-III. Lisboa: INCM, 2011-2015.
SILVA, Carlos Henrique do Carmo. Experiência orante em Santa Teresa de Jesus. Lisboa: Didaskalia, 1986.
—. “Divina perfeição na sabedoria pré-socrática — da teogonia mítica a uma dramática ideal do theós.” In A Questão de Deus na História da Filosofia, vol.I, coordenado por Maria Leonor L.O. Xavier, 17-80. Sintra: Zéfiro, 2008.
—. “A mística não fala de Deus. Visão paradoxal da experiência mística.” In A Questão de Deus. Ensaios Filosóficos, coordenado por Maria Leonor L.O. Xavier, 357-410. Sintra: Zéfiro, 2010.
II. Obras sobre os Mestres
AAVV (Docentes de Filosofia da FLUL). Ao Encontro da Palavra. Homenagem a Manuel Antunes. Lisboa: Faculdade de Letras (Filosofia), 1986.
AAVV. Pensar a Cultura Portuguesa. Homenagem a Francisco da Gama Caeiro. Lisboa: Edições Colibri e Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1993.
AAVV. Itinerarium. Homenagem a Manuel Barbosa da Costa Freitas (1928-2010). Ano LVI (Lisboa, 2010): 169-743.
AAVV, Florilégio Medieval: Itinerários Filosóficos com Joaquim Cerqueira Gonçalves. Revista Quadrimestral de Cultura publicada pelos Franciscanos de Portugal, Ano LXII nº especial (Maio-Dezembro 2016) nº 215/216.
DEPARTAMENTO e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, orgs. Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves. Lisboa: Edições Colibri, 2001.
FRANCO, José Eduardo e Hermínio Rico, coords. Padre Manuel Antunes (1918-1985). Interfaces da cultura portuguesa e europeia. Lisboa: Campo das Letras e Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, 2007.
—, José Eduardo e Guilherme d’Oliveira Martins (coord. científica), Susana Alves-Jesus (coord. executiva). Repensar Portugal, a Europa e a Globalização: Saber Padre Manuel Antunes, SJ - 100 Anos. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022.
SERRÃO, Adriana Veríssimo, João Rui Pereira, José Gomes André e Rui Filipe, eds. Nos Horizontes da Razão. Homenagem a José Barata-Moura. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2020.
REIMÃO, Cassiano e Manuel Cândido Pimentel, org. e coord. Os Longos Caminhos do Ser. Homenagem a Manuel Barbosa da Costa Freitas. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2003.
XAVIER, Maria Leonor, coord. Francisco da Gama Caeiro. A presença 20 anos depois. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2014.
—. Filosofia com Coração. Um Livro Pessoal em Louvor de Outras Pessoas. Edição revista e aumentada. Lisboa: MIL e DG Edições, 2023.
Aula nº1 (2ª feira: 10/02/25)
Introdução.
Os Nossos Mestres: quem são? Manuel Antunes, Francisco da Gama Caeiro, Manuel B. da Costa Freitas, Joaquim Cerqueira Gonçalves, Carlos H. do Carmo Silva e José A. Barata-Moura.
O que aprendi com eles? Constituem eles uma escola filosófica?
O programa: conteúdos; bibliografia expandida; avaliação.
AVALIAÇÃO
A classificação final do aproveitamento individual depende da avaliação dos 3 seguintes elementos obrigatórios:
1) Apresentação oral do trabalho em projecto, sobre um dos autores contemplados no programa (45%) — título, resumo, índice de tópicos a desenvolver, bibliografia — em aulas agendadas para o efeito;
2) Participação na leitura partilhada e comentada na aula de textos escolhidos dos autores contemplados no programa (10%);
3) Trabalho concluído e escrito (45%), a ser enviado até à penúltima aula: aula nº27 (2ª feira: 26/05/25).
Na impossibilidade de realizar os elementos da avaliação contínua, a/o estudante pode obter a classificação final do aproveitamento na disciplina, através de uma prova escrita sobre o curso leccionado, a decorrer na última aula: aula nº28 (4ª feira: 28/05/25).
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O que aprendi com os Mestres?
A importância da filosofia da cultura: Manuel Antunes e Joaquim Cerqueira Gonçalves
O sentido da ontologia como disciplina fundamental da filosofia: Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura
Perspectivas do interesse contemporâneo da filosofia pela religião: Manuel Antunes e Manuel da Costa Freitas
O pensamento filosófico — fenomenológico — sobre a mística: Francisco da Gama Caeiro e Carlos H. do Carmo Silva
A importância da história da filosofia para a filosofia: Joaquim Cerqueira Gonçalves e José Barata-Moura
Perspectivas complementares sobre a cultura e a filosofia medievais: Francisco da Gama Caeiro e Joaquim Cerqueira Gonçalves
Uma boa definição de filosofia: Manuel Antunes
Uma boa abordagem da questão do valor da filosofia
Constituem estes Mestres uma escola filosófica?
Uma escola pluralista — primado da diversidade — com significativas linhas de convergência — como o horizonte fundacional da ontologia — que, mesmo assim, não abrange a todos.
Aula nº2 (4ª feira: 12/02/25)
Docente em serviço de provas de doutoramento.
Aula nº3 (2ª feira: 17/02/25)
1. Mito, filosofia e felicidade: Manuel Antunes e o método da busca da definição.
Manuel Antunes: filósofo da cultura. Cultura e civilização: a definição antuniana de cultura; distinção, união e separação entre cultura e civilização; teorias da cultura; Manuel Antunes e Osvaldo Spengler.
Filosofia da cultura
Textos reunidos no Tomo I — Theoria: Cultura e Civilização —, Volume II — Anexos/Sebentas. Parte I. Cultura Clássica (Estudos) — da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de Arnaldo do Espírito Santo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
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Textos reunidos no Tomo I — Theoria: Cultura e Civilização —, Volume II — Anexos/Sebentas. Parte II — da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de Arnaldo do Espírito Santo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
Definição de cultura
«Cultura é uma palavra latina derivada do verbo colo, colis, colere, colui, cultum, que se aplica a diversas coisas. Assim diz-se: colere agros (cultivar os campos), colere litteras (cultivar as letras), colere amicitiam (cultivar a amizade). Em Marco Túlio Cícero encontramos esta valiosíssima expressão: “sese excolere ad humanittatem” (cultivar-se segundo um ideal de humanidade). Etimologicamente, portanto, cultura pode definir-se: “a acção que o homem realiza por iniciativa própria, quer sobre si quer sobre o meio, em ordem a uma transformação.” Nessa transformação está implícita a ideia de que ela se realiza no sentido do melhor.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.91.
Definição de civilização
«Civilização, pelo contrário, é palavra de formação relativamente recente. Assim, por exemplo, o dr. Johnson, no seu dicionário de 1772, prefere civility (civilidade), que empregava como sinónimo de urbanity. — Em França, só a partir de 1835 é que o Dicionário da Academia adopta o termo civilization. — Em Portugal, não sei quem foi o primeiro a empregar a palavra civilização. Pelo que conheço, encontrei-a, a primeira vez, em António Feliciano de Castilho no seu livro Amor e Melancolia, embora não possa afirmar absolutamente que seja ele o primeiro a usar entre nós o termo. — De formação recente, a palavra “civilização” é, porém, de raiz antiga. Vem do adjectivo latino ciuilis, que por sua vez vem de ciuis. Com ciuis se relaciona ciuitas, isto é, a reunião de cidadãos. Ciuilis dá civilizar e civilização. Logo, etimologicamente, civilização é, primeiro, acção de civilizar e, depois, o resultado dessa acção. Civilizar implica uma acção comum. A cultura, ao contrário, não implica necessariamente uma acção em comum.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.91.
Nota: «Civilização, s. Do f. civlisation, voc. criado por Mirabeau, em L’Ami de l’Homme, 1756; “jusqu’alors la notion était exprimée par police (et l’adj. policé); l’excès de sens de police et l’enrichissement des idées se rapportant au progrès de l’homme en société ont fait rechercher un mot nouveau. Après 1800, par suite des évènements historiques et des voyages de découvertes, civilisation a pris le sens nouveau d’ “ensemble des caractères que présente la vie collective d’une société donnée [...]”» José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, II, p.162.
Distinção, união e separação entre cultura e civilização
«Quanto a mim, penso que se devem distinguir os conceitos, quanto mais não seja pela necessidade metodológica de definir ou especializar esses mesmos conceitos, de delimitar as províncias do real como pensado. Cultura diz mais respeito ao homem individual; Civilização, mais ao homem colectivo. Embora se possa falar com verdade da cultura dum grupo, por exemplo, da cultura da nossa geração de 1870 (Antero de Quental, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, etc.), embora se possa falar da cultura duma classe, da aristocracia, da burguesia ou do proletariado, numa palavra, da cultura dum povo, como o alemão, grego, latino, francês, inglês, português, cultura, no entanto, diz respeito antes de mais nada à acção que o homem realiza de si, por si e sobre si, em ordem a uma transformação no sentido ascencional, do melhor. Cultura é mais do domínio do subjectivo e civilização é mais do domínio objectivo. Em termos hegelianos, cultura é expressão do espírito subjectivo e civilização expressão do espírito objectivado. Cultura é mais teoria, ou seja, contemplação, e Civilização é mais técnica (de τέχνη). Cultura é mais da ordem do ser e Civilização, da ordem do ter (Gabriel Marcel, Être et Avoir). A Cultura existe substantivada no homem e a Civilização é mais adjectivada no homem. Logo, a Cultura pertence às concepções do mundo e da vida ensinadas ou expressas na filosofia, na arte, na literatura, na religião, nas reflexões sobre as ciências e as técnicas, as invenções. A Civilização, por seu lado, pertence às realizações práticas destas diversas criações de cultura. Por exemplo, as leis electromecânicas pertencem à cultura, enquanto descobertas, enquanto pensadas e essas mesmas leis enquanto aplicadas, por exemplo, à tracção do comboio, são já do domínio ou pertencem à civilização, à técnica.
O conceito de cultura e de civilização traduzem e interpretam realidades distintas, em parte, mas que habitualmente vão unidas e não separadas e que são diálogo e que o espírito em diálogo traduz. A cultura encontra-se no ponto de partida da civilização e, por sua vez, a civilização, cultura realizada, objectivada, é ponto de partida de nova cultura. Por exemplo, a especulação dos gregos e a técnica dos romanos: a especulação dos gregos, retomada nos tempos modernos a partir sobretudo do século XVII, deu as maravilhas da Física nuclear e da Física electrónica.
Habitualmente unidas, cultura e civilização podem existir, todavia, separadas. Actualmente, suponhamos, um monge tibetano pode ter uma altíssima cultura e escassíssima civilização. Em contraposição, um burguês americano riquíssimo pode estar na posse das maravilhas da civilização, tendo apenas uma cultura mínima ou sendo, quiçá, inculto. Um grego do século de Péricles, Sócrates, por exemplo, que no dizer de Nietzsche constitui o gonzo, pelo menos da história ocidental, mostra-nos que, apesar de volvidos já vinte e quatro séculos, comparado com um burguês inculto, dos nossos dias, é possível dissociar as duas realidades: cultura e civilização. Sócrates, homem culto mas pouco civilizado, é a antítese do burguês de hoje, homem civilizado mas pouco ou nada culto.
Aduzamos ainda outro exemplo: de cultura autêntica, de pouca ou nenhuma civilização, os padres do deserto dos séculos IV e V da nossa era retiravam-se para a solidão para fugirem, justamente, da civilização. Homens de profunda, até mesmo vasta cultura, viviam, no entanto, em meios agrestes e não civilizados, em meios, em última análise, não humanos.
Concluímos, portanto, que estas duas realidades, a cultura e a civilização, unidas normalmente, podem existir, contudo, separadas.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.92-93.
«Cultura e civilização podem e devem unir-se. Porquê? Porque partem do mesmo sujeito, que é o homem como ser no mundo; porque se referem aos mesmos objectos: assim, um livro, um disco, uma tela, uma fita cinematográfica são simultaneamente objectos culturais se tomados pelo conteúdo ou pelo contexto expressional; se vistos pelo lado instrumental, material e técnico são objectos civilizacionais, porque, partindo do homem, ao homem regressam.
Cultura e civilização podem e devem distinguir-se. Porquê? Porque civilização vai no sentido da imanência e cultura no sentido da transcendência; porque cultura é mais substantiva ao homem, é mais do domínio do “ser”, ao passo que a civilização é mais adjectiva ao homem, é mais do domínio do “ter”. Em síntese: civilização constitui o aspecto técnico da cultura, e cultura constitui o aspecto pessoal e criador da civilização.» OC, T.I, V.II, P.II, p.38.
Teorias da cultura
«São inúmeras as teorias explicativas do fenómeno cultural e civilizacional, e é impossível citá-las todas. Nestas condições, temos que proceder por agrupamentos. Vamos, pois, reunir os raios em feixes. Estes, podemos reduzi-los, fundamentalmente, a três: o feixe naturalista, o feixe idealista e o feixe existencialista, segundo o aspecto que cada um mais acentua, ou seja, respectivamente: a natureza, o espírito e a existência, e que implica um diferente conceito de percepção.
Os naturalistas tomam a percepção como sendo, essencialmente, res (coisa): percebo um objecto aproximando-o de outro objecto. A Natureza é a soma ou o conjunto organizado de objectos.
Os idealistas tomam a percepção como sendo, essencialmente, repraesentatio (representação) criadora ou recriadora do próprio espírito: não é uma coisa que se aproxima de outra, é o espírito que projecta fora de si o real que está em si.
Os existencialistas tomam a percepção como sendo, essencialmente, praesentia (presença). É um fenómeno de interacção do mundo e do homem no espaço da intersubjectividade: o sujeito está no objecto como o objecto está no sujeito, na sua mesma presencialidade, na sua mesma “existencialidade”.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.II, p.21.
Agrupamentos (Antunes, OC, T.I, V.II, P.II, pp.22-38):
Teorias idealistas: iluministas, como a de Cristiano Wolf; panlogistas, como a de Jorge Guilherme Frederico Hegel.
Teorias naturalistas: orientação materialista dialéctico-histórica de Karl Marx e Friedrich Engels; orientação positivista de Hipólito Taine (1828-1893).
Teorias biologistas: Nicolau Iacolevitch Danilevski (1828-1885) e Osvaldo Spengler (1880-1936), apresentando e desenvolvendo, respectivamente, a ideia do pluralismo das culturas.
Teorias fenomenológico-existenciais: tipo fenomenológico-sociologista de Émile Durkheim (1858-1917); tipo fenomenológico-gnoseologista de Pitirim Alexandrovitch Sorokin (1889-1968); tipo fenomenológico-existencial percepcionista de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961).
A pergunta identitária de Manuel Antunes
«Culturalmente, quem somos nós? A nós europeus, com orientação universalista, fizeram-nos três realidades, três forças maiores: o Helenismo no pensamento, na ciência e na arte, Roma na estruturação jurídico-política, o Cristianismo na visão religiosa.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.87.
«A cultura europeia processa-se ou parece processar-se num ritmo geral, de pontos extremos: esgotamento – renascença, sucedendo-se ciclicamente. Ao esgotamento do romanismo, acontecido com a queda do Império Romano, sucedeu, depois de séculos, a Renascença carolíngia dos séculos VIII e IX. Ao novo esgotamento dos séculos X e XI sucedeu a Renascença dos séculos XII e XIII. Ao esgotamento do século XIV sucedeu a Renascença dos séculos XV e XVI. Ao esgotamento do século XVIII sucedeu a Renascença do Romantismo. Ao esgotamento dos tempos modernos uma nova Renascença parece suceder. Esgotamento e Renascença são, pois, os dois ritmos da cultura europeia.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, pp.87-88)
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Quais os conceitos essenciais da definição antuniana de cultura?
2) De todas as diferenças pelas quais se distinguem entre si cultura e civilização, quais aquelas que são mais relevantes?
3) Manuel Antunes preferia ser: ou um homem culto não civilizado ou um homem civilizado não culto ou um homem culto e civilizado?
4) Como tipificar a teoria antuniana da cultura?
Aula nº4 (4ª feira: 19/02/25)
1. Mito, filosofia e felicidade: Manuel Antunes e o método da busca da definição.
Manuel Antunes: filósofo do mito. Teorias do mito. A definição antuniana do mito. A questão da origem do mito. Traços da antropologia antuniana. Manuel Antunes e Georges Gusdorf.
Filosofia do mito
Textos reunidos no Tomo I — Theoria: Cultura e Civilização —, Volume II — Anexos/Sebentas. Parte I. Cultura Clássica (Estudos) — da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de Arnaldo do Espírito Santo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
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Textos reunidos no Tomo I — Theoria: Cultura e Civilização —, Volume II — Anexos/Sebentas. Parte II — da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de Arnaldo do Espírito Santo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
Teorias do mito (Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, pp.16-28 e P.II, pp.41-52)
Teoria alegórico-simbólica, segundo a qual «o mito é uma alegoria ou um símbolo»: filósofos gregos antigos, designadamente, Platão, Plotino, Proclo e Orígenes, e o seu grande sistematizador no séc.XIX, Friedrich Creuzer.
Teoria racionalista, segundo a qual «o Mito não é outra coisa senão o resultado da ignorância ou da má-fé, ou simultaneamente da ignorância e da má-fé, ou ainda um erro que se converte em mistificação»: Paléfato (fins do século IV a.C.), Fontenelle (1657-1757), e nos séculos XIX-XX, Augusto Comte, Fustel de Coulanges, Léon Brunschvicg, ...
Teoria histórica, segundo a qual «o Mito seria o prolongamento, no ritual (ou no culto), e a transformação, na lenda, de personagens que realmente existiram ou de factos que realmente aconteceram»: Evémero (séculos IV-III a.C.), donde a palavra “evemerismo”. Formas derivadas da teoria histórica: o degradacionismo de Schelling (e outros) e o espiritismo de H. Spencer.
Teoria linguístico-naturalista, «um estado psicológico, um nome, um deus. Daí o famoso binómio de Max Müller: Nomina-Numina (duas palavras latinas: nomes — deuses).»
Teoria sócio-comparativa, mais que uma teoria, um método: de investigação histórica da origem dos mitos; de observação da sua sobrevivência (Claude Lévy-Strauss); de determinação do povo ou povos a que pertencem os mitos; e de comparação dos mitos entre si (Georges Dumézil).
Teoria psicológica: interpretação freudiana ou psicanalítica, segundo a qual «o mito é um produto da libido» (S. Freud, 1856-1939); interpretação adleriana, segundo a qual «o mito nasce ao longo de uma linha dinâmica que corre entre dois pólos psíquicos», o «complexo de inferioridade» e o «complexo de superioridade» (A. Adler, 1870-1937); interpretação junguiana, que também parte da libido, sendo que esta «não é sexualidade, é energia psíquica», e afirma o inconsciente colectivo, que explica a existência de mitos análogos em povos diversos (C.G. Jung, 1875-1961).
Manuel Antunes (1918-1985)
O valor do mito
«O povo grego que foi certamente um dos povos mais brilhantes da história, senão o mais inteligente, foi também o povo mitificador por excelência, o povo criador de mitos. Por isso, não se compreende, neste caso absolutamente típico do povo grego, que o mito seja uma resultante ou fruto da ignorância e da má-fé. Que direito temos nós para supor de má-fé, por exemplo, os três grandes trágicos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, todos eles utilizadores de mitos, ou para afirmar que Hesíodo é um autor de má-fé, quando todo ele nos aparece transparente? Temos fundamentos para supor de má-fé um Platão ou um Plotino, também utilizadores do mito, em larga escala? Seguramente que não. Portanto o mito não pode ser fruto nem da ignorância nem da má-fé e quem assim o apresenta demonstra simplesmente uma grande incompreensão das realidades poéticas. Há pessoas que são insensíveis ao mito, porque são insensíveis à imagem e ao símbolo, insensíveis à poesia, da mesma forma que há outras insensíveis à música e para quem esta não passa de um ruído um tanto mais tolerável. As pessoas para quem o mito é a resultante da ignorância e da má-fé são, pois, espíritos estreitos e insensíveis.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.20.
Definição de mito
Versão 1
«Mito é a projecção num espaço ideal objectivo de visões fantásticas, de terrores, de desejos, de aspirações, de explicações do universo e da vida a um primeiro nível (de imaginação), projecção essa que o homem realiza em formas sensíveis, sobretudo humanas.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.29.
«É uma definição que levou anos a elaborar e precisa, por isso, de ser explicada.
Mito é a “projecção num espaço ideal objectivo”, isto é, uma acção do espírito humano que não é inerente, não fica em si mesma, antes, começando dentro de si mesma, projecta-se para fora num espaço ideal objectivo e não físico. O mito … “de visões fantásticas”, ou seja, essas visões fantásticas que povoam o espírito da humanidade desde o homem primitivo aos nossos dias, das quais nos lembramos nos nossos sonhos de criança mas a que não corresponde verdadeiramente nada de real, pois são visões da imaginação e não ideias da razão. O mito … de “terrores”, isto é, esses terrores antiquíssimos que habitam o espírito do homem sobretudo na sua infância. O mito de “desejos”, isto é, quantas vezes a nossa vida se desdobra em duas, uma real, não raro de horizontes estreitos e muito limitados, monótona, sempre igual, e outra criada por nós como uma superestrutura, uma outra vida com tanta ou mais realidade que a vida de horizontes estreitos. Pelo limitado da nossa vida real somos naturalmente levados a criar essa superestrutura de vida que é o mundo dos nossos desejos e aspirações. – Quantas aspirações que não podemos realizar e que muitas vezes convertemos em mito dentro de nós! – O mito… de “explicações do universo e da vida a um primeiro nível”, isto é, o homem, ao encontrar-se no mundo, procura explicá-lo e explicar-se a si mesmo não em termos nem ao nível da razão, mas sim em termos e ao nível da imaginação.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.29.
Versão 2
«Mito é a projecção reactiva num espaço objectivo, de visões fantásticas, de desejos e tendências, de terrores, de explicações do Universo e da vida a um primeiro nível, directo e espontâneo, PROJECÇÃO ESSA QUE O HOMEM REALIZA EM FORMAS SENSÍVEIS, SOBRETUDO HUMANAS.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.II, p.59.
«O mito é a projecção — ou seja, o mito resulta duma actividade da psyquê, quer individual quer colectiva. Uma projecção reactiva, quer dizer: essa actividade da psyquê, individual ou colectiva, não é puramente inventora, criadora ou fabuladora. Essa actividade responde, de certa maneira, à acção do contorno, da circunstância, ou seja, estes “naturais” ou humanos ou históricos; num espaço objectivo, isto é: essa actividade da psyquê tem uma tradução exterior ao sujeito, ou seja, no contexto que estamos analisando, o mito só o é na medida em que se exprime ou em que, de qualquer modo se encarna: na palavra, veículo de comnicação, na narrativa, na imagem plástica, no rito; ... de visões fantásticas ... as visões fantásticas são a primeira grande “matéria” dessa projecção: resultado do trabalho da imaginação, em regime “nocturno”, de um labor por tese e não por antítese, como diz G. Durand, faltou a essas visões a redução de uma instância superior, verificadora e crítica; ... de desejos e tendências ... habitando a larga margem da nossa psyquê, que é o inconsciente ou o subconsciente, esses desejos e tendências vivendo em permanente estado pulsional, e repulsional, de acção e reacção, facilmente se transformam e objectivam em conhecimento; ... de terrores ... os terrores antiquíssimos da condição humana, que habitam o nosso ser profundo e que, de vez em quando, por exemplo nos sonhos, sentimos emergir; ... de explicações do universo e da vida ...: o homem quando se enfrenta com o mundo ou quando se experimenta, na sociedade dos seus semelhantes, como ser vivo e evolutivo, tem, pelo facto de ser um “espírito”, embora encarnado, sempre necessidade de compreender e compreender-se, de dar uma resposta às perguntas que naturalmente formula; ... a um primeiro nível ...: essa resposta do mito é dada não reflexivamente, não criticamente, mas segundo uma extrapolação directa e imediata do “sujeito” na sua “circunstância”; ... projecção essa que o homem realiza em formas sensíveis, sobretudo humanas: indicada até aqui a “matéria” possível do mito, esta última cláusula da definição indica a sua “forma”.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.II, pp.59-60.
A questão da origem do mito
«E donde vem ao homem esta função de criar mitos? Em primeiro lugar, da sua natureza ou essência e em segundo, da sua condição.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.29.
Da natureza do homem
«O homem é um composto de alma e corpo, mas não um composto somatório de “corpo+alma”. O homem não é sequer, como queria a escola platónica e a cartesiana, uma alma habitando um corpo, como habitamos uma casa ou como o marinheiro habita o navio. As duas realidades componentes do homem, corpo e alma, não estão numa relação de continente e conteúdo e vice-versa. O homem, na definição de Malebranche, é essencialmente um espírito encarnado, isto é, uma alma que informa uma certa parcela de matéria e que através dela entende e sente. Assim se explica o facto de natureza psicológica de não possuirmos ideias sem imagens. Uma ideia é forçosamente acompanhada por uma imagem, ou, na inversa, uma imagem está sempre subjacente a uma ideia.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, pp.29-30.
Da condição do homem
«O homem é um ser inserto no mundo e que dele procura levantar-se. Na definição de Heidegger “Dasein ist in der-Welt-Sein”, a essência do homem é ser no mundo, há nele uma relação essencial de inserção ao mundo. Como complemento a essa definição heideggeriana, segundo a qual o homem está inserto no mundo, é preciso acrescentar que, inserto no mundo, o homem procura levantar-se dele. O homem não existe no mundo como a planta ou como o animal totalmente mergulhados nele. Na linguagem heideggeriana, o homem é “ex-sistentia”, é um estar como que erguendo-se. O homem “ex-siste” (existe), emerge ou tenta emergir do mundo.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.30.
«Desta emergência ou “ex-sistência” ou, pelo menos, da tentativa sucede ao homem, ao querer transcender o puro concreto ou imediato, a circunstância mais estreitamente circundante, cair mais além nas coisas, projectar-se ou derramar-se nelas. E quando desta queda, projecção ou derrame, o homem volta ou regressa a si, cria numa primeira consciência directa o mito.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.30.
Traços da antropologia antuniana
«Permitam-me que esquematize, em quatro proposições, a dialéctica da essência e da condição humanas.
1.ª Proposição: O homem é um ser no mundo para o mundo. A função mitificadora do homem cresce na medida da sua extroversão, na natureza “natural”, ou seja, na natureza não domesticada, não dominada pelo homem. Assim o primitivo, homem em quem a função mitificadora é prevalente, derrama-se na sua circunstância com todos os seus desejos e paixões, com toda a “alma”; pelo contrário, a função racionalizadora ou logificadora cresce na medida em que o homem se concentra em si, se introverte, na medida em que ele, pelo domínio da natureza, se desliga do seu contorno, de tal maneira que podemos dizer que o cientista, designadamente o físico ou o matemático, pensa contra a natureza e não segundo a natureza, como ela directa e imediatamente se lhe oferece.
2.ª Proposição: “O homem é um espírito encarnado” (definição célebre dada por Malebranche), ou seja: não uma alma que está em ou habita determinada porção de matéria viva, como o piloto está no navio ou o morador ocupa a casa, mas uma alma que forma e informa um corpo através do qual pensa, quer e sente. Daí a sua dupla função: uma função abstractiva enquanto espírito, uma função imageticamente concretizadora enquanto encarnado. Daí que, subjacente a cada ideia, o nosso pensar habitual seja sempre acompanhado por uma imagem. O mito nasce quando se dá uma absorção da ideia pela imagem, quando a imagem não tem redutores racionais ou, pelo menos, não tem redutores racionais suficientes, como por exemplo, no caso dos loucos, das crianças e dos primitivos seres humanos (acentuemos bem o termo “humanos”) em quem as funções concretizadora e imagética absorvem a função racionalizadora.
3.ª Proposição: O homem é uma síntese de consciente e inconsciente. O mito nasce quando o inconsciente ocupa ou invade o campo do consciente ou, pelo menos, notavelmente o reduz. [...].
4.ª Proposição: O homem é um integral de si e dos outros. O homem nunca é ele só.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.II, pp.57-58.
«Por outras palavras, o mito é a primeira forma da dialéctica entre o homem e a natureza, uma dialéctica de desintegração e reintegração do homem no mundo.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.30.
Georges Gusdorf (1912-2000)
«Se a afirmação primeira do homem o separa do mundo, parece, portanto, que a consciência mítica tenha por função reintegrá-lo no universo. Ex-sistência significa secessão. Mas a consciência mítica opera a reunião dando à realidade um sentido humano. Os mitos desenham uma imagem do mundo em reciprocidade com uma medida primeira do homem.» Georges Gusdorf, Mythe et Métaphysique. Introduction à la Philosophie (1953) (Ed. rev. e aum. Paris: Flammarion, 1984), 66.
Nota: Esta obra, na 1ª edição de 1953, já aparece citada na bibliografia do curso de História da Cultura Clássica, de Manuel Antunes: cf. Antunes, OC, T.I, V.II, P.I, p.15, n.35.
«O mito não se situa fora do real, uma vez que ele se apresenta como uma forma de estabelecimento no real. Ele formula um conjunto de regras precisas para o pensamento e para a acção. Se o observador moderno nele se encontra frequentemente perdido, o indígena, por seu lado, encontra-se nele bem orientado e nele pode evoluir com facilidade, enquanto que, pelo contrário, o novo meio da técnica ocidental é para ele um perpétuo motivo de escândalo.
Longe de ser desrealizante (déréistique), o mito constitui um formulário ou uma estilística do comportamento humano na sua inserção entre as coisas. A filosofia esforça-se por redobrar o mundo. Ela constitui um mundo em ideia. O mito permanece à flor da existência. Ele é por essência um pensamento não desprendido das coisas, ainda meio incarnado. A palavra adere à coisa; o nome não designa apenas, ele é o próprio ser. Assim, o mito não se basta, não se fecha sobre si. Ele é sempre relativo a um contexto existencial, estreitamente apoiado e como que integrado na paisagem que ele tem por função pôr no lugar.» G. Gusdorf, Mythe et Métaphysique, 66-67.
«Parece-nos, portanto, que a filosofia não deve romper com a consciência mítica. O nascimento da reflexão retira-lhe a sua validade dogmática e redu-la a uma soberania constitucional de certa maneira, quer dizer limitada pelo exercício da crítica racional. Tal como em Kant a censura crítica não põe fim à exigência metafísica, assim também a consciência mítica conserva, do lado de lá do jogo do entendimento, um papel fundamental. Ela já não se manifesta sob a forma de mitos propriamente ditos, pois todo o pôr em forma se prova insuficiente e falível. O sentido toma dianteira sobre a imagem, a intenção sobre a expressão. Reduzida assim ao essencial, a consciência mítica intervém como o fulcro (foyer) das formas humanas, o princípio último das nossas afirmações. Ela tende a identificar-se com a consciência dos valores, reguladora do ser no mundo, que se subtrai a toda a tomada directa do pensamento, porque ela orienta todo o pensamento. Se a mitologia é uma primeira metafísica, a metafísica deve ser compreendida como uma mitologia segunda. A intervenção do valor consagra o compromisso (l’engagement) do homem no mundo, a unidade da antropologia e da cosmologia na comum obediência de ambas a um princípio transcendente que define a condição humana.» G. Gusdorf, Mythe et Métaphysique, 337.
«O mito propõe todos os valores, puros e impuros. Não lhe cabe autorizar tudo o que sugere. A nossa época conheceu o horror do desencadeamento dos mitos do poder e da raça, quando o seu fascínio se exercia sem controlo. A sabedoria é um equilíbrio. O mito propõe, mas é a consciência que dispõe. E é talvez porque um racionalismo demasiado estreito se gabava de desprezar os mitos, que estes, permanecendo sem controlo, se tornaram loucos. Tanto quanto o reconhecimento dos mitos não é a rejeição da razão, assim também não é a recusa da moral. Bem pelo contrário: as grandes épocas de civilização definiram sempre sob a forma de um ideal mítico o seu estilo de vida. O guerreiro espartano, o Ateniense polido, o cidadão romano, o cavaleiro medieval, o humanista, o homem honrado (l’honnête homme) apresentavam para um tempo dado o tipo da excelência humana em forma de mito, incarnando os mais altos valores. E mesmo os modelos de toda a sabedoria militante, o génio, o santo, o herói recebem o seu nome de homens reais, mas revestindo o seu personagem de uma perfeição formal que releva mais do mito do que da história. — A mitologia fornece, portanto, um inventário das possibilidades humanas, uma escrita cifrada desenvolvendo todas as intenções implícitas constitutivas do ser no mundo.» G. Gusdorf, Mythe et Métaphysique, 357.
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Donde vem o interesse de Manuel Antunes pelo mito?
2) Quais os conceitos essenciais da definição antuniana de mito?
3) O que é que varia entre as 2 versões da definição antuniana de mito?
4) Os mitos são verdadeiros ou falsos?
5) Qual é a disciplina filosófica que a teoria antuniana do mito obriga a supor?
6) Como tipificar a teoria antuniana do mito?
7) Georges Gusdorf e Manuel Antunes: que afinidades e diferenças entre as duas filosofias do mito?
Aula nº5 (2ª feira: 24/02/25)
1. Mito, filosofia e felicidade: Manuel Antunes e o método da busca da definição.
Cultura, educação e filosofia: a correlação entre cultura e educação; universalismo e situacionismo; as duas asas do homem (ciência e sabedoria); o valor da filosofia, um conceito inspirado nos clássicos.
Cultura, educação e filosofia
Textos reunidos no Tomo I — Theoria: Cultura e Civilização —, Volume I — Cultura Clássica (Estudos) — da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de Arnaldo do Espírito Santo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
E
Textos reunidos no Tomo I — Theoria: Cultura e Civilização —, Volume II — Anexos/Sebentas. Parte II — da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de Arnaldo do Espírito Santo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
E
Textos reunidos no Tomo I — Theoria: Cultura e Civilização —, Volume III — Filosofia da Cultura — da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de Luís Machado de Abreu, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, ²2008.
E
Textos reunidos no Tomo II — Paideia: Educação e Sociedade, da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de José Eduardo Franco, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, ²2008.
Definição de educação
«Por este termo pretende designar-se aqui não o simples processo da didáctica escolar mas, no sentido mais largo, toda a aquisição, transmissão, renovação e criação de ideias, de comportamentos, de formas e de símbolos expressivos. Mais sinteticamente: educação é o reflexo e o projecto de uma cultura. — [...] — Reflexo de uma cultura é-o a educação na medida em que, através do seu canal, se transmite todo um legado adquirido de normas, de valores, de sentimentos, de modos de encarar o mundo e a vida, de hábitos, de costumes. Projecto de uma cultura é-o também a educação na medida em que, no processo transmissivo, se dão, necessariamente, modificações por adaptação, correcção, supressão, invenção. Nas épocas chamadas «estáveis» predomina o momento do reflexo: nas épocas chamadas «críticas» predomina o momento do projecto.» Antunes, OC, T.II, p.153.
Universalidade da educação: como facto, necessidade e dever
«A educação é um facto»: «É um dos factos mais gerais e mais constantes na história do homem. Sem educação, quase se pode dizer, o homem é apenas uma possibilidade. Sem educação, o homem é dos seres mais desmunidos da escala zoológica. Sem educação, ao nível humano, o homem fica reduzido, nos seus gestos e nos seus hábitos, quase ao limite dos animais com os quais possa conviver. [...]. É o meio humano, por mais simples e rudimentar que ele seja, que «eduz» a criança a homem, introjectando-lhe gestos e imagens, ideias e emoções, e impregnando-lhe a existência, sobretudo através da linguagem, de uma atmosfera superior e diferente à da simples animalidade.» Antunes, OC, T.II, pp.170-171.
«A educação é uma necessidade»: «Porque é a expressão no homem do determinismo universal. A necessidade para o homem de converter-se em ser humano é a sua necessidade primeira e última, a sua exigência mais constante e mais premente. A humanidade do homem não surge como um dado, é uma conquista; não se oferece como simples elemento biológico mas exige-se e projecta-se como um constructo.» Antunes, OC, T.II, p.171.
«A educação é um dever»: «Um dever do grupo e um dever do indivíduo, duplo dever derivado do facto universal da educação e da urgência e constância da sua necessidade. O mais imperioso e forte dos deveres, mesmo que esse dever nos acarrete a todos uma opção dolorosa, um certo sacrifício, uma certa morte.» Antunes, OC, T.II, p.171.
Mundialização e situação
«Normalmente, a educação é função do meio em que se vive, do grupo a que se pertence, do vasto englobante que nos integra. [...]. Para o melhor e para o pior, estamos fatalmente ligados à «circunstância» geográfica, étnica, social e histórica em que fomos formados ou nos estamos a formar. Mesmo quando, como no momento presente, se dá uma vasta e profunda internacionalização da cultura, em que as traduções inundam, praticamente, todos os mercados, em que o cinema quase não conhece nem país nem fronteiras, em que a rádio e a televisão podem atravessar os muros divisórios, os mais espessos, em que, em princípio todos se podem dirigir a todos, vá essa internacionalização acompanhada do grande mito do mundialismo político ou dele prescinda, ainda assim a vinculação à «terra e aos mortos» e a aderência ao grupo dos vivos persistem. Esta primeira geração de herdeiros da Terra inteira, que é a nossa, não pode cancelar, em todos e cada um de nós, a presença e a necessidade nem de um pedaço de solo, nem de uma tradição singular nem de uma sociedade particular para, através delas, visar o universal.» Antunes, OC, T.II, pp.181-182.
A trilogia antuniana: formar para imaginar para edificar
«Na verdade, bem consideradas as coisas, o mundo de amanhã — o mundo humano, sobretudo — será muito mais realidade a construir do que esquema a prever. Estão a passar os tempos, antecipados pelo velho Augusto Comte, em que a trilogia fundamental se apresentava formulada no célebre: «saber para prever para poder». A essa trilogia uma outra é chamada a suceder que poderá ser designada: formar para imaginar para edificar. — O significado deste novo conjunto estrutural deve ser pedido ao último termo: edificar. Edificar, no sentido material da palavra, com o entusiasmo, a inventividade e a energia com que o faziam os grandes construtores dos séculos criativos da história, e edificar, no sentido espiritual da fraternidade positiva, da constante disponibilidade a aceitar aquilo que parecer melhor, da vontade de superar os obstáculos maiores que pesem sobre a condição humana: o egoísmo, a vis fruendi, imediata e sem retenção, a recusa do esforço necessário, quer pelo refúgio na concha de um passado à própria medida, quer pela miragem de um futuro mágico e sem consistência, a habituação a esquemas que a vida desertou e a fome de domínio dos outros, de os plasmar segundo as próprias ideias e de os manipular segundo os próprios caprichos. — É na perspectiva desse duplo «edificar» que «formar» e «imaginar» adquirem sentido.» Antunes, OC, T.II, p.118.
«Uma boa dose de cultura»
«O «único necessário» ou, se se quiser, tendo também em conta a «basezinha» animal, o «mais necessário», é viver humanamente, é existir sabendo, realmente sabendo, que se existe e para que se existe. — Ora tal não é hoje possível, facilmente possível, sem uma boa dose de cultura. De cultura assimilada, feita substância da própria substância, alma da própria alma.» Antunes, OC, T.II, p.306.
«Cultura que implica uma certa visão do passado humano e da diversidade das interpretações do mundo e da vida; uma certa simpatia profunda com a permuta de sentimentos, de ideias e de emoções que a literatura exprime e veicula; um certo contacto com as outras artes da duração e com as artes do espaço, umas e outras tão extensa e admiravelmente povoadas de símbolos, de mitos e de alegorias em que o homem foi pondo, em forma plástica ou sonora, a sua experiência milenária; uma certa compreensão das ciências humanas», na identidade e diferença de funções com as «ciências da natureza»; uma certa percepção do fenómeno e da experiência fundamental que é o facto religioso.» Antunes, OC, T.II, pp.306-307.
Valores
«É diante de nós e, sobretudo, em nós, na interpenetração do eu e do mundo, dos objectos e dos acontecimentos, que urge encarnar os valores, que urge «realizar e, realizando, realizar-se». Isto equivale a dizer que a educação não consiste apenas em transmitir cultura mas também — e principalmente — em criar as condições de surgimento de novas formas de cultura.» Antunes, OC, T.II, p.180.
«Justamente porque as coisas mudam depressa e mudarão cada vez mais depressa, é que a educação terá de fundar-se, cada vez mais, sobre aquilo que não muda ou muda pouco, sobre o «eterno no homem»: as suas aspirações à verdade, à justiça, à bondade, à beleza, ao conhecimento; a sua vontade de essencial; o seu desejo de vivência e pervivência; o seu movimento para encontrar o simples, aquém e além do complexo, o sentido do «tempo» para lá do histórico, o Incondicionado para lá da condição. — Isto quer dizer, por outras palavras, que uma verdadeira educação para amanhã não poderá prescindir dos valores.» Antunes, OC, T.II, pp.124-125.
As duas asas do homem
«A ciência, com o alargamento das suas fronteiras ao mundo do humano — história, psicologia, sociologia, linguística — e com a sua exigência de rigor e disciplina no estabelecimento das leis e dos factos, das hipóteses e das teorias, a ciência não só nos habilitará a compreender o mundo de hoje e de amanhã, para melhor nele viver, dado que, cada vez mais, ele se encontrará dominado pelo conhecimento empírico e pelo princípio da verificação experimental, como, naturalmente, contribuirá para «sofrear a vã presteza da imaginação» e para nos ajudar a desconfiar do irracional que existe em nós, em todos nós, e que, no momento e na forma mais inesperados, pode tomar posse do império do nosso psiquismo.» Antunes, OC, T.II, p.156.
«Contrariamente à ideia socrática, não basta conhecer para se ser virtuoso. Se outras provas não houvesse, os horrorosos crimes de que tem sido testemunha este nosso século, armado de aperfeiçoadíssimos instrumentos construídos pela ciência aliada à técnica, bastariam para o demonstrar. Porque a ciência é neutra como neutra é a técnica. Neutra ou a-moral. Tudo depende da inteligência, da vontade ou da liberdade suas utilizadoras.» Antunes, OC, T.II, p.152.
«Sendo assim, educar para amanhã não será tanto formar homens para a ciência e para a tecnologia quanto formar homens que, pela ciência e pela tecnologia e, mais além da ciência e da tecnologia, sejam humanistas, filósofos, moralistas, organizadores e animadores espirituais de um mundo que pode não chegar a saber em que empregar a própria riqueza material como hoje, em parte, já não o sabe.» Antunes, OC, T.II, p.131.
«Torna-se portanto necessário que a ciência seja acompanhada da sabedoria. As duas poderão constituir o magnífico par de asas com que o homem conseguirá erguer-se um pouco acima dos conflitos de toda a ordem que têm ensombrado a sua condição ao longo dos milénios e que hoje, mercê do poder destrutivo conquistado sobre os elementos, correm o risco de tornar-se fatais para a própria subsistência da vida sobre a terra.» Antunes, OC, T.II, p.156.
Q: «Mas onde ir buscar essa sabedoria, mais do que nunca indispensável para se poder sobreviver e para se poder refazer o mundo tornando-o um pouco menos indigno do homem?» Antunes, OC, T.II, pp.156-157.
«É de intencionalidades, de objectivos e de fins, claros e precisos, que o homem de hoje necessita. Pelo menos, tanto como de instrumentos e de meios. Estes é à ciência e à sua aliada natural, a tecnologia, que compete fornecê-los. Aqueles é a sabedoria que tem por missão formulá-los.
Sendo assim, o problema, visto sob o ângulo do ensino a ministrar consiste em descobrir as disciplinas que constituam as fontes da sabedoria. Duas nos surgem como as mais próprias e eficazes: a filosofia e a religião.» Antunes, OC, T.II, p.157.
Porquê? «É que a noção de educação remete, desde logo, para as concepções últimas do Homem, do Mundo e da Vida, para a questão dos fins e dos meios, para a floresta altamente embrenhada das implicações da natureza na cultura e da cultura na natureza, para o universo, mais delicado e embrenhado ainda, das relações entre indivíduo e sociedade, entre estrutura e génese, entre essência e história.» Antunes, OC, T.II, p.172; «Por metafísica — guarde-se ou suprima-se o termo — entendemos a ordem do «ser enquanto ser», a ordem das significações mais gerais do universo e da existência e a ordem dos valores. Uma educação que intente sê-lo, realmente, por mais fundada que ela se encontre na «positividade» das ciências da natureza e mesmo das ciências humanas, não prescindirá da referência a essa ordem ou ordens.» Antunes, OC, T.II, p.123. Tendo em conta que «o estatuto epistemológico da filosofia, apesar das tentativas de alguns dos seus cultores, não é, nunca foi, o de uma verdadeira ciência positiva. O princípio de verificação limitaria arbitrariamente o seu campo e um amplíssimo leque de alunos seus, desde o materialismo ao idealismo, recusam semelhante confinamento.» Antunes, OC, T.II, p.117.
Conceito de filosofia: inspirado pelos clássicos
«A literatura é a expressão mais completa de um povo, sobretudo tratando-se da literatura grega. – A Filosofia, a expressão cultural altíssima, é no seu sentido rigoroso e específico criação grega, criação helénica, que se realiza dos começos do século VI a fins do século IV a.C. com grande esplendor. Este período de três séculos tem um centro: SÓCRATES. No dizer de Heidegger, a Filosofia fala grego.» Antunes, T.I, V.II, P.I, p.536.
Sócrates: filosofia
«Para o pequeno número dos discípulos, Sócrates era o mestre bem-amado que os havia instruído no caminho novo da sophía (sabedoria), um caminho que estava dentro e não fora, um caminho ético e não físico, um caminho individual e não para todos, e daqui se explica que cada um desses discípulos tenha visto o mestre de maneira tão diversa.» Antunes, T.I, V.II, P.I, p. 548.
«Para as idades subsequentes, Sócrates foi e é o segundo pai da Filosofia ou, para melhor dizer, o seu autêntico criador, se definirmos Filosofia como um saber reflexo simultaneamente anterior e posterior às outras formas de saber: anterior porque fundando-se as funda; posterior justamente porque reflexo. E, sem dúvida alguma, Sócrates é esse fundador.» Antunes, T.I, V.II, P.I, p.548.
Platão: filosofia
«Platão aparece-nos como um mundo, um mundo que recapitula e um mundo que inicia: um mundo que recapitula o que de mais significativo fora dito desde Homero a Píndaro, um mundo que recapitula sobretudo as grandes aspirações de Tales a Sócrates; e, por outro lado, um mundo que inicia a reflexão filosófica como aproximação do real em totalidade, como explicação harmónica de Deus, do homem e do universo, como procura de sistematização dos elementos mais diversos e mais opostos dos seres e do ser, dos seres no ser. — Porque tão vasta e tão profundamente recapitulou o que estava dito e iniciou novos caminhos, se compreende a influência exercida por Platão na cultura do Ocidente. Esta fez-se em boa parte em dependência dele: desde a teologia às artes plásticas, desde a filosofia à política, desde a espiritualidade à literatura, o platonismo tem estado presente nestas tão várias e variadas formas de cultura.» Antunes, T.I, V.II, P.I, p.560)
Séneca: sabedoria
«[…] na sua obra manifestará influências estóicas, antes de mais nada, mas também epicúreas, platónicas, cínicas, cépticas, socráticas, pitagóricas e até aristotélicas, de modo que lhe será lícito a ele afirmar com verdade não exaustiva: “Posso disputar com Sócrates, duvidar com Carnéades, tranquilizar-me com Epicuro, vencer a natureza humana com os Estóicos, superá-la com os Cínicos” – aberto a todas as correntes, tanto que certos superficiais historiadores das ideias lhe darão o título, cómodo, de «ecléctico» e, ao mesmo tempo, tão pessoal no gesto e na atitude, frente ao mundo e frente à vida, que ele poderá erguer-se como um grande símbolo, perene, senão da philosophia ao menos da sophia.» Antunes, OC, T.I, V.I, p.193.
«Aconteceu [a trajectória mundana da sua existência] porque este homem espantosamente dotado que esteve mais perto que Platão de poder realizar o velho sonho da República, do Rei-Filósofo ou do Filósofo-Rei, experimentou com outro realismo e sentiu com outra fundura o precário da rerum humanarum condicio. E daí o procurar, nos templa serena da «sabedoria», como dissera o epicúreo Lucrécio, a segurança para a sua radical insegurança, a «consolação» para o mal de existir, a coragem para enfrentar a morte e superar a angústia que a sua sombra projecta no tempo, a serenidade para emergir acima do fluxo das coisas que, tumultuosas ou perturbadas, se vão para sempre ou para nunca mais, a firmeza para aguentar as vagas do temor e da vacilação, a lucidez para discernir, na floresta dos possíveis, um caminho, a liberdade acima da escravidão do mundo e da ignorância da vida, numa palavra a disposição de consentimento geral ao Ser e à Necessidade, à Razão e à Natureza, à Divindade e ao Destino.» Antunes, OC, T.I, V.I, p.193.
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Vivemos uma época estável ou crítica para a educação?
2) A educação é um dever, «mesmo que esse dever nos acarrete a todos uma opção dolorosa, um certo sacrifício, uma certa morte»: porquê?
3) Manuel Antunes: universalista ou situacionista em matéria de educação?
4) Como entender a diferença entre a trilogia comtiana — «saber para prever para poder» — e a trilogia antuniana — «formar para imaginar para edificar»?
5) O que deve incluir a educação para além da ciência?
6) Quais são as partes do conceito de filosofia que Manuel Antunes encontra prefiguradas em Sócrates e Platão?
7) Filosofia e sabedoria: qual delas tem o primado?
Aula nº6 (4ª feira: 26/02/25)
1. Mito, filosofia e felicidade: Manuel Antunes e o método da busca da definição.
Manuel Antunes: «meteorologista cultural» (Manuel Ferreira Patrício) — historiador do passado, sociólogo do presente, profeta do futuro. Tipos humanos: «homem-espuma», «homem-máquina» (homo mechanicus), homem-misericórdia (homo misericors). O «homem todo»: sujeito da filosofia e da felicidade integral.
Dos tipos humanos ao «homem todo»: sujeito da filosofia e da felicidade integral
Textos reunidos no Tomo I — Theoria: Cultura e Civilização —, Volume I — Cultura Clássica (Estudos) — da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de Arnaldo do Espírito Santo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
E
Textos reunidos no Tomo I — Theoria: Cultura e Civilização —, Volume III — Filosofia da Cultura — da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de Luís Machado de Abreu, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, ²2008.
E
Textos reunidos no Tomo II — Paideia: Educação e Sociedade, da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de José Eduardo Franco, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, ²2008.
Manuel Antunes: «meteorologista cultural»
Historiador do passado, sociólogo do presente, profeta do futuro
«O homem-espuma
Ele aí vem. Ligeiro, agitado, caprichoso, vão. Sem densidade e sem espessura. Sem raízes e sem passado. Nasceu hoje.
Produto de uma sociedade sem pai e sem mãe, de uma sociedade espantosamente tumultuária e espantosamente célere no seu curso declivoso, o destino desse homem parece flutuar num momento e num momento sumir-se. Apareceu e desapareceu, embora a sua existência venha a ter mais de oitenta anos. Levado à superfície de um Amazonas vasto como o mundo e precipitado como um rápido, esse destino diverte-se e angustia-se, angustia-se e diverte-se sem saber nem para onde nem para quê. Curarão de o saber aqueles que lhe seguem no encalço? É duvidoso.
O homem-espuma sucede ao homem-máquina, ao homo mechanicus, de que fala Lewis Mumford [autor de: The myth of the machine. New York: Harcourt, Brace & World, 1970]. As características mais negativas deste poderiam ter sido evitadas como podem ainda ser evitadas as características mais negativas daquele. O homem é um animal previsor e é um animal que se lembra.
Quererá ele utilizar esta sua dupla faculdade ou preferirá entregar-se à fatalidade das forças que, pelo próprio desencadeadas sem cura de as dominar e de as orientar no sentido da sua melhor realização?
A palavra foi-lhe dada para ele poder responder.
10 de Agosto de 1971» Antunes, OC, T.II, p.69.
O homem-máquina (homo mechanicus)
«Na sequência dos milénios, o homo mechanicus sucede ao homo faber e ao homo sapiens. É um produto da modernidade. [...].
O homo mechanicus é um conquistador da Natureza. Nenhum Alexandre, nenhum César, nenhum Tamerlão possuiu semelhante império. Nem de longe. Na terra, no ar e no mar, esse império vastíssimo tende a alargar-se a tudo, a transformar tudo, a dominar tudo e absolutamente tudo. O homo mechanicus subiu à Lua, está a sondar o espaço, lançou-se à exploração das profundezas oceânicas, trazendo, orgulhoso, troféus de mil vitórias, sinais de mil mundos desconhecidos, indicadores para a resolução de mil enigmas que os seus antepassados não levantaram ou nem sequer sonharam.
Ao mesmo tempo, ele não cessa de aprofundar as descobertas dos ressortes do seu meio natural e orgânico, caminhando, operatoriamente caminhando, através das suas massas, dos seus volumes, dos seus códigos, como não cessa de ir multiplicando, com eles e sobre eles, os reticulados de estruturas, infra-estruturas e superestruturas que lhe duplicam e complexificam a realidade.
Ao fazê-lo, o homo mechanicus revelou-se, cumulativamente, em relação à Natureza, o homo praedator: o agente da devastação, que passa, quase ciclónico, arrasando com impunidade, assolando sem piedade e destruindo sem necessidade. Até agora. Até ao momento crítico em que a vítima, de tão maltratada, grita, clama, esbraceja. Desnaturalizada, a Natureza torna-se inimiga. Explorada, sem peso nem medida, a Natureza manifesta-se esvaindo-se em certos dos seus recursos que, hoje por hoje, parecem vitais para o Homem. Violada, sem dó nem lembrança, a Natureza revela-se esquiva, arrenegada, dura.
Conquistador da Natureza, o homo mechanicus é também manipulador do seu semelhante. Por um processo análogo àquele com que tem subjugado e explorado a Physis, ele tende a dominar e a tirar dos outros aquilo que os outros podem — ou não podem — dar-lhe: riqueza, poderio, glória, prazer, fama.
Agindo como um tratado de reflexologia em aplicação e em movimento, ele trata os homens como coisas, serializa-os, instrumentaliza-os, usa-os. Usa-os e deita-os fora. Produto acabado da civilização superindustrial da criação e destruição incessantes (Schumpeter [autor de: Capitalism, Socialism and Democracy, 1942), o homo mechanicus dos nossos dias facilmente extrapola das coisas para os homens tendendo a aplicar a estes as normas de comportamento utilizadas ou utilizáveis em relação àquelas. No limite, os homens poderiam ser dirigidos por máquinas de pensar e de governar ...» Antunes, OC, T.II, pp.73,75-76. Publicação original: “Homo Mechanichus e Homo Misericors”, in Antunes, Indicadores de Civilização. Lisboa: Verbo, 1972, pp.273-285. No texto “Educação e Sociedade Industrial”, in Antunes, Educação e Sociedade. Lisboa: Sampedro, 1973, pp.19-32, o autor refere-se explicitamente a Lewis Mumford, em Technique et Civilization (Trad. franc., Paris, 1950): cf. Antunes, OC, T.II, p.168.
O homem-misericórdia (homo misericors)
Definição de misericórdia: «Resumindo, conceptualizando e tematizando pode-se adiantar que misericórdia é, na sua essência, interiorização do outro na subjectividade afectiva e é exteriorização do sujeito, reveladora dessa presença efectiva, em multiplicidade de manifestações. É um in e é um ad — um «em» e um «para» —, duas preposições indissoluvelmente unidas, até à simbiose, através do «vínculo substancial» — ousaríamos leibnizianamente dizer — de uma afectividade desinteressada, investidora do outro, enquanto o respeita na sua própria alteridade de pessoa.» Antunes, OC, T.II, p.86.
Q: «Será possível reconciliar Técnica e Misericórdia? — Deve ser possível.» Antunes, OC, T.II, p.88.
Origem das religiões: «É certo, historicamente certo, que todas as grandes religiões tiveram origem em períodos graves de crise das civilizações em que nasceram. Universais embora, mesmo as portadoras do universalismo mais desprendido de particularismos, essas religiões não puderam prescindir de certos meios para a sua veiculação e transmissão, de certo espaço para o seu acolhimento, de certo tempo para a sua implantação.
Foi assim com o cristianismo e o islamismo, o induísmo e o budismo, o confucionismo e o shintoísmo.
Por outro lado, é certo, analiticamente certo, que todas essas grandes religiões — prescindindo agora da vexata quaestio que consiste em saber se algumas delas são mais filosofias do que propriamente religiões —, por diversas que elas sejam na orientação que as dirige, na visão do mundo a que existem referidas, na estrutura global que as sistematiza e nos meios que as institucionalizam, é certo que todas essas grandes religiões, bem como as raízes de onde algumas delas partiram, têm como núcleo, como inspiração fundamental ou como força de coesão e irradiação, a ideia e o sentimento vividos da misericórdia.
As imagens que a encarnam e a exprimem variam, inquestionavelmente, de uma para outra e até, adentro da mesma religião, os cambiantes são diversos de língua para língua e de mentalidade para mentalidade. A ideia, porém, lá está, animando os corações e polarizando as energias.
Só no passado? É lícito crer que não. Não se resolvem os problemas da modernidade só dentro da modernidade. Não se resolvem os problemas da história, actualmente em devir, só adentro das fronteiras da sua dialéctica própria, diádica, triádica ou poliédrica, segundo os esquemas à venda no mercado abundante e vário. Não raro, o imbróglio presente resolve-se ou, pelo menos, clarifica-se, quer pelo recurso à recuperação intencional de um certo passado humano, quer pela extrapolação da realidade actual num futuro mais ou menos longíncuo ou mais ou menos imaginário, funcionando as duas como elementos de base na criação da utopia necessária.
Por isso, aquém e além da representação e da razão, do saber teórico e da sua objectivação prática, da ciência e da tecnologia, do trabalho e da consciência — crítica ou empírica —, do imperativo categórico e da falha moral, a misericórdia vive. Vive e é de esperar que irrompa. Como nas grandes crises por que passaram as civilizações e os homens.» Antunes, OC, T.II, pp.88-89.
«Sem ciência e sem técnica, a Humanidade não pode subsistir; sem misericórdia, ela não pode subsistir humana. Só as três formam o triângulo geodésico do nosso levantamento. Só as três permitem o começo de uma história que não seja o erguer de cúmulos sem destinação, de órgãos sem função e de jogos que apenas na acção competitiva ou destrutiva parecem encontrar justificação e alcance.
Misericordia matrix — misericordia liberatrix. Nestas duas belas expressões latinas, que ousamos aplicar àquele que é o mais divino dos sentimentos humanos, pode encerrar-se toda uma visão do mundo, toda uma filosofia da vida e da história, toda uma praxis política, toda uma conduta individual ou de grupo. A técnica faz a história, mas só a misericórdia lhe confere sentido.» Antunes, OC, T.II, p.168.
Filosofia
«Filosofia não é sensibilidade geral de uma época ou peculiar de um povo. Porque esta, num e noutro caso, existe como clima difuso ou na ordem directa do conhecimento. Poderá portanto originar motivos ou fornecer temas para o filosofar, poderá envolver tal filosofia de particular tonalidade afectiva ou outra, mas não é ela própria filosofia.
Filosofia não é visão do mundo (Weltanschauung). Esta pode, como tal, ser dada pela religião, pode existir no plano do conhecimento não consciencializado, pode implicar um agir imediato que a filosofia ou supõe, antes, ou justifica, depois. Mas filosofia, em si, e visão do mundo, em si, não são plenamente idênticas nem sequer identificáveis.
Filosofia não é história da filosofia. Nem no sentido enumerativo, erudito, nem no sentido hegeliano. No primeiro sentido, não, porque se torna evidente que investigar o que outros disseram e as condições em que o disseram é trabalho — útil e até necessário — de historiador mas não ofício de filósofo. (Uma vez mais não se confundam os géneros). No segundo caso, também não, porque a identificação que o autor da Fenomenologia do Espírito faz da Filosofia com a História da Filosofia supõe o seu próprio sistema a partir do desenvolvimento da «Ideia». Ora esse sistema está longe de poder responder às ambições que o seu criador nele depositou.
Posto isto, voltamos a perguntar: Que é filosofia? Mas, ao tentarmos responder, não nos parece lícito eliminar, em proveito de umas, outras partes, notáveis, das histórias da filosofia — monumentais ou manuais —, embora em certos casos desejássemos mais criteriosa ordenação.
Que queremos significar com isto? Com isto, queremos apenas significar que se torna necessário distinguir entre verdadeira filosofia e filosofia verdadeira, entre a essência da filosofia e a exactidão e amplitude com que tal filosofia traduziu e interpretou o real, o objecto da filosofia. Buscamos pois uma definição que possa abranger tanto as filosofias do espírito como as filosofias da existência, tanto as filosofias do ser como as filosofias do devir, tanto as filosofias da intuição como as filosofias da razão.
Filosofia é saber. Um saber geral e gerante; um saber universal e universalizante; um saber que se formula, actu, — ou seja formulável — numa certa ordem coerente de sistema ou, ao menos, de temas maiores (imagem arquitectónica ou musical); um saber reflexo, simultaneamente anterior e posterior às outras formas de saber: anterior porque, fundando-se, as funda; posterior, em parte certamente, porque reflexo.» Antunes, OC, T.I, V.III, pp.40-41. Publicação original: “Haverá filosofias nacionais?”, in Antunes, Do Espírito e do Tempo. Lisboa: Ática, 1960, pp.125-146.
«O homem todo»
«O homem todo: da matriz ao túmulo e em todas as dimensões da sua personalidade realmente humana desde o físico ao mental e englobando o afectivo, o profissional (ou técnico), o científico, o estético, o moral e o religioso. O homem todo é aquele a quem assiste a capacidade de se relacionar com o todo, o único ser da natureza dotado de tal capacidade. O homem todo é um ser a quem foi aberta a possibilidade de apreender o todo, de visar o todo, de «intencionar» o todo, de «sentir o todo», de ter horizontes tão largos como o próprio Universo e tão profundos como o próprio Infinito.» Antunes, OC, T.II, pp.110-111. Publicação original: Antunes, “A educação permanente: teoria e prática”, Brotéria 103, 1976, 377-387.
Felicidade
«Na realidade, no estado presente da consciência e da filosofia éticas podem distinguir-se principalmente os seguintes tipos de Eudemonismo: Eudemonismo sensível, sinónimo de hedonismo, e Eudemonismo intelectual, que põe a felicidade no conhecimento racional; Eudemonismo individual, que busca, primária ou exclusivamente, a felicidade do indivíduo, e Eudemonismo social, que busca, antes de mais, a felicidade colectiva; Eudemonismo natural, que põe o sumo bem na natureza, e Eudemonismo sobrenatural, que põe o sumo bem nos dons da graça e no Autor desses dons; Eudemonismo estético, que coloca a felicidade na contemplação da beleza, e Eudemonismo ético, que a situa no cumprimento do dever e da virtude; Eudemonismo parcial, que se fixa em qualquer destes aspectos com exclusão de outros, e Eudemonismo integral, que os admite a todos estabelecendo entre eles uma certa hierarquia.
É este último que se intenta defender aqui. O conflito que Kant pretendeu estabelecer, mesmo bastante antes de usar o termo «Eudemonismo», entre a moral do dever e a moral da felicidade, é um pseudoconflito. Com efeito, ou o termo «felicidade» se toma em sentido exclusivamente utilitarista ou hedonista, e então Kant não faz mais que condenar aquilo que grande parte da filosofia grega – pitagorismo, platonismo, aristotelismo, estoicismo –, a Revelação bíblica, a tradição cristã – patrística, medieval e moderna – e a filosofia pós-renascentista, na sua maioria, tinham condenado, ou o termo «felicidade» se toma no sentido de perfeição da natureza racional do homem, das suas dimensões sociais e das suas aspirações a uma plenitude que ela não possui, e, nessa hipótese, não se vê como a tendência para a felicidade seja inconciliável com uma verdadeira atitude ética por parte do mesmo homem. Dever e beatitude, desinteresse e perfeição, inteligência e amor, transcendência e imanência, não se excluem nem se opõem. Por isso, só o Eudemonismo é racional; só o Eudemonismo se encontra de acordo com os dados da Revelação bíblica, do Antigo e do Novo Testamento, que está longe tanto da moral egoísta como da moral da facilidade. É significativo, por isso mesmo, que o Antigo Testamento utilize umas cem expressões para designar «felicidade» e que o Novo Testamento use não menos de cinquenta, a começar pelas «bem-aventuranças» do Sermão da Montanha.» Antunes, OC, T.I, V.I, pp.94-95.
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Pode o homem-espuma ser feliz?
2) Pode o homem-máquina ser filósofo?
3) É possível encontrar um sinónimo para o homem-misericórdia?
4) Que sentido tem a metáfora antuniana «o triângulo geodésico do nosso levantamento»?
5) Quais são os conceitos essenciais da definição antuniana de filosofia?
6) Quais são os filósofos clássicos que antecipam esses conceitos para Manuel Antunes?
7) Em que consiste o conceito antuniano de eudemonismo integral?
2ª feira: 3/03/25) — Carnaval
4ª feira: 5/03/25) — Carnaval
Aula nº7 (2ª feira: 10/03/25)
2. O primado da ontologia: Joaquim Cerqueira Gonçalves.
Da filosofia da cultura à ontologia: o sentido da filosofia; a culturalidade da razão e da acção; o binómio natureza/cultura; o «solo ontológico», o «húmus ontológico»; a experiência irrecusável do ser, que importa clarificar; a cultura como um processo de unificação, diferenciação e universalização.
Joaquim Cerqueira Gonçalves (n. 1930)
Itinerâncias da Escrita. Vol. I. Lisboa: INCM, 2011.
“Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, pp.31-43.
“Ser, Natureza e História. A exortação medieval à manifestação” (2000), Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, pp.79-88.
“Cristianismo e Cultura”(2001), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, pp.127-131.
“Verdade e Infalibilidade Teológica” (2004), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem. Lisboa: INCM, 2011, pp.150-198.
“A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, pp.132-149.
“Medievalidade. Crise ou hiato?” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, pp.70-78.
Da filosofia da cultura à ontologia
Filosofia
«Se é certo que, ao contrário do que habitualmente se pensa, a racionalidade científica pode ser vista no seguimento lógico da racionalidade filosófica ocidental, tem de reconhecer-se que pela filosofia tem passado a principal missão de desconstruir, hermeneuticamente, a ciência e a cultura.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.134.
Culturalidade da razão
«A razão humana não é um espaço puro e asséptico, mas revela-se na construção cultural, mesmo que a fonte desta, insista-se, não seja de índole simplesmente cultural, mas ontológica.» J. Cerqueira Gonçalves, “Verdade e Infalibilidade Teológica” (2004), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem. Lisboa: INCM, 2011, p.168.
Culturalidade da acção e liberdade
«Com efeito, não cabendo a acção humana dentro dos padrões de uma natureza concebida nos quadros de um exercício uniforme e definitivamente orientado, o recurso à instância da cultura impõe-se de modo irrecusável, tornando-se a passagem pelos moldes da cultura ainda mais imperiosa do que a sujeição às regularidades naturais. O paradoxo refina-se, quando se procura, por vezes dramaticamente, mas sempre em experiência de manifesta actividade cultural, a naturalização da cultura. Afinal, a consciência e a impressão do estatuto de ser cultural, em que se enraíza a própria ideia de liberdade, é que tem feito da existência humana uma exalação de angústia, precisamente a injunção de ser livre, de o homem ser obrigado a construir a sua própria vida, de assumir a responsabilidade, de poder ser diferente do que é, de ser terreno de infinitas possibilidades, de errar e se aniquilar.» Idem, “Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.32.
Culturalidade das religiões
«As religiões, ainda as que são consideradas de teor naturalista, são indeclináveis e significativas expressões culturais, assumindo quase sempre funções salvíficas. Nesse contexto, os valores exercidos pelas religiões confundem-se, muitas vezes, com o próprio alcance redentor, por assim dizer, laico que se atribui à cultura.» Idem, “Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.34.
«Quando se interpreta a religião como um recurso para superar a finitude, o mal, a culpa ou a morte, tal significa que lhe são atribuídas funções culturais ou, pelo menos, finalidades que a cultura a si mesma propõe.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.149.
«Concedendo que tudo, no mundo, passa pelas formas culturais, daí não pode ser concluído que estas sejam originárias e terminais. Por isso mesmo, os elementos que as compõem, em vez de constituírem estruturas fundadoras, susceptíveis de serem estudadas cientificamente, são, antes, vectores dinamizadores do movimento dessas mesmas culturas, num constante processo hermenêutico, de chegar à origem e ao termo delas.» Idem, “Medievalidade. Crise ou hiato?” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.73.
Cultura / Natureza
«Desta complexa e enigmática vivência da cultura é possível sintetizar algumas das tendências marcantes que a têm acompanhado: a cultura é vitória sobre a natureza, enquanto realidade imperfeita ou mesmo adversa e má, procurando a libertação dela, pela irradiação da racionalidade sobre o seu suposto caos; em sentido oposto, a cultura confunde-se com o mal, em contraste com a bondade da natureza, a que é forçoso regressar, passando embora pelos artificiais trilhos da cultura.» Idem, “Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.32.
«A lógica da nossa reflexão impede-nos de partir do binómio natureza/cultura, por o não considerarmos radical, substituindo-o pela unidade do ser, de que as naturezas e as culturas são expressões.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.146.
Acesso ao ser, em vez de regresso à natureza
«Movimentamo-nos, contudo, sobre um enorme equívoco, já porque nada há que seja apenas natural ou puramente cultural, já porque o ancoradouro tem de ser mais radical do que o solo da natureza. Não há que empreender um regresso à natureza, mas, sim, um acesso ao ser, não com intenções de refúgio, mas de manifestação e desenvolvimento.» Idem, “Ser, Natureza e História. A exortação medieval à manifestação” (2000), Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, pp.83-84.
«Húmus ontológico»
«Todas as categorias, que vimos analisando, são, assim, reformuladas, na sua inserção no húmus ontológico, desde as noções de natureza, de cultura, de revelação, de criação e mesmo de redenção.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.144.
«Solo ontológico»
«Até este momento, temos dirigido o pensar para as múltiplas possibilidades de interpretação, abertas pelo texto bíblico, bem como para as condições de possibilidade dele, designadamente as de ordem cultural, conscientes, porém, de que as formas da cultura nunca constituem ponto de partida radical, onde se possa procurar a determinante derradeira. Fomos, por isso, orientados para o solo ontológico, fora do qual nada pode ser pensado, já que ele representa a possibilidade de todas as possibilidades. É neste sentido que os escolásticos consideravam o ser como objecto primeiro do pensamento. Todas as modalidades de manifestação – o necessário, o possível e o real – só podem ser vistas no horizonte do ser.» “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.140.
Uma experiência irrecusável
«Tratando-se, porém, de uma experiência tão irrecusável, a rejeição, quase sistemática e contundente, de uma ontologia, na especulação ocidental, sobretudo a partir da modernidade, atinge as raias do paradoxo. É verdade que se nega mais a validade de um saber sobre tal experiência do que propriamente a irrecusabilidade desta, que, de certo modo, foi tematizada desde Parménides.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.141.
Que importa clarificar
«Mas se, fora da luz do ser, nada pode ser entendido pelos humanos, ainda a vida destes, torna-se imperioso clarificar, minimamente, para dar consistência ao exercício do conhecer e do pensar, a nossa experiência do ser, que, para além de constituir a condição de todo entendimento, é um dado irrecusável da experiência humana.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, pp.140-141.
«É necessário uma aprendizagem»
«Por outro lado, as irrecusabilidades podem existir, sem que haja consciência delas, já por excederem a própria consciência, já porque entre elas e esta se interpõem muitos factores que impedem de serem vistas. Tanto para a experiência do irrecusável como para a consciência dela, é necessário uma aprendizagem, quer da vida, quer da mente, de que se ocupa, em larga medida, a actividade filosófica.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.141.
Formas de afirmação do ser
«Toda a nossa actividade, no consentimento, na revolta ou no desespero, é sempre uma afirmação do ser, fonte de todas as formas em que se exprime.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.141.
Actividade de manifestação
«Ora, se tentarmos descrever a experiência do ser, ela aparece-nos, também irrecusavelmente, como uma actividade de manifestação, na qual participamos nós e todos os outros entes.» Idem, “A Bíblia e a Cultura” (2005), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.141.
A cultura: um processo de unificação, diferenciação e universalização
«Não deve, contudo, perder-se de vista as estruturas fundamentais de cultura, ainda que de difíceis contornos definidores, pela multiplicidade de elementos que a integram. Por isso, mesmo sem se nutrir pruridos de uma rigorosa definição, que requereria um plano unívoco, difícil de apurar em instância tão complexa, consideramos cultura a actividade – tal como o resultado dela –, pela qual se elabora um mundo, isto é, uma totalidade organizada, o mais una, diferenciada e universal possível. É nela que se organiza o sentido da vida humana e de toda a realidade.» Idem, “Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.36.
«Mais ainda, a construção cultural do mundo é feita com determinação, com o sentido de perenidade, em demanda de uma obra com intuitos de permanência, sem que deste processo, todavia, se possa concluir que o mundo não sofra modificações, pedidas pela dinâmica de unificação, de diferenciação e de universalização. É por isso que, sem se esquecer a importância do resultado, o mundo constituído, seria bom insistir no movimento de mundanização, em constante abertura, na intencionalidade de uma realização cada vez mais conseguida.» Idem, “Temporalidade, Religião, Teologia e Cultura. Perspectivas filosóficas” (1996), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.36.
«Sendo a noção de cultura enormemente polissémica, entra, todavia, sempre, no âmago da sua tarefa, a construção de uma unidade orgânica de valores, que designamos, geralmente, por mundo. Se bem se trate de uma dinâmica axiológica, aliás de enraizamento ontológico, propendendo para uma plenitude de realização, que passa por um processo concomitante de unificação, universalização e diferenciação, a cultura, além de ser constitutivamente manifestação plural – não há cultura, mas, sim, culturas –, tende, ainda, a formalizar-se, fechando-se circularmente, no seu próprio sistema.» Idem, “Cristianismo e Cultura”(2001), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem, p.129.
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Qual é a função da filosofia?
2) Podemos considerar J. Cerqueira Gonçalves como um filósofo da cultura?
3) Como pensa J. Cerqueira Gonçalves o binómio natureza/cultura?
4) Que sentido têm as metáforas térreas «húmus ontológico» e «solo ontológico»?
5) Qual é a função da ontologia?
6) Que significa o conceito cerqueiriano de mundo?
7) Qual é o processo que caracteriza o «movimento de mundanização»?
Aula nº8 (4ª feira: 12/03/25)
2. O primado da ontologia: Joaquim Cerqueira Gonçalves, Em Louvor da Vida e da Morte. Ambiente — A Cultura Ocidental em Questão (1998). O sentido holístico da vida da terra, a rejeição dos dualismos e a determinação do ser humano como faber. O regresso ao ser: a ontologia. A experiência ontológica: a acção. Vectores do ser: unificação, universalização e diferenciação. Morte, acção e vida.
Joaquim Cerqueira Gonçalves (n. 1930)
Em Louvor da Vida e da Morte. Ambiente — A Cultura Ocidental em Questão. Lisboa: Edições Colibri, 1998.
Texto republicado: in Itinerâncias da Escrita. Vol. III. Lisboa: INCM, 2014, pp.253-315.
Da ontologia
Terra, humanidade e culpa
«A vida da terra é uma obra de arte, uma sinfonia, onde colaboram múltiplos autores e actores: a natureza — que, frequente e indevidamente, é oposta ao engenho da arte —, a humanidade — a quem costuma atribuir-se, também indevidamente, a exclusiva autoria da obra —, o tempo, cujas múltiplas interpretações tendem a escamotear o seu poder criador. Hoje, continuamos a topografia que ontem foi possível dar ao mundo; para o mapa de amanhã, não serão indiferentes nem o nosso engenho nem as nossas negligências.
De entre os ideais propostos à realização da vida humana, a construção do universo, praticamente nunca figurou. Considerou-se, quase sempre, que ou excedia a nossa capacidade ou que deveria ser suplantado por mais nobres projectos. Só depois da prova da destruição da terra, em que a responsabilidade humana se mostrou indeclinável, é que o cuidado com o mundo entrou no rol das nossas tarefas, aliás prioritário e constitutivo.
Essa tarefa agravou-se, entretanto, devido ao complexo de culpa que passou a acompanhá-la. Se eram já múltiplas as desequilibradas atitudes do ser humano perante o universo, a culpa, decorrente de uma interferência incorrecta, não representa um estigma de somenos importância, a merecer inequívoca extirpação.» Idem, op.cit., p.12.
Artificialidade dos dualismos
«Aí [nas comunidades rurais], tudo é miscível, não há patamares incomunicáveis, sendo mesmo difícil a destrinça entre o vivo e o não vivo. O solo fértil para os dualismos encontra-se, antes, nos meios científicos e escolares, onde prepondera o que se toma por originário, a dualidade sujeito-objecto, um dos principais sustentáculos dos dualismos, senão mesmo a origem da maior parte deles. Nesse contexto, a terra é transformada, relativamente ao ser humano, em objecto, separando-se dele, por um lado, e tornando-se possível instrumento seu, por outro. O exercício do saber, de um certo saber, desmesurando o papel do ser humano, retirou ao resto da realidade essa capacidade de não se deixar converter em objecto.
O movimento da realidade não obedece, porém, ao ritmo binário de opostos. Ele é, antes, um processo unitário e global, em que terra, ou mesmo o universo, e o ser humano não aparecem, cada um de per si, como elementos primitivos, em ordem a uma composição, mas se inserem no exercício, também ele unitário, de construção do mundo.» Idem, op.cit., pp.30-31.
O ser humano é faber
«O ser humano é faber, antes de tudo, na sua actividade de construção do mundo, nessa organização axiológica da realidade, mais compatível com o estilo do trabalho artesanal e artístico do que com as funções socialmente atribuídas ao artífice pela cultura ocidental. Se este, definido como o “trabalhador” por antonomásia — o homo laborans —, é posto ao serviço da humanidade, pode dizer-se que o artesão e o artista são, antes, colaboradores da realidade, não apenas a de expressão humana, e tomam em consideração a natureza intrínseca da matéria que plasmam, procurando levá-la ao máximo expoente temporal do seu esplendor. O homo laborans, que poderia preservar esse sentido englobante de acção, representa, hoje, a desfiguração mais requintada tanto do homo sapiens como do homo faber, polarizando-se, nele, os deletérios dualismos da nossa cultura, particularmente o de luta, referida não somente à terra mas também aos outros homens, distribuídos em classes antagónicas. Também a situação ambiental não está dissociada deste contexto. Verdadeiramente, não podem identificar-se a técnica que está ao serviço do homem, de alcance regional e pragmatista, e a que disfruta de um horizonte mais vasto, participando no desenvolvimento da realidade e atendendo à fundamental intencionalidade desta.» Idem, op.cit., p.35.
O regresso ao ser: a ontologia
«Perante a ciência e a técnica, nas quais muitos vêem, indevidamente, as principais causas da devastação ambiental, preconizámos, em exercício de aprofundamento da etiologia, o regresso à cultura, mas esta, por sua vez, não obstante a sua essencial mediação, não representa o derradeiro elo de enraizamento do real, como aliás a palavra de ordem, regresso à natureza, ainda que por motivos pouco consistentes, o indicia.
Será, então, necessário mudar de rumo, melhor dito, de nível, já que nem a cultura nem a natureza, esta por motivos que vamos agora justificar, se mostram capazes de ser possíveis radicais pontos de partida. Proporemos, desde já, como palavra de ordem, o regresso ao ser, conscientes embora das relutâncias que esta expressão incita nos meios cultos ocidentais, que quase sempre promoveram uma luta cruzadística contra a ontologia, no âmbito da qual o ser é tematizado. Também a este foro epistemológico têm de chegar profundas transformações culturais. Segundo esta posição desfavorável à ontologia, devem pertencer à ciência todas as prioridades, pois só nela será possível encontrar consistentes certezas, gerais unanimidades e indiscutíveis eficácias. A ontologia seria mesmo sinónimo de estéril imobilidade, em directa antítese com a ideia de transformação, a qual não teria estatuto no seu recinto, mas apenas no da ciência. Para lá das discussões filosóficas e epistemológicas que tal questão tem suscitado, é desde já pertinente extrair da contenda algumas ilações, sendo uma delas de efeito imediato para a presente reflexão: a omnipotente ciência, que pretende substituir todas as expressões do saber, muito especialmente o da ontologia, mesmo que não seja considerada causa exclusiva e até principal, da deterioração ambiental, não conseguiu evitá-la.
O labéu de imobilidade lançado sobre a ontologia merece também um esclarecimento. O que está em causa, nessa questão, é a noção de transformação; polarizada, no agir, segundo a interpretação dos que remetem para a ontologia; geralmente confundida com o fazer, pelos cientistas e pelos técnicos.
O regresso ao ser não significa ver a realidade cristalizada nas suas manifestações naturais originárias, considerando-as, por essa razão, definitivas, nem numa concretização histórica privilegiada, como se esta fosse, pela sua perfeição, a última, com direito a perpetuar-se indefinidamente. O solo do ser é, por um lado, uma instância una e fontal, que se vai determinando, sem se confundir com nenhuma das suas manifestações, naturais ou artificiais, e sem nunca nelas se esgotar, mostrando-se sempre disponível para ulteriores expressões.
A grande dificuldade da ontologia, além de ter de suportar arraigados preconceitos epistemológicos, que pretendem sujeitá-la ao modelo cientifista, reside no facto de ter de acompanhar, participando no seu desenvolvimento, a vida do ser, que se exprime por determinações, mas sem se imobilizar em nenhuma destas. A ontologia aponta mais para novas possibilidades do que para as concretizações já consumadas, embora sem delas se dissociar, até porque condicionam a eclosão das referidas possibilidades. É uma experiência complexa que tende facilmente para algumas derrapantes perversões, sobretudo a de fixação de algumas concretizações naturais ou históricas, congelando nelas as infinitas virtualidades fontais.» Idem, op.cit., pp.41-42.
A experiência ontológica: a acção
«A experiência da acção, além de ser irrecusável — até os temperamentos mais cépticos sentem a sua incontornável resistência —, conduz-nos, pelo seu próprio exercício, também ele fonte de racionalidade, a uma diferente visão do real que, contraposta à mundividência subjacente à natureza, à essência e aos géneros-espécies, designamos de instância do ser. [...].
Para emblemar os contornos duma necessária alteração, o mote já foi dado: regressemos ao ser. [...].
Tratando-se, embora, no exercício da acção, de uma experiência eminentemente complexa, porque de uma riqueza inesgotável, é, no entanto, possível realçar alguns traços característicos dela: é a experiência fundamental do ser humano, sem, todavia, se confinar ao foro da antropologia; o que confere, aí, valor ao humano é o ser, não a natureza, pelo que, justamente, o humano aflora como expressão, se se quer, adjectiva, do ser — o ser humano; é um exercício de manifestação, de desenvolvimento, de afirmação do valor da realidade, que solicita ao seu fundamental protagonista, o ser humano, uma atitude de fidelidade a esse ímpeto de ser, e não apenas ao restrito perímetro da natureza humana; sendo uma experiência de irrecusável unidade, encerra também uma dinâmica de diferenciação ou, por outras palavras, é uma dinâmica de unificação diferenciante; partindo das manifestações já dadas, tende para novas expressões, que reformulam as anteriores, outorgando-lhes, em princípio, maior densidade e sentido; é, a partir de tal experiência radical, que os diversos seres entram em relação, a qual lhes é constitutiva, possibilitando ao ser humano referir-se, ontologicamente, aos outros; porque se está perante uma instância de alcance ontológico, não apenas nem sobretudo antropológico, os outros entes, humanos ou não, não serão um alter ego do pólo humano, mas, antes, manifestações diferenciadas e diferenciantes do mesmo ser, em que todos participam; neste sentido, tudo o que represente possessiva sobreposição do humano converte-se em anquilosante bloqueamento, pela petrificação do ser na sua expressão humana, a qual, aliás, se cristaliza também, ao enredar-se circular e egocentricamente em si, cortando com a respectiva fonte de nutrição, o ser, que é também o horizonte de todo o movimento; trata-se de uma experiência de temporalidade, em que cada fase supõe recíproca e activamente as outras, já que todas fazem parte do mesmo processo; é também, concomitantemente, uma experiência de singularização, na medida em que o ser se manifesta nessa diversidade singularizante, sem que perca, por isso, o seu poder de comunicação, visto tudo se encontrar, em indissociável reciprocidade, no mesmo solo ontológico.» Idem, op.cit., pp.57-58.
Vectores do ser: unificação, universalização e diferenciação
«Quer o estatuto da natureza, da cultura e dos géneros-espécies, quer o esquema de ser-no-mundo, agora referido, constituem planos derivados, destituídos de radicalidade, para desempenhar funções de fundamentação, não obstante as terem frequentemente assumido. Tanto o movimento da natureza e a ordenação em géneros-espécies, como a vida da cultura e a dinâmica de ser-no-mundo são, afinal, expressões, aliás não exclusivas, da própria energia ontológica. É, por isso, que os vectores atribuídos ao processo de elaboração do mundo — unificação, universalização e diferenciação — facilmente reenviam, em termos históricos, para a radical especulação dos transcendentais — unidade, verdade e bondade —, mediante a qual a tradição tocou, privilegiadamente, terreno ontológico.» Idem, op.cit., p.59.
«O movimento ontológico atinge, simultaneamente, a totalidade e as diferenças, realizando-se numa diversificada unidade, em que prepondera a cooperação, e não a cruel e insanável luta de sobrevivência de uns, a expensas do sacrifício ou mesmo extermínio dos outros. Tal desenvolvimento tende a ser constantemente renovado e jamais concluído, não suportando a entropia da repetição, como se de algo imutável e definitivo — ou degradado — se tratasse. Por outro lado, o processo de diferenciação vai determinar-se, primeiramente, não em naturezas ou espécies, mas em singularidades, que são universalidades concretas, a partir das quais é possível falar das universalidades regionais, como a das naturezas, a das espécies e a dos mundos. Desapareceria, desse modo, um dos grandes temas da especulação ocidental, que pergunta, desde a sua formulação grega, pela razão dos indivíduos, visto admitir que a noção de espécie os precede.» Idem, op.cit., p.59.
Morte, acção e vida
«A morte, a integrar-se na instância ontológica, deve encontrar aí sentidos compatíveis com esse radical plano, entrando no processo de participação, com especial conexão com a dinâmica diferenciante do ser. Em contraste com a vitória da unificação e da universalização que tem marcado, na tradição ocidental, o sentido da morte, anulando com ela as diferenças, dir-se-ia que o fenómeno da morte, sem eclipsar os vectores de unificação e de universalização, exprime, sobretudo, a dinâmica de diferenciação. É nestes parâmetros que ela pode ser estabelecida em terreno ontológico. A morte traduziria, assim, a ontológica capacidade de inesgotável expressão ontológica que, numa terminologia sem dúvida eivada de antropomorfismo, embora já assumida pela própria ontologia, designaríamos de generosidade do ser. Este não é aniquilado pela morte, mas pode ser determinado por ela, embora não necessariamente, sendo possível admitir um ser perfeito diferenciado e imortal. A morte, tantas vezes aproximada do tópico de uma paralisante entropia, em vez de retirar ao ser a sua elástica versatilidade diferenciadora, entraria, pelo contrário, na dinâmica desta. As diferenças, por seu turno, não pulverizam o ser em infinitas unidades discretas. A morte não é caminho de solidão, representando, antes, processo de universalizante unificação, concretizando os fundamentais vectores de transcendentalidade do ser.
A acção, a nossa constante referência, fonte de generosa iniciativa, representa uma experiência de consentimento com a manifestação do ser, assumida por cada singularidade, que transmite graciosamente a sua vida às outras singularidades. A vida, nesse contexto, não é um objecto que avaramente se proteja da ave de rapina da morte, ao contrário do que se pretende artisticamente figurar nos nossos cemitérios.» Idem, op.cit., p.82.
«Registe-se ainda uma acrescida dificuldade ao acolhimento da ideia de morte, entendida como generosa irradiação transformante, apurada à luz do horizonte ontológico. [...]. Somente a experiência da protagonização da acção poderá lançar alguma luz sobre esse inesgotável e inobjectivável processo, concomitante de singularização e de universalização, dando-nos a medida tanto da nossa irredutível singularidade como da nossa posição no universo ontológico.» Idem, op.cit., p.83.
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Pensador anti-dualista, qual é o dualismo que Cerqueira Gonçalves visa superar?
2) Como se distinguem entre si o homo faber do homo laborans?
3) Que significa a expressão «ser humano»?
4) Qual é a posição de Cerqueira Gonçalves sobre a questão da individuação?
5) Qual é a experiência fundamental do ser para o ser humano?
6) Que significa a identificação dos vectores do ser — unificação, universalização e diferenciação — com os da cultura (aula passada)?
7) Como entender ontologicamente a morte?
8) Como caracterizar, em traços largos, a ontologia cerqueiriana? É uma superação dos dualismos — cultura/natureza; vida/morte — no plano mais primitivo do ser, que não é estático, mas é um processo transformante de unificação, universalização e diferenciação.
Aula nº9 (2ª feira: 17/03/25)
2. O primado da ontologia: José Barata-Moura.
Da recusa do idealismo à ontologia. Distinção entre objectualidade e objectividade. O materialismo de Marx. Como aceder à materialidade do real? O complicómetro: o imperativo da dialéctica. Actividade revolucionária e revolucionamento. Um materialismo materialisticamente dialéctico.
José Adriano Barata-Moura (n.1948)
“A Objectividade como Categoria Filosófica. Subsídios para uma caracterização.” Philosophica. Lisboa: Edições Colibri e Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), 1 (1993): 13-30.
“Traços do pensar filosófico.” Philosophica. Lisboa: Departamento de Filosofia e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 45 (2015): 7-19.
As Teses das «Teses». Para um exercício de leitura. Lisboa: Editorial «Avante!», 2018.
A obra As Teses das «Teses». Para um exercício de leitura (2018) é, como indica o título, um exercício de leitura dos textos de Karl Marx, Teses sobre Feuerbach, o manuscrito de 1845 e o texto publicado por Engels em 1888, ao qual cabe por isso a co-autoria de Marx-Engels. José Barata-Moura lê os textos, desde logo, traduzindo-os em português, nossa língua materna, explicitando as opções de tradução, ao mesmo tempo que disponibilizando na língua original, o alemão, todos os textos traduzidos; depois comenta os textos em contexto, isto é, em relação com as posições filosóficas que eles visaram criticamente, desde logo as de Feuerbach, e em relação com as demais leituras que fazem parte da posteridade histórica dos mesmos textos. É, por entre estes múltiplos relacionamentos, que vemos surgir as fundamentais tomadas de posição filosófica, as Teses das «Teses», do filósofo-leitor.
São posições filosóficas fundamentais de Barata-Moura: a convicção materialista em detrimento do idealismo e a escolha da dialéctica em detrimento da metafísica. Estas posições são orientações de fundo do seu pensamento, que há muito se forjam e consolidam no percurso das suas obras, vindo a obter confirmação e apurada aclaração nesta obra, As Teses das «Teses». Ambas as orientações de fundo são tomadas no terreno da ontologia.
Da recusa do idealismo à ontologia
A recusa do idealismo
«Por um lado, a verdade não tem a residência fixa num «Além» celestial. Está domiciliada no «aquém».
Por outro lado, o verdadeiro não mora no bairro «da consciência» apenas. Firma-se, ontologicamente, fora, aquém dela.
Que significa isto?
Que há uma verdade do mundo – e não apenas dos «espíritos», d’aquém ou d’além túmulo – e que esta verdade nos é acessível, o que, em vez de desvanecer a dificuldade, nos obriga a pôr o problema de como lá chegar …» José Barata-Moura, As Teses das «Teses». Para um exercício de leitura. Lisboa: Editorial «Avante!», 2018, p.227.
«A intenção ontológica tem por desígnio combater as pretensões instaurativas do idealismo da consciência representativa, sinalizando o primado ôntico da dialecticidade intrínseca do real.» Idem, As Teses das «Teses», p.81.
Distinção entre objectualidade e objectividade
«Há, assim, a meu ver, como programa e como tarefa, que recentrar o pensar a partir de um remontar das condições da “objectividade” à objectividade como condição.
Sumariando, para finalizar:
o conhecimento tem condições,
a prática tem condições;
a objectividade enquanto materialidade é condição.» Idem, “A Objectividade como Categoria Filosófica. Subsídios para uma caracterização”, Philosophica, Lisboa, 1 (1993), p.30.
«Na consciência cognoscente representamos coisas, processos, relações, na forma intencional do objecto que, nesse plano relacional subjectivo, nos está diante, como pólo ao qual um atender se volta. É o «objecto» enquanto presença no campo da consciência como ideato. Por assim dizer, a «objectualidade» do objecto.
Mas – e para o materialismo este ponto é decisivo –, há também a objectividade do objecto enquanto detentor de um estatuto de materialidade próprio que lhe advém da pertença a um mundo que, podendo embora ser representado, independe de, e prima sobre, os resultados ideiais na representação aparecentes.» Idem, As Teses das «Teses», p.114.
Justificação filológica da distinção: «Gegen-stand refere aquilo que nos está de pé contra-posto. Por sua vez, Objekt germaniza o latino ob-jectum que – provindo do verbo jaceo: «jazer» (e não do verbo jacio: «lançar») –, significa: aquilo que jaz aí, diante (e não: aquilo que para diante é «lançado», jactum).» Idem, As Teses das «Teses», p.113.
O materialismo de Marx
«O materialismo de Marx é novo, porque pensa, na raiz – e desde a raiz, – a historicidade dialecticamente inscrita na materialidade do ser, da qual as colectividades humanas, na estruturação deveniente do respectivo viver (tecido, e entretecido, de prática), constituem ingrediência específica.» Idem, As Teses das «Teses», p.95.
«Marx «passa» ao materialismo: não porque «se converta» a uma dada doutrina que até aí não perfilhava, mas porque reconfigura – pela base, e no teor – a própria categoria de materialismo.
A materialidade do real, no registo filosófico, denota a subsistência ontológica do ser – com as relacionalidades de que se tece e entretece –, mas independentemente das formas de relação em que apareça a um sujeito determinado (egóico, plural, impessoal); não tem, portanto, como condição ontológica de possibilidade: uma consciência que o represente, um desejo que por ele anseie, uma vontade que o queira, uma linguagem que o exprima, uma acção que o module e dinamize.» Idem, As Teses das «Teses», p.112.
«Só que esta materialidade não se reconhece por uma troca da consciência «pensante» pelos protocolos de uma consciência «sentinte», nem deita para o caixote das divinas especulações a mediação histórica inscrita no corpo das realidades, da qual a prática transformadora é constitutiva componente endógena. – Uma vez mais, e como a cada cavadela do chão à estrada salta: o materialismo dialéctico de Marx não se identifica com o sensualismo materialista de Feuerbach.» Idem, As Teses das «Teses», p.248.
«Efectivamente, é também o pensamento nas Teses condensado que traz atestação formulada aos traços de uma ontologia materialista dialéctica que se densifica em outros desenvolvimentos, a partir dos quais seria reconstruível.
Neste quadro, se entende a principial afirmação leninista de que «a filosofia de Marx é o materialismo filosófico acabado». Não, porque esteja para sempre concluso na trajectória, mas porque conclui um trajecto multi-secular que dos rudimentos do «velho» a um chão para a infrutescência do «novo» aporta.» Idem, As Teses das «Teses», p.78.
«Os materialistas dialécticos não ostracizam as «ideias». O que procuram é compreender o chão ontológico, e a dinâmica social das relações, de onde elas se erguem e perfilam. Porque é sobre esse solo de materialidade concreta que a transformação efectiva tem que incidir para produzir efeito.» Idem, As Teses das «Teses», nota 102, p.75.
Como aceder à materialidade do real?
«Todas estas questões [relativas à forma fenoménica] começam por pertencer ao foro ontológico, na medida em que se prendem com a materialidade do real, surpreendida no dialéctico devir retorso das suas instanciações múltiplas aparecentes.» Idem, As Teses das «Teses», p.185.
«É surpreender o fundamento material daquelas relações múltiplas, e daqueles processos retorcidos, que, no entrelaçado lábil e deveniente da sua contraditoriedade própria, constituem a textura objectiva do real na sua concreção.» Idem, As Teses das «Teses», p.545.
«É possível conhecer as realidades em devir, mas o conhecimento não dispensa a fadiga dos trabalhos. Tanto ao nível da inquirição pelo estudo, da descoberta do posto a nu, e do pensar concebente que das concreções subjectivamente se apropria, como nos tabuleiros daquela comprovação que mede o alcance efectivo – «o poder» (die Macht) – da inteligência teoreticamente alcançada.» Idem, As Teses das «Teses», p.230.
O “complicómetro”: o imperativo da dialéctica
«A forma empírica imediata, que nos «aparecimentos» se evidencia, não esgota, a totalidade das determinações que definem aquilo que uma coisa é: na sua génese, no seu desenvolvimento, na sua concreção. E, não raro, as «evidências» aparecentes obnubilam e distorcem a própria verdade de um «ser» que escondidamente trans-portam.
Daí, a constitutiva tarefa pensante de procurar surpreender — numa realidade que em imediato espectáculo se oferece — aquela dialéctica intrínseca que cruza e associa «fenómeno» e «essência».» Idem, As Teses das «Teses», p.181.
«Sob o ângulo dialéctico de uma ontologia materialista restabelecida — de que as Teses, designadamente, dão expresso testemunho —, a irredutibilidade do ser à «forma fenoménica» que ostenta não supõe, nem implica, o desvanecimento da «aparência», ou um envio inapelável desta para a esfera do «ilusório».
Esta recusa de confinamento à simples imediatez constatada determina, sim, que o «facto» que uma dada «forma fenoménica» retrata não vigora por si num isolamento estanque, que do panorama da fenomenalidade fazem parte «manifestações» múltiplas e contraditórias, que o escopo da compreensão que se demanda não reside numa narrativa prolixa do fragmentário, mas numa articulação, dispondo de fundamento material, capaz de tornar inteligível, nas suas vicissitudes múltiplas, a congruência una dos processos.» Ibid., “Tese 1”, pp.183-184.
A dialéctica da prática e da teoria
«O primado ontológico da prática não suprime o imprescindível contributo da teoria, do mesmo modo que a função sapiencial e prospectiva que no nível teórico do pensar se desenvolve não está dissociada do entroncamento numa vida, nem dispensa aquelas materializações que apenas num campo prático de intervenção se realizam.
A solução de problemas teóricos encontra-se – como não poderia deixar de ser –, exercitando a teoria, a qual, no entanto, só por abstracção, está separada da prática de um viver.
A solução realmente praticada dos problemas do viver, ainda que sem implicar um despedimento sumário da teoria, não pode, contudo, prescindir do exercício de uma actividade que materialmente transforma, ou seja: da prática.» Idem, As Teses das «Teses», p.502.
«A prática — de que «experimento» e «trabalho» constituem modalidades —, ao transformar materialmente, determina configurações novas do real, e, nessa medida, instaura, num solo ontológico, figuras acrescidas de um verdadeiro que objectivamente ela pro-duz.» Idem, As Teses das «Teses», p.235.
«Acontece, porém, que, para Marx, nem toda a actividade, sem mais qualificativo, é prática; nem, por outro lado, na prática, apenas a vertente subjectiva avulta. – Considerar a prática de um modo não subjectivo significa, por conseguinte, não a restringir à dimensão subjectiva (que igualmente com-porta), mas compreender como ela realmente se materializa numa reconfiguração de «coisas» – de «relações», e de processos – efectivamente reais: – Significa que, também em muitas daquelas figuras que integram o domínio do ontologicamente objectivo, há prática humana materialmente incorporada.» Idem, As Teses das «Teses», p.123.
«A verdade objectiva de uma teoria mede-se: na prática – Marx não se limita a dizer: na experiência –, isto é, no poder que ela revela (não apenas imediatamente) de transformar realidades. – O critério da verdade é a materialização da transformação; não consiste na mera «constatação» teórica (ainda que empiricamente dada) de que um determinado facto ou processo ocorreu. – Aquilo que prova é a feitura, e não apenas a consciência que se tenha dela. E este constitui o registo decisivo.» Idem, As Teses das «Teses», p.269.
Actividade revolucionária e revolucionamento
«Neste sentido, a actividade revolucionária – enquanto desígnio esclarecido de materialização de um outro que entre o leque das possibilidades reais se inscreve como signo de uma humanidade (qualitativamente, e em extensão) mais rica no teor – não é apenas crítica no quadro da teoria: submetendo a exame severo as formas fenoménicas disponíveis, procurando compreender nos seus fundamentos, na sua relacionalidade, e nas dinâmicas, aquilo que instaladamente vigora, propondo alternativas e itinerários para o que de outra maneira poderia passar-se.
A actividade revolucionária é crítica: praticamente, porque ataca e transforma, no efectivo plano de materialidade em que se estabelecem, as realidades de um mundo circundante, que não mais se encontra à altura de responder, com a adequação exigível, ao rosário de misérias que ocasiona, multiplica, e de mansinho (mascaradas, ou não) deixa persistir.» Idem, As Teses das «Teses», pp.193-194.
«Nem o materialismo se desfaz em amorosa «teorese» embevecida daquilo que objectivamente se oferece como dado, nem a intervenção que materialmente transforma é desbragada violência do exterior infligida à santidade imaculável do real, na estreita mira de dele extrair ganâncias de exclusivo recorte «subjectivo».» Idem, As Teses das «Teses», p.193.
«O revolucionamento é ontologicamente constitutivo da própria realidade: à qual o devir histórico não é acrescentada dimensão, na qual o cimento dinâmico do múltiplo assume a forma retorcida do contraditório, da qual o labor das colectividades humanas é ingrediência endógena, para a qual o concurso de uma agência reconfiguradora devém factor de construção.» Idem, As Teses das «Teses», p.193.
Um «materialismo materialisticamente dialéctico»
«O erro hegeliano há-de ser buscado nas arcarias que lhe sustentam o idealismo: não reside nos cabedais que lhe entretecem a dialéctica. – Para a consecução deste programa – de estudos, e de transformações – é, na realidade, preciso um materialismo novo: materialisticamente dialéctico.» Idem, As Teses das «Teses», pp.545-546.
«O real não se reduz ao existente.
A historicidade não é exterior ao ser.
A relacionalidade não é exterior ao ser.
A socialidade não é exterior ao ser.
A transformação material prática não é exterior ao ser.» Idem, As Teses das «Teses», p.608.
Daí o «complicómetro», que os filósofos são muitas vezes acusados de ter e pôr a funcionar:
«Confirma-se que os filósofos parecem ter predilecção pelo accionamento de uma estranha maquineta que dá pelo nome sugestivo de «complicómetro». Mas não é porque eles estejam possuídos por uma indebelável mania de ensarilhar os lotes.
O sarilho está metido no próprio enredamento das coisas. E para desenvencilhar é preciso trazê-lo à mastigação do pensamento.» Idem, “Traços do pensar filosófico”, Philosophica, Lisboa, 45 (2015), p.14.
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Pensador anti-idealista, qual é o dualismo que Barata-Moura visa superar?
2) Na distinção entre objectualidade e objectividade, qual dos dois conceitos é ontologicamente mais relevante?
3) Que sentido têm as metáforas térreas «chão ontológico», «solo de materialidade concreta» e «solo ontológico»?
4) Que propriedades pertencem ao ser, nesta ontologia materialista?
5) Como é possível conhecer o ser?
6) Como é que Barata-Moura lida com a dualidade da prática e da teoria?
7) Quais são as partes componentes do conceito de revolucionamento?
Aula nº10 (4ª feira: 19/03/25)
2. O primado da ontologia: José Barata-Moura, Metafísica e Ontologia. Lisboa: Página a Página, 2022. «Tomar a ontologia a sério...». O «feixe polissémico das acepções»: a «concentração no ente», o «centramento na essência», as «existencializações do ser», da «cópula» ao «haver ser», «ontologias do nada», «ontologias do primitivo». «Exercitações filosóficas» em resposta à pergunta por «aquilo que é»: «ontologias do querer», «ontologias do desejo», ontologias do «acto» e da «práxis», «linguistificação do ser» ou «ontologias da linguagem», filosofias do como se e do abarcante. «Anotações» finais: «aquilo que é» como totalidade em devir; exortação à ontologia.
José Adriano Barata-Moura (n.1948)
Metafísica e Ontologia. Lisboa: Página a Página, 2022.
«Tomar a ontologia a sério...»
«É necessário reatar com a ontologia»
«Radicalizando o escrutínio na raiz, é contudo o ser que se des-cobre: o ser, que, na sua concretude material deveniente, com-porta uma constitutiva e trabalhada mediação humana.
É neste rumo que temos que encaminhar a nossa reflexão.
Para tanto, é necessário reatar com a ontologia.
«Reatar», sem evitamento sobranceiro das complexidades. Sem perder de vista o feixe polissémico das acepções que no interior da sua experiência funda residem, e de dentro dela interpelam. Voltar a estabelecer uma ligação. Recomeçar um contacto. Mas também, «fazer as pazes» após vicissitudes várias de compreensíveis belicismos, não raro, incompreendidos embora.
É, por conseguinte, preciso que a interrogação fundadora do interesse ontológico seja retomada.
Mas, em que sentido?» José Barata-Moura, Metafísica e Ontologia. Lisboa: Página a Página, 2022, p.313.
O «feixe polissémico das acepções»:
«Concentração no ente» (MeO, pp.313-315)
«Com assentamento na consideração aristotélica de que «o ente primeiro» (τὸ πῶτον ὄν) é «a substância primeira» (ἡ πρώτη οὐσία), o concreto sujeito singular das predicações categoriais, a ontologia, em diferentes registos doutrinários, deveio, e desenvolveu-se, como enti-logia.
Em tratados medievais, tardo-escolásticos, e setecentistas, com diferenciação nos enfoques, a disciplina aparece, como vimos, designada pelo nome de «ciência do ente em geral» (scientia entis in genere).» Idem, MeO, p.313.
«Centramento na essência» (MeO, pp.315-318)
«Colhendo inspiração no paradigma platónico (sobre a maneira socrática de inquirir do fundamental das coisas montado) — em conformidade ao qual «aquilo que é» (τὸ ὄν) não são os entes mundanos à mudança sujeitos, mas «a entidade» (ἡ οὐσία) que lhes assiste, e permanece —, a ontologia postou-se, em rigor, como usio-logia, e, em termos alargados, como essenciologia.» Idem, MeO, p.315.
«Existencializações do ser» (MeO, pp.318-325) — De Parménides ao existencialismo moderno
«O olhar da ontologia não está condenado à unidireccionalidade. Como já vimos, pode orientar-se para o objecto que em frente se apresenta, mas pode também retro-dirigir-se a instâncias subjectivas em cujo âmbito toda a actividade pensante decorre.
Pode, igualmente, incidir no «ser» (εἶναι) do qual «o ente» (τὸ ὄν) é particípio.
A ontologia, neste caso, devém einai-logia.
[...].
Que ser é este de que se fala, que se pensa, de que se trata?
O interesse ontológico, nesta perspectiva colhido, apontaria a uma investigação do ser, não tanto na diversidade determinada das suas manifestações, mas naquele regime de actualidade que lhe confere o viso da presença.
Neste marco, ganham estação diferentes modos de considerar uma existenciologia.» Idem, MeO, pp.318-319.
«Da «cópula» ao «haver ser»» (MeO, pp.325-333) — Das teorias do juízo (valências copulativa, equivalencial, atributiva, veritativa) a um «haver ser», que «antecede a determinação, num juízo enunciada, das propriedades ao ente atribuídas» (Idem, MeO, p.328), em filosofias do séc. XX (Husserl, Merleau-Ponty, Zubiri, José Marinho)
«Quando a sede do atender fica instalada no plano judicativo — que obedece à forma proposicional: a é b —, de ordinário, a incidência do indagar recai sobre os extremos que, na polarização, se apresentam ligados. Num pensar que se acciona, o sujeito, e/ou o predicado, são, de seguida, tematizados.
Todavia, o conjuntor — o «é» (ἔστι, est) que subtende, e funda, a predicação — pode igualmente tornar-se alvo específico de pergunta, num inquérito que explore a diversidade semântica que no campo das modalidades da sintaxe se verifica.
Neste caso, as reflexões pertinentes trariam recheio a uma possível esti-logia.» Idem, MeO, p.325.
«Ontologias do nada» (MeO, pp.333-347)
«Quando a pergunta pelo ser é radicalizada de certos modos, acaba, para eventual perplexidade dos frequentadores menos assíduos desta literatura, por ir desembocar num nada.
Num «nada» que, não obstante, apresenta pontas diversas por onde se lhe pegue.» Idem, MeO, p.333. Do nada que precede da criação (Agostinho), passando pela teologia negativa (Dionísio, Nicolau de Cusa, Proclo), por Fichte e Nietzsche, até Heidegger e Sartre, Marinho e Ernst Bloch.
«Ontologias do primitivo (MeO, pp.347-356) — Da filosofia do mito (Gusdorf), passando pela arqueologia de Michel Foucault, ao agnosticismo metafísico e implicações ontológicas da linguagem na filosofia analítica (Carnap, Wittgenstein, Eduard Moore, B. Russell, Peter Strawson, Donald Davidson, Quine), e na filosofia da ciência (Roy Bhaskar, Mario Bunge)
Depois de citar Georges Gusdorf, Mythe et métaphysique. Introduction à la philosophie (1953), sobre o mito: «Poderia, nestes termos — a expressão é de Gusdorf —, falar-se de «ontologia primitiva» (ontologie primitive), ou «espontânea» (spontanée), sempre que o tema em causa abordasse o conjunto daquelas convicções basilares que sustentam a possibilidade dos itinerários determinados que na esfera do viver, e em consonância com elas, depois se verificam.
Colado às diversas modalidades mediante as quais o flectir mundano da actividade humana determinadamente se exprime, haveria, por conseguinte, um impensado acervo de admissões «ontológicas» implícito, com eventual explicitação a cargo da consciência re-flexiva que, operando num como segundo nível de atenção temática, sobre ele se debruçasse.» Idem, MeO, p.348.
«A pergunta por «aquilo que é»»
«O modo da interrogação que proponho não se limita a reformular o mesmo numa fraseologia outra: traz um novo enquadramento à problemática, proporciona um ângulo de focagem mais aberto, recentra a essencialidade do quesito na genuína intenção que o desencadeia.
Se à perspectiva que aqui em esboço apresento alguma razão assistir, o âmbito da ontologia passa a abranger o leque diversificado — e contraditório — das exercitações filosóficas que buscam respondimento à pergunta por «aquilo que é».» Idem, MeO, p.361.
As «exercitações filosóficas»:
«Ontologias do querer» (MeO, pp.362-367) — Da teologia medieval a Schopenhauer e Nietzsche
«Há ontologias do querer.
Nas disputas teológico-filosóficas do séc. XIII, a problemática subjaz ao debate acerca da natureza — primacialmente intelectiva, ou volitiva — de que o consensuado acto divino de instauração do ser se deve revestir.» Idem, MeO, p.362.
«Ontologias do desejo» (MeO, pp.368-376) — Ernst Bloch, Freud, Herbert Marcuse, Hegel, Sartre, Jacques Lacan, Gilles Deleuze e Félix Guattari, Jean-Paul Dollé
«Há ontologias do desejo. Na forma tentada, pelo menos, reconstruíveis.» Idem, MeO, p.368.
«Ontologias do «acto» e da «práxis»» (MeO, pp.376-383)
«Há ontologias do acto em geral, e da «práxis» em particular.
À luz genérica deste paradigma reitor, em doutrinas muito diferentes especificado, a alguma modalidade do agir (ou do operar) — de índole subjectiva, ou inter-subjectiva — é conferido o estatuto de condição originária de possibilidade de um mundo histórico empiricamente determinável, ao qual ela é de algum modo ante-posta, ou em regime de co-relacionalidade instituinte colocada.
Ao nível das grandes mito-narrativas, o prólogo do Evangelho de João reza: «no princípio era o Lógos» (ἐν ἁρχῇ ἤ ὁ Λόγος); na versão de Lutero: «no começo era a Palavra» (Im Anfang war das Wort).
Inconvencido das primogenias ao Verbo atribuídas, poetando sob o signo de uma Modernidade em ascenso, Goethe proclama como tradução adequada que mais lhe satisfaz: «no começo era o Acto! [Im Anfang war die Tat!]».» Idem, MeO, pp.376-377.
Seguem-se filósofos, como Berkeley, Kant, Fichte, Feuerbach, e, mesmo, os marxistas György Lukács, Leszek Kolakowski, e Gajo Petrović.
«Ora, compreender a actividade humana — no conjunto das suas valências teóricas e práticas — a partir da materialidade do ser não significa o mesmo do que dar conta da subsistência material do ser por virtude (determinante) de um empenho de actividades humanas, no domínio das configurações representativas, epistémicas, modeladoras, ou transformacionais.
O ofuscamento desta diferença fundamental — ou, pelo menos, a depreciação do relevo que possa assumir — manifesta, entre os arautos da «praxiologia», evidenciados sinais abundantes de persistência.
Em rigor, a rasura deste ponto de ontologia — nevrálgico numa concepção do ser concretamente materialista — está no fulcro das re-construções intentadas, e determina o idealismo basal (cada vez menos, envergonhado, na medida em que não estamos perante lapsos de incompetência distraída) de que enfermam.» Idem, MeO, p.381.
«Linguistificação do ser» ou «ontologias da linguagem» (MeO, pp.383-393)
«Há também ontologias da linguagem.» Idem, MeO, p.383.
Exs.: Condillac, Wittgenstein, Hans-Georg Gadamer, Locke, Gianni Vattimo, Karl-Otto Apel, Umberto Eco, e Arthur Danto.
«E há mais...» (MeO, pp.394-397)
A ontologia do «faz de conta», ou da ficção: Kant, Hans Vaihinger com «a Filosofia do Como Se».
A filosofia do abarcante, ou «Periecontologia»: Karl Jaspers.
«Anotações»
«O ser, mesmo no horizonte (meta-hegeliano) de uma ontologia dialéctica de base materialista, não se reconduz exclusivamente nem ao ente que se ex-põe sob a forma determinada do «corpo» ou da «coisa» (nas expressões tradicionais e vulgares da materialidade, em regime de outorgado privilégio à espacialização conferido), nem à «presença» de uma «actualidade», empiricamente ou transcendentalmente surpreendida (onde, em complexos doutrinários mais subtis, a «positivação» de aquilo que perante está, objectivamente sensível ou subjectivamente nas «vivências» evidenciado, adquire uma coloração prevalentemente temporal).
O segredo dos «feiticismos ontológicos» repousa, precisamente, no esquecimento e na rejeição da materialidade das relações; deste oblívio e desta recusa abastecidos e alimentados, os enfoques feiticistas obscurecem a peripécia da génese, silenciam as vicissitudes da configuração, depõem na facticidade positiva (porque «natural» no viso, inquestionável) os contornos nítidos de uma hipóstase.
Ora, o existente — «coisa» e processo em relação transformadora de deveniência colhido — constitui antes uma das figuras do ser: um momento de determinação (sem dúvida, firme e ponderável) que o ser envolve, e ultrapassa, enquanto totalidade em devir de reconfiguração.
[...].
De um ponto de vista ontológico, a unidade (material) do ser com-porta, no tecido, multiplicidade. Na sincronia de um corte, que lhe surpreende a arquitectura estruturante. Na diacronia de um processo, que lhe enriquece a concretude, enquanto positividade, fluência, e transformação.» MeO, pp.400-401.
«Pensar é manter uma relação, e manter-se em relação. Discurso «ideialmente» expressivo da relacionalidade intrínseca do ser, é também abertura da manifestação re-flexiva dele (e não apenas re-presentativa) no elemento da consciência, e trabalho paciente de exploração dos meandros concretos (em que a dinamicidade igualmente se inscreve) da sua constituição.
Tal não implica, porém, salvo em matriz de cunho idealista, que o pensar se veja ipso facto investido em condição de possibilidade originária do «haver ser», graças aos conhecidos, e poli-reciclados, dispositivos teórico-doutrinais da «posição» (Setzung), ou da «com-posição» (Zusammensetzung) em regime instituinte, inauguralmente absoluto, de correlacionalidade.
Por seu turno, a prática — a actividade materialmente transformadora — não é ela própria também uma adjunção exterior ou forasteira sobreveniência (para alguns, talvez, um abrutalhado «excesso», uma embaraçosa «demasia»), mas um ingrediente genuíno da mediação endógena do ser pelas colectividades humanas, um emblema determinado da agência histórica no corpo da relacionalidade inscrita, e interveniente.
A totalidade em devir é, a bem dizer, «aquilo que é».» MeO, p.403.
«A inteligibilidade perfila-se na orla do possível.
Como demanda exigente do lógos (perfactor de um «dar razão» que se procura), e como tarefa epistemológica ou trabalho da compreensão.
O possível adianta-se ele próprio como pro-tensão de futuro, no horizonte feituro do ser.
Na sua dinâmica interna, de contradições entretecida, o existente (no qual as realidades se não enclausuram) pro-jecta, ao adiante dele, um leque de possibilidades reais: um domínio aberto (mas determinado) — materialmente pre-parado (embora não antecipadamente «feito») — de trajectórias e de itinerários que, na actualização, desafiam o empreendimento.
A esta luz, o possível — tantas vezes, dela metafisicamente dissociado — constitui também um vector, inapagável, da realidade.» MeO, p.404.
«Tomar a ontologia a sério: é retomar a historicidade do ser como plano recuado, e como horizonte, das nossas diligências teóricas e práticas determinadas, in-carnando o pensar num devir que o perpassa, que se partilha, e refigura.
Tomar a ontologia a sério: é recolocar a cada passo, e prosseguir — num propósito vigilante de radicalidade que questiona, e se questiona —, aquela que, porventura, se perfila como a nossa destinação constitutiva de seres humanos: a inscrição do nosso cunho de humanidade no ser.
Obra ultimamente prática (porque, a cada começo, em prática tem o assento que acentua), o empenho (individuado, grupal, e colectivo) na consecução deste destino (que não é sorte fatal, mas em cujo decurso fatalidades sucedem) não pode, todavia, realizar-se em plenitude — ainda que numa plenitude sempre relativa, já que não é um per-feito, mas um perfazer —, caso descure a atenção devida às perplexidades, às sugestões, e ao socorro, que decorrem de múltiplas aclarações teóricas, que fazem, e que refazem, as rotas e os rumos de aquilo que é.
A materialidade deveniente do ser — complexa, contraditória, constringente (nas limitações, objectivas e subjectivas) que impõe — não nos apaga do mapa a condição de fazedores de história. Des-mitifica (não anula) o espaço da liberdade. Fornece o quadro relacional da humana responsabilidade ontológica nos quotidianos trabalhos de «escritura» do ser.» MeO, p.405.
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Qual é a diferença entre as ontologias agregadas no «feixe polissémico das acepções» e aquelas que são reunidas nas «exercitações filosóficas»?
2) A ontologia de Barata-Moura é uma ontologia da práxis?
3) Como é que Barata-Moura responde à pergunta por «aquilo que é»?
4) Qual das ontologias discriminadas mais se aproxima da de Barata-Moura?
5) Quais são os ingredientes que a ontologia de Barata-Moura faz questão de incluir?
6) Que diz a metáfora da escrita acerca da ontologia?
7) Que significa «tomar a ontologia a sério»?
Aula nº11 (2ª feira: 24/03/25)
Balanço.
Exercício de indicar a autoria de frases misturadas dos três autores estudados: Manuel Antunes, Joaquim Cerqueira Gonçalves, José Barata-Moura.
Exercício de indicar o autor das seguintes frases (ordenadas por ordem alfabética da 1ª letra):
«A acção, a nossa constante referência, fonte de generosa iniciativa, representa uma experiência de consentimento com a manifestação do ser» Autor:
«A cultura europeia processa-se ou parece processar-se num ritmo geral, de pontos extremos: esgotamento – renascença, sucedendo-se ciclicamente.» Autor:
«A inteligibilidade perfila-se na orla do possível.» Autor:
«A intenção ontológica tem por desígnio combater as pretensões instaurativas do idealismo da consciência representativa, sinalizando o primado ôntico da dialecticidade intrínseca do real.» Autor:
«A materialidade deveniente do ser não nos apaga do mapa a condição de fazedores de história.» Autor:
«A materialidade do real, no registo filosófico, denota a subsistência ontológica do ser» Autor:
«A morte não é caminho de solidão, representando, antes, processo de universalizante unificação, concretizando os fundamentais vectores de transcendentalidade do ser.» Autor:
«A omnipotente ciência, [...], mesmo que não seja considerada causa exclusiva e até principal, da deterioração ambiental, não conseguiu evitá-la.» Autor:
«A razão humana não é um espaço puro e asséptico, mas revela-se na construção cultural, mesmo que a fonte desta, insista-se, não seja de índole simplesmente cultural, mas ontológica.» Autor:
«A vida da terra é uma obra de arte, uma sinfonia, onde colaboram múltiplos autores e actores» Autor:
«Afinal, a consciência e a impressão do estatuto de ser cultural, em que se enraíza a própria ideia de liberdade, é que tem feito da existência humana uma exalação de angústia» Autor:
«Aquilo que prova é a feitura, e não apenas a consciência que se tenha dela.» Autor:
«As religiões, ainda as que são consideradas de teor naturalista, são indeclináveis e significativas expressões culturais, assumindo quase sempre funções salvíficas.» Autor:
«A totalidade em devir é, a bem dizer, «aquilo que é».» Autor:
«Compete ao ser humano ontologizar, participar na manifestação do ser» Autor:
«Concedendo que tudo, no mundo, passa pelas formas culturais, daí não pode ser concluído que estas sejam originárias e terminais.» Autor:
«Consideramos cultura a actividade – tal como o resultado dela –, pela qual se elabora um mundo» Autor:
«Cultura, no entanto, diz respeito antes de mais nada à acção que o homem realiza de si, por si e sobre si, em ordem a uma transformação no sentido ascencional, do melhor.» Autor:
«Dever e beatitude, desinteresse e perfeição, inteligência e amor, transcendência e imanência, não se excluem nem se opõem.» Autor:
«É diante de nós e, sobretudo, em nós, na interpenetração do eu e do mundo, dos objectos e dos acontecimentos, que urge encarnar os valores» Autor:
«É necessário reatar com a ontologia.» Autor:
«É possível conhecer as realidades em devir, mas o conhecimento não dispensa a fadiga dos trabalhos.» Autor:
«Educação é o reflexo e o projecto de uma cultura.» Autor:
«Filosofia é saber. [...] um saber reflexo, simultaneamente anterior e posterior às outras formas de saber» Autor:
«Justamente porque as coisas mudam depressa e mudarão cada vez mais depressa, é que a educação terá de fundar-se, cada vez mais, sobre aquilo que não muda ou muda pouco, sobre o “eterno no homem”» Autor:
Não há que empreender um regresso à natureza, mas, sim, um acesso ao ser, não com intenções de refúgio, mas de manifestação e desenvolvimento.» Autor:
«Nem sempre se confundindo com o mito, embora por vezes cultivando-o ou com ele se cruzando, as religiões vivem – e as suas teologias tematizam –, de um modo ou de outro, esse excesso cultural, a que a existência não pode furtar-se.» Autor:
«O conhecimento tem condições, a prática tem condições; a objectividade enquanto materialidade é condição.» Autor:
«O existente — «coisa» e processo em relação transformadora de deveniência colhido — constitui antes uma das figuras do ser» Autor:
«O homem é um ser inserto no mundo e que dele procura levantar-se.» Autor:
«O homem-espuma sucede ao homem-máquina» Autor:
«O homem todo é um ser a quem foi aberta a possibilidade de apreender o todo, de visar o todo, de «intencionar» o todo» Autor:
«O materialismo dialéctico de Marx não se identifica com o sensualismo materialista de Feuerbach.» Autor:
«O mito é a primeira forma da dialéctica entre o homem e a natureza, uma dialéctica de desintegração e reintegração do homem no mundo.» Autor:
«O movimento da realidade não obedece, porém, ao ritmo binário de opostos.» Autor:
«O possível adianta-se ele próprio como pro-tensão de futuro, no horizonte feituro do ser.» Autor:
«O que confere valor ao humano é o ser, não a natureza, pelo que, justamente, o humano aflora como expressão, se se quer, adjectiva, do ser — o ser humano» Autor:
«O real não se reduz ao existente. A historicidade não é exterior ao ser. A relacionalidade não é exterior ao ser. A socialidade não é exterior ao ser. A transformação material prática não é exterior ao ser.» Autor:
«O revolucionamento é ontologicamente constitutivo da própria realidade» Autor:
«O sarilho está metido no próprio enredamento das coisas. E para desenvencilhar é preciso trazê-lo à mastigação do pensamento.» Autor:
«O segredo dos «feiticismos ontológicos» repousa, precisamente, no esquecimento e na rejeição da materialidade das relações» Autor:
«O ser humano é faber, antes de tudo, na sua actividade de construção do mundo» Autor:
«Os materialistas dialécticos não ostracizam as «ideias». O que procuram é compreender o chão ontológico, e a dinâmica social das relações, de onde elas se erguem e perfilam.» Autor:
«Pela filosofia tem passado a principal missão de desconstruir, hermeneuticamente, a ciência e a cultura.» Autor:
«Pensar é manter uma relação, e manter-se em relação.» Autor:
«Pode dizer-se que o artesão e o artista são, antes, colaboradores da realidade» Autor:
«Por metafísica — guarde-se ou suprima-se o termo — entendemos a ordem do «ser enquanto ser», a ordem das significações mais gerais do universo e da existência e a ordem dos valores.» Autor:
«Sem ciência e sem técnica, a Humanidade não pode subsistir; sem misericórdia, ela não pode subsistir humana.» Autor:
«Sendo a noção de cultura enormemente polissémica, entra, todavia, sempre, no âmago da sua tarefa, a construção de uma unidade orgânica de valores, que designamos, geralmente, por mundo.» Autor:
«Radicalizando o escrutínio na raiz, é contudo o ser que se des-cobre» Autor:
«Tanto para a experiência do irrecusável como para a consciência dela, é necessário uma aprendizagem, quer da vida, quer da mente, de que se ocupa, em larga medida, a actividade filosófica.» Autor:
«Toda a nossa actividade, no consentimento, na revolta ou no desespero, é sempre uma afirmação do ser, fonte de todas as formas em que se exprime.» Autor:
«Vem em primeiro lugar a decisão de querer ser ou não. Depois, a de querer o valor maior, sempre informado pela estrutura do ser, que é a capacidade de manifestação.» Autor:
Aula nº12 (4ª feira: 26/03/25)
Balanço. Conclusão do exercício de indicar a autoria de frases misturadas dos três autores estudados: Manuel Antunes, Joaquim Cerqueira Gonçalves, José Barata-Moura.
3. Filosofia e mística. Em busca de uma definição de mística: Manuel Antunes.
Em busca de uma definição de mística: Manuel Antunes
«Semasiogonia
Mística, como muitas outras palavras da nossa cultura, vem do grego, de μυστικός, ή, όν (mystikos, ê, on), adjectivo que deriva do verbo μυέω (myeô), que na acepção primitiva significou “fechar os olhos”, “fechar a boca” e, mais tarde, na voz passiva, passou a termo técnico designativo da acção de “ser iniciado” nos mistérios. Assim, por exemplo, em Heraclito de Éfeso e em Heródoto, para indicar um nome dum filósofo e o dum historiador, e ainda em Aristófanes, um comediógrafo. Podemos portanto dizer que, originariamente, mística é a palavra do oculto, do inefável, do silêncio, porque também o oculto, o inefável, o silêncio possuem uma certa tradução, relativa. Talvez seja lícito sintetizar que, no seu primeiro uso, especializado no fenómeno religioso, mística é a expressão daquilo que não tem expressão.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.II, p.63.
Descrição fenomenológica
«Será possível encontrar uma definição tal [por género e diferença específica] para o conceito de mística? Ou ainda: será possível organizar indutivamente um conceito de mística? Não poucos psicólogos se pronunciam pela afirmativa: é possível organizar indutivamente um conceito de mística, é possível encontrar algo comum, depois de eliminadas todas as diferenças, é possível constituir uma definição essencial de mística por género supremo e diferença ínfima. Toma-se como ponto de partida, ou como elemento essencial, o êxtase dos místicos cristãos. Ao lado deste, ou em escala descendente, vai-se alinhando o êxtase plotiniano, o Samadhi do Yoga, a exaltação orgiástica do paganismo antigo, o transe ritual das religiões primitivas, certos estados provocados por determinadas drogas, ou originados de determinadas disposições psíquicas. Feito isto, conclui-se que o fenómeno místico é essencialmente idêntico nas suas manifestações e idêntico nas suas origens e nas suas causas que se reduz a certas características temporais.
Que pensar deste método e da definição — a mística é essencialmente êxtase — através dele obtida? De remota origem socrática, segundo Aristóteles, a indução comparativa oferece um grave inconveniente a que certos espíritos pouco complexivos não conseguem fugir: o de simplificar. Simplificar, na hipótese, segundo esquemas exteriores comuns omitindo o conteúdo interno do fenómeno ou esvaziando-o do seu autêntico significado. Na perspectiva da psicologia naturalista, que reduz o místico ao puramente psíquico e este a uma forma superior, do fisiológico e do orgânico, a possibilidade do sobrenatural, de uma comunicação pela graça, de Deus ao homem, fica excluída. Com que direito, uma vez que possuímos tantos testemunhos da sua existência? Constituirá uma resposta adequada declarar que esses testemunhos se explicam pela patologia? Mas trata-se, em não poucos casos, de seres perfeitamente normais, de um admirável bom senso, de um grande realismo que, por vezes, o gosto pela acção acompanha, de um notável espírito crítico que uma vontade, contrária ao maravilhoso, anima. Por isso, um psicólogo tão penetrante e um filósofo tão exigente, qual foi H. Bergson, pôde recusar a perspectiva naturalista e estabelecer mesmo sobre esses testemunhos dos místicos, sobretudo dos místicos cristãos, a sua prova da existência de Deus (Cf. Les deux sources de la morale et de la religion).
[Nota nossa: «Tanto me é difícil acreditar num Ser sobre-humano que teria em suas mãos a infinidade do universo (das suas galáxias a todos os seus átomos e moléculas, as células de todos os indivíduos de todas as espécies vivas) e o conhecimento da intimidade de cada coração de todos os humanos de todos os tempos, quanto me é difícil de admitir intelectualmente que os santos, esses crentes por excelência, essas narrativas de grandes feitos espirituais, os mais ‘impossíveis’ dentre as narrativas humanas donde colhemos incitação a viver e a navegar mais além, não teriam sido senão gente ‘enganada’. Como avaliar a afirmação dessas narrativas sem se crer na existência de Deus?» Fernando Belo, “Prova e provação de Deus.” In A Questão de Deus. Ensaios Filosóficos. Sintra: Zéfiro | FCT / CFUL, 2010, pp.312-313.]
Para não incorrermos no risco de simplificação, em problema tão delicado, parece portanto útil abandonar o método indutivo. Porque, em rigor, há tantas místicas quantos os místicos. A experiência de cada um é intransmissível, tanto mais quanto mais profunda. Nestas condições, e limitando o facto místico ao espaço do sagrado, de onde o fizeram desbordar por extrapolação indevida, contentemo-nos com uma descrição fenomenológica. Esta permite-nos afirmar, redutiva e genericamente, que mística se revela como peculiar experiência humana com as seguintes características:
α) É uma experiência de conhecimento em que se procura e se realiza a união, não apenas intencional mas, tanto quanto possível, física, entre o sujeito e o objecto. Nessa união, tudo o que é visto, sentido, ouvido se encontra como que submerso numa onda que brota dos abismos da vida interior: os poderes profundos da psique os quais, geralmente, estão prisioneiros, surgem, de repente, libertos, ou, sonolentos, sofrem um súbito despertar. Os compartimentos da vida quotidiana desaparecem num momento, atravessados de um extremo ao outro por uma torrente de afectividade. Não vemos inconveniente em designar esta primeira característica, fundamental, pelo termo de “êxtase”, contanto que, por ele, entendamos não qualquer perturbação funcional como a contracção, a rigidez, a insensibilidade, mas uma saída da alma fora e acima de si própria.
β) A supressão ou a superação (Aufhebung) da consciência habitual: o espírito ou regressa a qualquer forma de inconsciência, ou se vê assumido por potências transcendentes que o invadem, estabelecendo na psique uma presença estranha, penetrante ou envolvente.
γ) O acompanhamento não necessário mas que se dá frequentemente de fenómenos físicos, tais como raptos, visões, palavras delirantes, etc.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.II, pp.66-67.
Tipologia geral
1. «Mística dualista ou de libertação» — Zoroastrismo, Orfismo, Pitagorismo, Platonismo, Maniqueísmo.
«Sendo o mundo, como mundo, essencialmente mau, o homem só deve ter uma atitude de ascese, de libertação das aparências sensíveis, de negação dos valores terrenos, de concentração na profundidade do próprio “eu” ou de concentração no mais além de todas as determinações concretas, ou seja, no coração eterno do Real.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.II, p.68.
2. «Mística monista ou de identificação» — Plotino, Upanishadas e Vedanta, Espinosa
«Nesta perspectiva, o destino do homem, o seu destino essencial, consiste em evadir-se do mundo das aparências, do reino da multiplicidade, orientando-se na procura do Uno, do Brâmane, do Espírito ou da Natureza.» Antunes, OC, T.I, V.II, P.II, p.68.
3. «Mística Teísta ou da Transcendência gratificadora» — Mística cristã (católica, protestante, oriental), mística islâmica (Sufismo)
«Chama-se mística teísta porque põe, como princípio primeiro, Deus, mas um Deus pessoal: chama-se da Transcendência gratificadora porque esse Deus pessoal, que é princípio absoluto, vem ao encontro do homem, pelo dom de Si, pela graça ou comunicação da Sua própria vida, que é conhecimento e que é amor, de forma tão surpreendente e empolgante que o homem tem a impressão de ter passado a outra esfera de existência superior, de ter sido, num acto literalmente inefável, “divinizado”. Portanto: enquanto as duas grandes correntes místicas anteriores — a dualista e a monista — aparecem como essencialmente eferentes (o Absoluto torna-se conquista do homem), esta surge-nos radicalmente aferente (é o Absoluto, a Transcendência que vem ao encontro do homem, sem negar a cooperação do homem mas também sem a pressupor como necessária ou como condição indispensável: a graça, a graça mística, pode desabar sobre o homem sem que ele a espere, pode entrar por dentro como gratíssima surpresa de um outro Mundo, de uma outra vida).» Antunes, OC, T.I, V.II, P.II, pp.68-69
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Manuel Antunes propôs uma definição de mística?
2) Há conexão entre filosofia e mística, segundo Manuel Antunes?
3) Qual é a diferença comum das místicas cristã e islâmica relativamente às outras místicas, segundo Manuel Antunes?
4) A mística está antes ou depois da filosofia?
Aula nº13 (2ª feira: 31/03/25)
3. Filosofia e mística: Francisco da Gama Caeiro.
Do seu percurso investigativo. Da filosofia à mística, como fonte experiencial da filosofia. Da mística à filosofia: o «inefável concreto»; a filosofia mística; a «noite escura», como tema de filosofia mística.
Francisco da Gama Caeiro (1928-1994)
Francisco José da Gama Caeiro (1928-1994) foi um pensador e historiador da Filosofia em Portugal, e hermeneuta do pensamento franciscano, ao longo da sua carreira docente na FLUL. entre 1959 e 1990. Nesta mesma Faculdade, fez a sua formação histórico-filosófica, concluindo a licenciatura na Secção de Ciências Históricas e Filosóficas (1954), e foi, desde então, que o Pensamento Franciscano começou a marcar o seu percurso de investigação. Na sequência de um trabalho escolar sobre “O Cartesianismo na Obra de Frei Manuel do Cenáculo”, Francisco da Gama Caeiro viria a elaborar a sua dissertação de licenciatura sobre o mesmo franciscano setecentista — Frei Manuel do Cenáculo - Aspectos da Sua Actuação Filosófica — com o estímulo de dois eminentes professores da Faculdade de Letras, Artur Moreira de Sá na orientação, e Hernâni Cidade pela sugestão da ideia indutora do trabalho. O trabalho foi publicado em 1955, como edição do Centro de Estudos de Psicologia e de História da Filosofia, anexo à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com nota prévia de Matos Romão e prefácio de Artur Moreira de Sá. Assim começou o desafio de estudar e interpretar a presença e a influência do Pensamento Franciscano em Portugal, que constitui um traço distintivo do legado histórico-filosófico de Gama Caeiro.
No estudo de Frei Manuel do Cenáculo, Gama Caeiro encontrou a influência do filósofo franciscano medieval, de origem catalã, Raimundo Lulo. E, mediante o estudo da presença de Lulo na cultura portuguesa, ocupou-se do lulismo durante a década de 1955-1965. Criou, então, laços de colaboração com múltiplas instituições ibéricas. O estudo do lulismo fê-lo recuar ao pensamento medieval. Paralelamente, o ónus do estudo e do ensino da História da Filosofia em Portugal fê-lo recuar a Santo António, que integrou o movimento inicial dos franciscanos.
Com efeito, foi sobre o primeiro seguidor português de S. Francisco que incidiu a tese de doutoramento de Gama Caeiro — Santo António de Lisboa, vol. I: Introdução ao Estudo da Obra Antoniana (1967) — defendida em 1968, e distinguida com o Prémio Ocidente em 1969. Do prolongamento e ampliação da investigação doutoral resultou o segundo volume — Santo António de Lisboa, vol. II: A Espiritualidade Antoniana. Os Grandes Temas da Doutrina Mística (1969). Com estas duas obras de vulto e múltiplos outros trabalhos dispersos em torno do Santo português, Francisco da Gama Caeiro tornou-se o primeiro antonianista de referência entre nós.
Da mística como fonte experiencial da filosofia
- “Prefácio.” In Santo António de Lisboa, Vol. II. Lisboa: INCM, 1995, pp.VII-XXVII.
- “Para o estudo das fontes do pensamento místico de São João da Cruz: sobre a doutrina da «noite escura»,” in Dispersos. Vol. III. Lisboa: INCM, 2000, pp.503-511.
A questão do estudo de um autor místico medieval
«O amor sófico, o hábito mental de nos interrogarmos e de inquirir sobre os fundamentos e justificações mais profundas da realidade, não pode evitar que se faça aqui uma pergunta que é para nós crucial.
Que sentido, que justificação terá hoje este esforço tenaz, despendido no prosseguimento duma investigação iniciada há largos anos sobre a obra de um autor místico medieval? Mera concessão ao gosto da divagação erudita em tema arcaizante, sem outra perspectiva filosófica e cultural?
Vivemos numa época histórica em que o homem chegou ao paroxismo da euforia proporcionada pelo espectacular domínio científico e tecnológico dos recursos materiais, mas na qual, ao mesmo tempo, mais do que nunca se sente perplexo, desiludido, angustiado com a sua actuação no mundo, com as incertezas do destino civilizador da grande sociedade universal. É neste preciso momento que ele procura soluções para problemas vitais e exige da filosofia, não já a descoberta da «pedra filosofal», mas o empenhamento sério, autêntico e vivo nos temas que correspondam a essa profunda e radical situação humana. E, nestas singularíssimas circunstâncias, terá válida consistência filosófica uma inquirição tal como a presente?
A nossa decidida resposta afirmativa, sem quaisquer visos de justificação apologética, é exigida, antes de mais, por certo apelo profundo de sinceridade filosófica; mas não deixa de constituir também expressão conclusiva duma meditação prolongada.
Esperamos que o leitor nos acompanhe e consiga descortinar, para além dos limites rígidos impostos por um estudo monográfico, uma perene problemática filosófica que contém amplas e fecundas perspectivas para a reflexão actual.
E, com efeito, numa rigorosa interpretação histórico-filosófica, é possível descortinar — porventura com certa surpresa — a continuidade desta mesma temática, desde a idade antiga até ao momento presente, no âmbito de uma profunda lucubração especulativa, embora assumindo formas muito díspares.
[...].
Em rapidíssima síntese, a ideia central que é possível extrair de um conjunto muito vasto de problemas e doutrinas filosóficas, no seu confronto com a mística, e que dá justamente o nexo de profunda inteligibilidade aos diversos e aparentemente heterodoxos sistemas e pensamentos dos filósofos, é o constante balancear dilemático de atitudes do espírito entre dois pólos: umas posições tendem a atrair para o domínio do teorético, do lógico e do discursivo a ordem da fé; outras pretendem subsumir, ou de algum modo integrar, o teorético, o cognoscível racionalmente, o discursivo, no domínio do vitalismo, da vivência, do intuitivo, do mistério, da existência, da Gefühl ou do sentimento.
Em última análise, o que a filosofia actual retoma, enquanto trata de conhecer as relações do seu próprio domínio com a mística, ou — noutro plano, que tem com este profundas analogias — as relações entre a razão e a fé, poder-se-á reduzir às duas vias ou dois processos já anunciados por Agostinho, e que são também a trave mestra da doutrina antoniana: «Intellige ut credas. Crede ut intelligas.»
[...].
Permitimo-nos porém anunciar desde já que a posição perfilhada nesse estudo será guiada por um critério de integração: nem subsunção da fé à razão (e, mutatis mutandis, da filosofia à mística), nem o inverso, nem negação de uma delas, sem separação radical.
Este critério surge ditado pelo facto de o ser humano se revelar ponto de coincidência de duas epifanias do ser: o ser transcendente, pessoal, amoroso, mostrado em um Verbum, que deve ser integrado na vida humana; e o ser como plano radicante, que fundamenta o homem, que alcança o seu sentido último na sua integração no λόγος que é ἀγάπη, no logos que é amor e caridade.» Francisco da Gama Caeiro, Santo António de Lisboa, Vol. II. Lisboa: INCM, 1995, Prefácio, pp.XXIII-XXV.
Mística e filosofia
«A palavra mística, pela sua própria derivação do étimo grego μυστικός — ligado ao verbo μύειν, que significa «instruir», «iniciar», ou, na voz passiva, «ser instruído», «ser iniciado» —, constitui a expressão daquilo que é difícil de exprimir, do profundamente íntimo, do silencioso, do recôndito, do abissal e do inefável.
E precisamente nesta densa zona da existência humana, carregada da mais profunda significação ôntica, ela será, por direito próprio, objecto da especulação filosófica e realidade nuclear da metafísica. De modo algum se verifica entre mística e filosofia confusão de domínios, uma vez que ambas correspondem a planos distintos — embora convergentes, integráveis e susceptíveis de intersecção —, com diferentes vias de acesso à realidade.
Renunciando por agora a examinar as relações de natureza teórica entre mística e religião — bastará apenas ter em conta a existência de factos psicológicos vividos com intencionalidade religiosa e que se admita a passagem dum nível simplesmente religioso, uma vez verificadas determinadas condições, para um estado místico —, importa salientar que, entre as religiões habitualmente consideradas superiores (como o cristianismo, o judaísmo, o islamismo, o budismo), a mística corresponde a uma forma superior de conhecimento.
E é assim que, no cristianismo — para só aludirmos à religião que mais directamente se liga ao objectivo deste estudo —, a mística corresponde a uma forma elevada de conhecimento e de felicidade que Deus, pela comunicação da Sua própria vida, confere ao homem.
Mas convém considerar desde já duas questões que radicam em comum ponto de partida, uma do maior alcance, de natureza filosófica, e outra sempre presente nos autores espirituais: ambas partem da mística como vivência, da mística como manifestação radical humana extremamente rica e complexa, que consiste, simultaneamente, em experiência e conhecimento — ou, talvez melhor, num conhecimento experimental — da vida divina da graça no homem, nas mais íntimas e recônditas profundidades do ser humano, essa realidade a que Teresa de Ávila tão luminosamente deu expressão nas «moradas» do seu Castelo Interior.
A filosofia, afirmou com penetrante audácia J[ohann]. G[ottlieb]. Fichte, não é como um bragal de roupa que se tome ou se largue; a filosofia depende da espécie de homem que se é. E com isto postula-se que a filosofia, em qualquer tempo, parte duma vivência humana profunda. Como não haviam de existir, no caso dessa singularíssima e radical experiência que é a mística, fortes nexos entre os dois domínios?
Assim, a mística — ou misticismo — designa uma específica experiência humana que, pelas descrições — ou meros indícios apenas sugeridos — daqueles que a tiveram e a transmitiram, apresenta algumas características peculiares que permitem pôr em confronto, ao menos em grandes linhas gerais, o seu domínio próprio com o da filosofia.
Pela caracterização noética que propomos de filosofia — mesmo sem pretender para ela sentido unívoco —, que não inclui apenas uma explicação racional, completa e sintética do homem, do mundo e da vida, mas, simultaneamente, uma atitude do pensar em face do saber, um saber compreensivo da realidade, reflexivo e crítico, um saber que se preocupa com os fundamentos e significações últimas, essa noção não pode ser confundida com a simples vivência. Filosofia não é só vivência — embora as mais profundas criações humanas, as sínteses unitárias da filosofia, se desgarrem de vivências humanas intensas. Santo Agostinho, Descartes, Kant, Hegel e Kierkegaard são do asserto comprovação flagrante.» Idem, Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, pp.IX-X.
O «inefável concreto»
«Mística, palavra plurívoca — mesmo quando a expressão aparece hoje degradada na linguagem correntia, em acepções vinculadas a qualquer ideologia ou a certas actividades —, traduz sempre uma noção (em certos casos, decerto imprecisa e até confusa) relacionada com uma realidade, de algum modo ambígua, extra ou supra-racional, acessível através de uma intuição ou de uma experiência e revestindo-se de certo carácter sagrado, no sentido mais amplo, que suscita o respeito, a veneração.
Ora, até mesmo neste entendimento abusivo e deturpado, a mística contém no seu âmago um elemento — como denominador comum às demais concepções — de importância capital para a filosofia: está-se aí a valorizar uma certa realidade do espírito humano referido ao ens espiritual com tonalidade religiosa, cujo acento tónico se coloca, não no corpo doutrinal e objectivo das religiões, expresso formalmente numa conceptualização de conteúdo preceptivo, dogmático, moral, social, etc., mas sim no carácter espiritual e trans-racional dessas manifestações. Trata-se aqui — é importante frisar — da predominância de certo elemento, o inefável concreto, que aparece a caracterizar uma forma especial de conhecimento — mas que de modo algum implica a supressão de outras expressões, podendo coexistir com diferentes modalidades cognoscitivas, designadamente com o processo discursivo e racional.» Idem, Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, pp.XI-XII.
A mística more philosophico
«Entre as várias ciências do homem, a história comparada das religiões, a antropologia, a etnologia e a sociologia preocupam-se hoje, especialmente, com as manifestações e o significado dos vários tipos de mitos e de místicas, e esses contributos científicos permitem, com efeito, testemunhar até que ponto o autêntico misticismo corresponde a uma exigência humana profunda, a essa insistente procura do Absoluto, do Uno, do Transcendente, dando satisfação ao mais íntimo e radical apelo interior do homem, a essa experiência que se prolonga para lá das formas habituais da nossa acção e dos esquemas lógicos do nosso pensamento. Tratar-se-ia de uma tendência para uma realidade misteriosa, em sentido englobante, que é força e é luz e para a qual o ser humano se sente poderosamente atraído, tal como se dela participasse e a ela se unisse num todo unitário; e o facto de os veios mais fundos da mística e do mito (não obstante serem domínios tão distintos) continuarem na actualidade a alimentar, sob as formas mais insuspeitadas, a nossa civilização tem dado ensejo a sugestivas monografias, entre as quais se destacam as de um autor célebre, Mircea Eliade.
A mística corresponde, pois, a uma forte aspiração humana, recôndita e inefável, de natureza sacral, anterior e superior a toda a justificação racional e que se cifra numa actividade que tende, no seu termo, a levar a alma a comunicar com uma realidade de carácter absoluto — realidade que na maioria dos casos se designa por Deus, mas que pode assumir também outras expressões — o ser como ser, a alma do mundo, o todo cósmico, a natureza, etc.
Sempre que a filosofia se desenvolve no decurso das civilizações, ela depara com a mística e encontra-se então, historicamente, perante a necessidade, resultante da sua exigência interna, de lhe dar expressão inteligível, socorrendo-se da linguagem discursiva que lhe é específica, no sentido de fundamentar essa realidade, que, por sua natureza, transcende o próprio domínio racional e implica, segundo Gaston Berger, uma redução transcendental.
Deste modo, a mística, considerada more philosophico, como objecto de inquirição especulativa, integra-se, embora sem se confundir — até porque, como plano fundante, lhe é anterior —, numa explicação racional, integral e sintética do mundo e da vida.» Idem, Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, pp.XII-XIII.
Filosofia mística
«O cristão em geral — e particularmente o místico — tem um modo próprio de ser, que supõe uma visão escatológica do reino de Deus, a existência de um espírito, Deus, criador do mundo e transcendente ao mundo, princípio e fim do homem e reitor do acontecer humano; e daí resulta uma concepção de um destino humano que não se limita nem esgota neste mundo (embora ele se realize através da construção do mundo, da cidade dos homens e da autoconstrução do homem como orientação livre nesse mesmo mundo, e a edificação do reino constitua já, primordialmente, essa tarefa humana mediante a qual se realiza a presença — que é um desvendar ou uma revelação — do Espírito na história). E aqui a cidade dos homens é encarada dinamicamente, como prolongamento, continuação de algo que se projecta na cidade de Deus.
Esta visão origina e implica uma modalidade própria de ser no mundo, uma atitude específica perante a vida: a do homo viator, o transeunte que, na expressão antoniana, se encontra in via, que se ocupa das tarefas do mundo, mas se não deixa apossar por este, pois a meta situa-se mais além; isto mesmo o impede de dar valor absoluto ao que quer que seja — tudo é «meio», «finalidade para», tudo está em «relação a»: poucas situações podem marcar mais decididamente o homem que pensa, supondo uma tensão espiritual, dramática — e que irá dinamizar todos os seus conceitos, do homem e do mundo, do espírito e da matéria, da natureza e da graça, da antropologia e da moral, da razão e da fé, da ciência e da sabedoria, da metafísica e da mística.
A acção de filosofar apresenta-se assim como uma experiência segunda, a qual supõe, como intuição originária, uma experiência humana anterior, pré-filosófica, e que, no caso em apreço, é uma experiência cristã.
Assim, o místico cristão, quando filosofa, insere no âmago mais fundo, no cerne do seu filosofar, esta visão específica, intuição originária, que constitui o núcleo dinâmico, a força propulsora da sua actividade reflexiva.
Como filósofo, ele não rejeita nenhum domínio do pensar filosófico nem dispensa nenhum dos requisitos da actividade racional. Mas existe uma zona de radicalidade onde todo o homem, para filosofar, tem de se empenhar, de tomar decisões, de optar e decidir. E, aí, nessa dimensão interior e existencial do seu filosofar, quando o místico filosofa, não pode evitar que a sua criação se constitua em filosofia mística.» Idem, Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, pp.X-XI.
«Mas a filosofia é, não apenas explicação, mas também conhecimento compreensivo (desde Dilthey que, de modo explícito, se apresenta como óbvia a necessidade de distinguir entre compreender e explicar), e a mística surge aqui com idêntica intenção compreensiva: ela não é uma razão da fé, um sermo de Deo ao modo da teologia, mas antes uma fé cognoscente que estrutura a razão, uma gnosis que abrange compreensivamente a razão, como elemento informador desta. É assim que a filosofia mística se não pode entender apenas como uma filosofia sobre a mística, pois supõe, na sua radicalidade, uma estruturação filosófica específica. Neste sentido, história da mística e história da filosofia não podem considerar-se compartimentos estanques, antes, bem ao contrário, se encontram indissociavelmente ligadas, nas afinidades de uma origem comum (bastaria lembrar Platão, com o valor de paradigma, como fonte inspiradora da filosofia e da mística) e nos elos fortíssimos com que ambas se ligam às mais profundas significações da existência humana.
Um dos problemas de maior interesse para a filosofia que é suscitado pela mística incide, com efeito, na natureza de gnosis desta última, ou seja na mística considerada como forma especial de conhecimento directo e como sabedoria, implicando o esclarecimento preliminar do modo como se opera o trânsito do racional para o intuitivo e o sófico.» Idem, Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, p.XIII.
«Não difere muito desta noção de filosofia mística o entendimento que foi dado na Idade Média, à mística especulativa. Na essência, os textos medievais que contêm descrições de certas realidades da vida mística podem situar-se, ou a um nível de mera tradução de uma experiência amorosa do divino, directa e imediata — e ficaram-nos exuberantes testemunhos dessa mística afectiva e prática, como a dum frater Aegidius dos primórdios do franciscanismo —, ou, em plano diverso, ao nível duma speculatio, que abrange, de modo teórico, numa exposição doutrinalmente elaborada e com uma estruturação coerente, o mesmo campo da experiência mística prática, valorizando, sem as suprimir, as vias do conhecimento racional e intuitivo.» Idem, Santo António de Lisboa, Vol. II, Prefácio, p.XV.
A noite escura
«A posição de Santo António não se limitou, efectivamente, à indicação do símbolo da noite como tradução da luta espiritual para alcançar a união com Deus; indicou-lhe as três fases, ou partes, coincidentes, como em São João da Cruz, com o começo da noite escura, com a meia-noite e com o período de aurora, antes de começar a luz do dia (Deus).
Na primeira parte conseguiu, inegavelmente, a luta contra os sentidos: «Nox dicta quod noceat oculis; est tribulatio vel tentatio quae oculum rationis impedit» [«A noite, que tira o nome do facto de fazer mal aos olhos, é a tribulação ou a tentação, que impede o olho da razão.»]; «nox tentationis tunc est solitaria, cum consensum in homine non invenit, nec laude digna, cum ei homo non arridet, nec applaudit» [«A noite da tentação é solitária quando não encontra no homem consentimento; não é digna de louvor, quando o homem não lhe sorri nem aplaude.»]. «Tentationi se associat et eam laudat, qui et venientem suscipit, et susceptae in mentis imaginatione alludit.» [«Associa-se à tentação e louva-a quem aceita não só a que lhe sobrevém, mas também, em pensamento, se compraz na tentação passada.»] . É a tudo isto que o Santo se refere, quando, de seguida, diz que da graça da compunção perdida, «Prima et in recordatione propriae fragilitatis vel iniquitatis» [«A primeira consiste em recordar a própria fragilidade ou iniquidade»]. E explica «... noster est animus qui quoties ad temporalia petenda evagatur, toties a nobis recedit» [«... é o nosso ânimo. Sempre que divaga à procura de bens temporais, afasta-se de nós.»].
Na segunda parte, («ecce media nocte») e até o fim da noite, o Santo expõe e comenta a luta que subordina o texto: «Secunda, in considerationis praesentis exsilii» [«a segunda, em considerar o presente exílio»]. A alma suplica a Deus a graça de que necessita, está nas trevas da consciência, sente-se desorientada, cega e em extrema secura e dureza; mas tudo isto porque está exilada neste mundo e pretende regressar à pátria celeste. A luta é predominantemente espiritual; e todo o anseio é apenas espiritual; é, verdadeiramente, a noite do espírito, de São João da Cruz. A terceira parte coincide com o amanhecer, ou a aurora, e só então chega à ambicionada união com Deus, ou, como diz Santo António, à contemplação do Criador.» Idem, “Para o estudo das fontes do pensamento místico de São João da Cruz: sobre a doutrina da «noite escura»,” in Dispersos. Vol. III. Lisboa: INCM, 2000, pp.507-508. Texto traduzido na edição bilingue portuguesa: Santo António de Lisboa. Obras Completas. Porto: Lello & Irmão Editores, 1987, II, pp.902-903.
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Qual é a palavra de ordem para dizer a relação entre fé e razão, entre filosofia e mística?
2) Donde o interesse da filosofia pela mística?
3) Que significa o «inefável concreto»?
4) O que é que distingue uma filosofia mística de uma filosofia sobre a mística?
5) Que significa a «noite escura», como tema de filosofia mística?
Aula nº14 (4ª feira: 2/04/25)
Filosofia e mística: Carlos Henrique do Carmo Silva.
Religião, filosofia e mística. A mística como «iniciação à vivência espiritual». Uma definição-síntese do fenómeno da mística. A redução da mística a uma via devocional. O cristianismo não é teocêntrico. A mística não fala de Deus.
Carlos Henrique do Carmo Silva (n. 1947)
—. Experiência orante em Santa Teresa de Jesus. Lisboa: Didaskalia, 1986.
—. Deserto e metamorfose de vida. Lisboa: Graal, 2001.
—. Isabel da Trindade. Obras Completas. Trad. Carlos H. do C. Silva segundo a ed. crítica de Conrad De Meester. Marcos de Canaveses: Edições Carmelo, 2008.
—. “Tópos e ritmo da existência sacerdotal em Isabel da Trindade.” Revista de Espiritualidade, vol.19, n.73 (2011): 3-50.
—. “Pedagogia orante em Santa Teresa de Jesus.” Revista de Espiritualidade, vol.22, n.86 (2014): 1-54.
—. “Divina perfeição na sabedoria pré-socrática — da teogonia mítica a uma dramática ideal do theós.” In A Questão de Deus na História da Filosofia, vol.I, coordenado por Maria Leonor L.O. Xavier, 17-80. Sintra: Zéfiro, 2008.
—. “A mística não fala de Deus. Visão paradoxal da experiência mística.” In A Questão de Deus. Ensaios Filosóficos, coordenado por Maria Leonor L.O. Xavier, 357-410. Sintra: Zéfiro, 2010.
Da mística como «iniciação à vivência espiritual»
Religião
«A religião, seja entendida como re-ligação e restauro do holístico primordial, seja como um re-legere do cultivo ou cuidado do “culto”, ainda como referência do ritual, é um fenómeno civilizacional relativamente tardio, cuja origem está determinada por condições sociais da sedentarização dos povos, da organização de economias agrícolas e de formas especializadas de funções sociais. As religiões são grandes sistemas de simbolização integradoras de mitos e ritos em dogmas e liturgias que se traduzem em formas normativas e estruturais dos grandes Impérios, com carácter geográfico político e étnico. Organizam em crenças e formas de troca, no sacrificium como modelo de comércio, o ciclo da existência humana, por um calendário cósmico e pela ordem global designada por rta, numen, lógos… E passa-se do sagrado envolvente para uma especificação e hierarquização celeste e terrestre do numinoso fazendo advir a consciência do deus, qual tópico intermédio entre as manifestações concretas da realidade e a sua ulterior e abstracta entificação metafísica como ideia.
Entre o sensível empírico e a ideia já como o universal conceito situa-se o imaginário de um sensível imortal, ou de uma idealidade encarnacional, cruzando planos de realidade e definindo o âmbito fenoménico do panteão divino. Do ‘Deus vário’ e dos diversos níveis politeístas salienta-se depois o ritmo integrativo, seja de um henoteísmo, seja de um monoteísmo, que permitem ir apurando o sentido integrativo do divino.» Carlos Silva, “A mística não fala de Deus. Visão paradoxal da experiência mística,” in A Questão de Deus. Ensaios Filosóficos, coordenado por Maria Leonor L.O. Xavier, 357-410. Sintra: Zéfiro, 2010, pp.359-360.
Mística como propedêutica
«A mística não é essencialmente rito, mito, religião, teologia ou ciência religiosa e tal como a “lógica” no conjunto dos saberes que Aristóteles classificava em teoréticos, práticos e poiéticos, deveria situar-se como propedêutica ou mero organon, assim também pode considerar-se preambular ao passo daquelas formas extrínsecas do “religioso” ou do “sagrado” em geral em ordem à sua conjugação vivida, interior e decisiva para o que ali designámos como realização.
Porém, ainda que a dominância da mística historicamente se justifique na autonomização que lhe valeu ser realçada nessa invasion mystique do século XVI-XVII, o seu fenómeno a título de propedêutica, melhor dizendo, de iniciação à vivência espiritual, está ligado à alternativa do religioso oficial, do celeste Panteão olímpico, etc. – no que se consideram, outrossim, os Mistérios gregos e da Antiguidade mediterrânica. Religiosidades ctónicas e não astrais celestes, agrárias e da transmigração da vida ou das almas, sendo vias de realização que não apenas de crença, fazendo uso de ritos e símbolos para a epopteía e a libertação, ou a gnose e a apoteose.
E, seja na tradição dionisíaca, seja nos cultos mistéricos eleusinos, órficos…, seja no correlato análogo no shivaísmo hindu e oriental, etc., o que se encontra são iniciações mistéricas, tecnicamente realizadas em silêncio ou em estado cataléptico (ao menos suspendendo o vulgar entendimento…) mediante estímulos sensoriais (também de alimentos, libações, práticas sexuais, respiratórias… - como no yoga) conduzindo a tais estados místicos (ou de consciência alterada: visionários, hipnóticos e sonâmbulos, oníricos, teopáticos…).
Esta “metodologia” iniciática que está na origem (da religião) dos Mistérios vai ser postergada das técnicas do sono e da imediatez sensível para o plano da consciência vigil – no socratismo – e da mediação do lógos no primitivo sentido da philosophía como arte médica, iniciação pelo saber a uma realização lúcida…
Já não é a dormir (como se simboliza em Shîva, como deus do sono) e de forma autómata que se consegue atingir a libertação, a plenitude dita nada menos do que pela theósis, mas pela força da mente, pelo uso da capacidade universal da razão e, sobretudo, pela descoberta da intuição intelectual que permite a imediata consciência de si. Esta via filosófica (pitagórica, platónica, neoplatónica e ainda cristã dionisiana) faz da mística o equivalente a um método, a uma mediação erótica, poética, mântica… em ordem à sabedoria (sophía mas também sophrosýne) ou à harmonia de uma unio mystica.
Ora, é sabido que neste hiato entre a dialéctica gradual, assim mediada até misticamente, e o termo final ex abrupto indicado nessa unio mystica vai toda a dificuldade e até limitação da filosofia racional para dar o ‘salto’ de tal transcendência, como que a querer normalmente dizer que o pensamento, por elevada intelecção que seja, não é meio conforme para a união ontológica ou até supra-ontológica. Por outras palavras, reconhece-se que o era tomado como o eros, ou outro semi-deus deste dinamismo reflexivo, tem de se redescobrir como um poder subtil de tal transcendência, ainda que oculto no mais aparentemente “literal” das sensações, das experiências vividas. Poder místico da união que, então, se reconhece na ordem, já não do conhecimento, mas do ser como assimilação, como amor ou vontade…» Idem, op.cit., pp.363-366.
«Importa não esquecer a etiologia e a caracterização idiossincrásica que está na base da tradição grega dos Mistérios e da mystiké, como atitude passiva e de recepção de um dom, de uma iluminação, constituindo-se a Mística como preparatório ou fase sobretudo “purgativa” em ordem à unio. Ora, independentemente dos desenvolvimentos semânticos deste núcleo etimológico certo é que noutras civilizações não se encontra propriamente uma «mística», mas apenas ora uma gnose e até uma magia activa, ora uma sapiência, ora ainda uma arte como “técnica espiritual” de realização.» Idem, op.cit., p.378.
Definição-síntese
«Propõe-se, então, a seguinte definição-síntese do seu fenómeno:
A Mística é um fenómeno da dita “vida espiritual” que se exprime por uma linguagem apofática ou do indizível, no entanto assim narrada ‘autobiograficamente’, consistindo numa experiência predominantemente ‘passiva’, a qual em si mesma também não é qualificável, porém reconhecível como tal, ou seja, com um valor gnósico específico memorial ou até de ‘auto-conhecimento’, equacionada em vários exercícios ou técnicas relativas à “integração”, ou à consciência compreensiva de tal vivência assim absolvida no êxtase ou extremada numa outra “absolutização”, cujo discernimento assinala uma metamorfose interior e uma atenção mais completa ao efeito ‘disjunto’ e criativo desse estado.» Idem, op.cit., p.371.
A redução da mística a uma via devocional
«Como se sabe, (a) mística é a tardia substantivação (séc. XVI- XVII), do adjectivo misticus, advérbio mistice…, que qualificava um nível de interpretação ou de leitura e contemplação na vida espiritual, por seu turno transpondo o grego mystikós a partir da antiga acepção de “relativo a uma iniciação”, secreto ou críptico (seja derivado dos Mistérios órficos, eleusinos…, seja da sophía “en mystério” referida por S. Paulo). O importante sendo, para os Antigos, o termo deste modo de realização, o estado adquirido, a perfeição do acto, e não o modo, a economia dos meios ou o carácter mediativo para o atingir: a contemplação como resultado (seja como epopteía, ou como theoría…) e não enquanto “práxis”, aliás melhor dizendo, como técnica(s) para tal.
Se o que importa é a perfeição do ser, a atenção, outrossim ao ‘ser’ da perfeição corresponde a um declínio do primado ontológico da tradição sapiencial e a um desvio da religião integradora de tal “metafísica” no sentido da sua redução a uma via devocional. Tal como acontece no domínio da filosofia em que a referência metafísica é substituída pelo primado prático da ética, por exemplo em Espinoza, quando se afirma que “não é por ser bom que é desejável, mas por se desejar que logo será bom”, também contra a intelligentia fidei da Escolástica, (que estabelecia o primado da contemplação sobre o sentimento ou os afectos da religiosidade), se vê destronado este princípio valorizando-se a “mística” como o reflexo psicológico, imaginário e afectivo que até possa determinar um complementar nominalismo e descrença gnosiológica (CF. ESPINOZA, Ethica, IV, Prop. xiv). Então, a mística já não constitui um andamento da inteligência do ser, mas a absolutização problemática do “método” para tal, pondo em causa o acesso de tal inteligência, pelo renovado recurso a correntes voluntaristas alternativas, ou mesmo apontando para a superação da via catafática seja no apofatismo de uma transcendência inefável, seja na redução do sentido último a uma solução quieta e pragmática. Tendência esta que também tem o seu análogo na dialéctica do religioso, muitas vezes expressa pelo lema lex orandi, lex credendi, que salvaguarda o primado prático de uma liturgia, de um regime ritual e de matriz judaica bem mais determinante do que é a constituição dogmática típica da helenização do Cristianismo.
Porém, seja por via do excesso ou do defeito em relação a uma possível sapientia da Tradição, a mística é criticada como tal fenomenologia moderna própria de uma época de decadência em que a unidade de fé e razão se rompe, e em que a vivência espiritual fica essencialmente no âmbito da subjectividade literária e afectiva. Donde a passagem da Mística a um ‘misticismo’ ou a formas adjectivas de espiritualidade que subjectivam e relativizam o religioso em formas devocionais e estéticas, emocionais e sentimentais, apologéticas e morais, reduzindo o próprio cerne da vida mística a uma experiência excepcional, gratuita mas elitista.
E, quer na perspectiva protestante, da Reforma e da futura caracterização da religião como sentimento, quer na perspectiva tridentina romana que salienta o carácter excepcional dos estados místicos como carismas especiais, a mística sai reduzida respectivamente a uma subjectividade visionária e devota mais ou menos convicta e, por outro lado, a um conjunto de graças e dons que até podem manifestar-se à margem da fé como experiências extáticas ou constituindo fenómenos extraordinários de que se orna o imaginário das hagiografias.» Idem, op.cit., pp.373-374.
O cristianismo não é teocêntrico
«Como bem compreendeu o criacionismo judaico ao marcar até ao extremo a Transcendência de Deus, e também se reflectiu na atitude bíblica de denúncia ao pagão desejo de pretender atingir Deus pelo desejo do mesmo, o que está no cerne da vivência religiosa da fé cristã não é Deus: não há um teocentrismo, nem sequer uma genuína vocação teo-lógica como na filosofia grega. Outrossim, um Cristocentrismo, enquanto se adira por esse entendimento da fé, que ‘ninguém conhece o Pai senão pelo Filho que O revela’, sendo ainda necessário que esta centração na Revelação não seja uma doutrina exterior a quem assim se reconhece em termos de adesão vital, inteira ou espiritual.
Por um lado, fica patente a inversão do esquema helénico do desejo de Deus, no perceber ser-se desejado por Ele, no primado da atitude passiva ou, melhor dizendo, do estar activamente passivo (o fiat de Maria…), fazendo com que o discurso dos místicos seja o relato desse serem amados, dos favores, das graças ou infindas misericórdias que ficam ditas.
Por outro lado, se como lembra o Evangelho só pode testemunhar Jesus como o Cristo, validar aquele Cristocentrismo da Revelação, quem se encontre movido pelo Espírito Santo, ou seja, quem já se encontre transformado nessa participação da vida divina como relação, e relação revelada pelo Amor. Donde, nesta circularidade e nesta nova centração do mistério da Revelação da Transcendência um critério de um pessoal transcender-se.» Idem, op.cit., pp.401-402.
A mística não fala de Deus
«Pois era ela [Ângela de Foligno, Livro da experiência, I, 106] que registava acerca de si: “Quando vejo Deus assim na treva, não tenho sorriso nos lábios, nem devoção, nem fervor ou amor fervente. O corpo e a alma não experimentam tremor e a alma permanece fixa em vez de ser levada pelo seu movimento habitual.”
Eis a linguagem dos místicos, em larga medida falando de si mesmos e adentro nessa sua experiência, como se ela fosse d’Ele (de Deus), ou como se houvesse uma desmultiplicação desse nome em expressões próximas de tal ‘transcendental’ afecto, encontro, louvor… Quando, no fundo, o discurso tanto pode assim “cantar” Deus, como toda a infinda substituição do mesmo; e quando, esses muitos nomes da Pessoa, em especial no caso cristão do encontro com Jesus Cristo, faz da própria «pessoa» um heterónimo perpétuo, nunca se garantindo que o meu Jesus seja o Jesus, ou sequer o Jesus de outrem…
A subjectividade da narrativa mística torna-se ainda mais ocasião de perplexidades, não apenas quando se põe em causa de quê ou de quem se tem tal experiência narrada, mas também acerca de quem é o narrador, já que, por força da própria experiência espiritual, se dá uma transformação do sujeito e até uma sua superação.
De tal modo que, muitas vezes, no discurso místico já não se é quem se julga como autor ou narrador, sendo a ênfase e o dinamismo da narrativa a recriar o autor, sobretudo a confundi-lo com as projecções do ‘sagrado’, inclusive com a alteridade em causa.
Então, é bem certo que o regime espiritual altera os dados da evidência aparente e normal fazendo de si próprio o outro – “soi-même comme un autre” –, acabando o texto místico por aparecer para lá da teodramática dos diversos personagens. Por isso se diz que o discurso místico não fala de Deus, mesmo quando o aluda nominalmente, já que é na alteridade, e no irredutível da linguagem, que o “elemento místico” se manifesta.» Idem, op.cit., pp.384-385.
«Bastaria perceber que Deus fica a mais na narrativa mística, quer como ídolo mental facilmente denunciado pela verdade mais inteira da experiência espiritual, quer traduzido e antecipado na “pessoa concreta”, na instância única, no mistério estésico do mais imediato (que nem consente nome).
Porquê insistir em que tal seja “Deus”, quando pode constituir-se como um Absoluto absolutamente relativo ao momento, à Hora, ao Encontro, ao Inesperado… e inqualificável como tal.» Idem, op.cit., pp.384-385.
«Entre a Transcendência inefável e o discurso de meras projecções psicológicas estabelece-se assim a condição de uma realização espiritual, que identifica a experiência mística e a sua expressão como metamórfica participação em espírito, em excessos que rompem o funcionamento habitual das faculdades e permitem essa alteridade de presença assim extática. Eis o que reflecte o discernimento.
E neste processo não se trata de imediato de transmitir o que pretensamente Deus diga, antes de se escutarem, em tal despojamento ou vazio interior, o que S. Paulo refere como “os gemidos inenarráveis” do Espírito no mais íntimo. E esse andamento interior, que já não se pode confundir com um processo psicológico não sendo uma narrativa assim acerca de Deus mas, pelo contrário, um divino dizer-se em nós, ou seja, algo de muito subtil que nem se pode ainda ousar declarar.» Idem, op.cit., p.403.
«Deus? Deus é um luxo ou, então, aqui um impeditivo para a nua visão da Amada, da prioridade sofrida desta alma, justamente desta condição passiva que tipifica depois o discurso dominantemente feminino da mística em relação ao Amado, ao Amigo, ao Filho de Deus.
Realizar a vida nesse misticamente de tal ‘jeito’ de alma, amar assim, – não falar do Amor –, muito menos entificá-lo por tutela dogmática e cultural, como se a experiência extática sem essa referência pudesse assustar-se de ‘selvagem’, apenas espontânea e natural, até de ‘louca’ por esquizofrenia ou mesmo histeria… Como se todos estes medos, e desejos de seguranças ou garantias, não fossem ainda o expoente de que o trabalho essencial de uma consciência de si está por fazer, ou seja, de que a própria experiência mística acaba por se alienar em Deus em vez de reconverter à verdade de quem experimenta e sua divina transformação.» Idem, op.cit., p.404.
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Como se distinguem aqui religião, filosofia e mística?
2) Quais são os elementos que compõem a definição-síntese do fenómeno da mística?
3) Que significa a redução da mística a uma via devocional?
4) Que expressão ou expressões do texto melhor caracterizam o sentido da experiência mística?
5) Em que consiste o «discernimento»?
6) A mística não fala de Deus: porquê?
Aula nº15 (2ª feira: 7/04/25)
4. Duas visões da Idade Média: Francisco da Gama Caeiro e Joaquim Cerqueira Gonçalves.
Francisco da Gama Caeiro e uma nobre Idade Média: escola, escolástica e universidade com conotação positiva; a diluição da Idade Média na evolução histórica; a discretio antoniana, como exemplo dos valores medievais.
Francisco da Gama Caeiro e uma nobre Idade Média
Escola, Escolástica e Universidade
«Uma escola, como comunidade de convívio e de cultura, como espaço do trabalho intelectual de jovens que, por mediação das diversas modalidades do Ensino, recebem de homens de outra geração o estímulo de uma disciplina interior e a experiência de uma reflexão em comum, a Escola – dizíamos – tem também, tal como os humanos, uma memória.» F. Gama Caeiro, “Vieira de Almeida e a filosofia em Portugal” (1991), in Dispersos, Volume II, Lisboa, INCM, 1999, p.86.
«Na verdade, é filosofando que se aprende a filosofar, e se o aprendiz despreza o contacto diuturno com os grandes mestres, jamais chegará a ser um deles. – Essa directriz da Escolástica, se, por um lado, estimulou mais tarde um certo fixismo de sinal negativo para o ensino, esteve todavia na base de um desenvolvimento interno da sistemática filosófica e de um enriquecimento da Metafísica moderna, que não pode ser minimizado.» Idem, “Para um quadro das ideias filosóficas em Portugal no tempo de Camões (1520-1580)” (1979) e “O pensamento filosófico do século XVI ao século XVIII em Portugal e no Brasil” (1981), in Dispersos, Volume I, resp., pp.250 e 288.
«A permanência ininterrompida da instituição universitária, desde a sua fundação, deve-se porventura ao facto de ela ser, por antonomásia, um espaço de vida, um processo de humanização. – É, pois, o homem a grande questão da Universidade. – O homem, que é uma natureza, que vai sendo história, que é uma intenção de supranatureza e de meta-história.» Idem, “Elogio do Doutor Manuel Antunes” (Doutoramento Honoris Causa da Universidade de Lisboa, Lisboa, UL, 1981), in Dispersos, Volume II, Lisboa, INCM, 1999, p.160.
Uma Idade Média diluída na evolução histórica
«A Idade Média, como conceito e periodização – todos o sabemos –, encontra-se hoje posta em questão. Teria mesmo existido a Idade Média? Não será ela antes uma projecção dos mitos, dos sonhos, das nostalgias, do homem de outras épocas? A génese histórica do conceito trouxe decisivos esclarecimentos, no meio de perplexidades ainda subsistentes. Pelo menos, terá de se afastar dela o sentido de intermédia, de secundária, em jeito de cunha entre dois momentos paradigmáticos que seriam a Idade Antiga e a Idade Moderna, impondo-se hoje em dia a nova interpretação que no Medievo vislumbra em larga medida a Idade Moderna, ou, se se preferir, que na Idade Contemporânea se reconhecem estruturas medievais, como Jacques Le Goff veio corroborar no seu estudo já clássico, Para um novo conceito de Idade Média.» “Instituições e espiritualidade medievas em Portugal” (1990), in Dispersos, Volume III, p.404.
«A Bíblia era realmente o mundo dos medievais, como a literatura era o mundo dos autores gregos. – E a Bíblia não estimulava menos o homem medievo do que os poetas gregos inspiraram os filósofos que os comentaram. Quer isto significar que é sobretudo perante um mundo cultural que o homem vive e pensa. E, assim, a actividade racional do homem vai manifestar-se pensando esse mundo, comentando esse mundo, tal como aconteceu ainda na mentalidade grega e depois se verificou na interpretação do texto sagrado pelos cristãos.» Id., Santo António de Lisboa, Volume I: Introdução ao Estudo da Obra Antoniana, Livro II, Cap. I, p.196.
«Existe uma arte de pensar, fecundada desde a Idade Média na disciplina do triuium, pela lógica aristotélica e a retórica clássica, uma arte que exige uma prática, um artesanato, longo e exigente enfim, que moldou o pensamento ocidental. Essa prática supõe o exercício de confronto com os outros pensares, a crítica, a argumentação.» Idem, “O pensamento português nos próximos 25 anos” (1984), in Dispersos, Volume II, Lisboa, INCM, 1999, p.237.
«Muitos afirmam que a aceitação de Aristóteles e dos processos racionais para uma alteração e aperfeiçoamento da exegese patrística e enriquecimento da cultura ocidental irrompeu de modo súbito no fim do século XII e começo do século XIII. – E. Gilson mostra, porém, que a introdução se fez lentamente. Há, diz ele, escolástica já na teologia do século XII, como há patrística na teologia do século XIII. – E é isto o natural. O movimento das novas ideias não corre como a avalanche dos rios. Impõe-se pouco a pouco, pelo seu valor ou pela força da respectiva sedução, e vai fazendo carreira, enquanto as ideias contrárias reagem apegadas ao antigo, para só lentamente cederem no que mereça ser substituído ou dominado. A história ensina que é este o processo normal da evolução.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume I: Introdução ao Estudo da Obra Antoniana, Livro II, Cap. III, pp.322-323.
«Os últimos anos de vida do Santo decorreram, assim, quando estava a aumentar a pressão no sentido da adopção dos novos processos racionais, de origem aristotélica, mas ainda se encontrava viva a defesa dos meios tradicionais, mantida sobretudo pelos místicos, cujas exigências doutrinais naturalmente mais os afastavam da nova orientação. Podia esperar-se que o Santo, não obstante o seu génio e a sua clara visão, fosse alheio ao condicionalismo da transição em que viveu e compôs a sua obra. É, pelo contrário, motivo de justa admiração ver como ele, em tais circunstâncias, pôde ir fazendo a sua progressiva evolução e adaptação.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume I: Introdução ao Estudo da Obra Antoniana, Livro II, Cap. III, p.362.
Valores medievais: a discretio antoniana
«E, se é certo que a tendência do seu espírito para o equilíbrio, para uma interpretação sensata da vida, assente sobre a virtude da discretio, que ele tanto elogiou, lhe aconselhava uma atitude prudente perante o novo movimento de ideias, que alguns dos seus amigos, como Tomás Galo, olhavam com desconfiança, mesclada de antipatia, o Santo acabou por ver que a novidade no alargamento e transformação dos processos racionais constituía um avanço humano para a compreensão mais alta e mais perfeita das verdades cristãs, útil, portanto, para o progresso da religião, para convencer os que se desviavam por erro do recto caminho e para o encaminhamento para Deus das almas sequiosas de luz.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume I: Introdução ao Estudo da Obra Antoniana, Livro II, Cap. III, p.327.
«Santo António introduz, porém, nesta altura do processo ascensional contemplativo, um novo elemento, pleno de interesse espiritual, a um tempo esclarecedor e moderador: é a discretio. – A sua noção fundamental é-nos sugerida pela própria raiz da palavra: na verdade, etimologicamente, discretio significa discernimento, aptidão para distinguir o bem do mal ou o justo meio entre dois termos, e, por extensão, ainda designa o efeito do discernimento: a medida – a proporção platónica que realizava a beleza e a virtude (Filebo, [66] AB) – ou a actividade que, segundo Aristóteles, consistia em decidir-se pelo justo meio (Eth. Nic., B, 6, 1106b, 36).» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap. I, pp.28-29.
«A discretio é, pois, para Santo António, um agente espiritual activo e equilibrado, o nos vero in medio, tradução do in medio virtus aristotélico, tantas vezes aplicado por ele, impedindo exageros da razão onde ela não deva entrar, ou restringindo-lhe o campo de acção no que tenha de ser reservado à fé e no que respeite ao objecto íntimo da contemplação, ou distinguindo o vício da virtude e o bem do mal, contribuindo também para a realização prática e exequível do bem e das boas obras que no seu íntimo cada um tenha previamente previsto ou discernido para as executar equilibradamente. – É esta uma das articulações que a discretio estabelece entre o domínio do conhecimento especulativo e o da razão prática e que se exprime concretamente pela valorização do harmónico, do adequado, do justo, do ponderado, do conveniente, ou, numa palavra, pela virtude da prudência.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap. I, p.31.
«Mas o que sobretudo importa frisar agora, pelo papel essencial que desempenha na economia da doutrina antoniana, é a relação especial que a discretio vem determinar entre as virtudes, ou faculdades, éticas e as dianoéticas. – As virtudes dianoéticas, como perfeições que são do puro entendimento, estabelecem um plano do conhecimento intelectual; e tais virtudes vão manifestar-se nas formas especiais que o saber e a sabedoria revestem. Antes de ser um acto da razão prática, a discretio é um acto da inteligência e do recto juízo.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap.I, p.29.
«É a discretio que permite ponderar, dosear razoavelmente, todas as coisas, calcular o esforço de cada homem para a perfeição segundo as suas forças actuais e a medida de graça, de modo que ele não exceda os limites pessoais, mas também se não quede timidamente aquém destes limites. E, assim, a discrição supõe o conhecimento de si – um verdadeiro nosce te ipsum –, o discernimento exacto das reais possibilidades do homem e da justa apreciação das circunstâncias, correspondendo sempre a um recto juízo. Dentro da moldura doutrinal do chamado socratismo cristão, a discretio havia de constituir um elemento dinamizador do pensamento místico antoniano.» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap. I, p.30.
«E, com efeito, o Santo lembra, alegoricamente, que, tal como no rosto do homem foram ordenadamente dispostos três sentidos: a vista, o olfacto e o gosto, havendo o olfacto sido colocado como uma balança entre a vista e o gosto, da mesma forma, «no rosto da nossa alma» a sabedoria do Sumo Artífice colocou três sentidos espirituais: a vista da fé, o olfacto da discrição («olfactus discretionis») e o gosto da contemplação. – Com o olfacto moral, ou seja com a virtude da discrição, a fé pressente as lutas da carne, das paixões, e as ofensivas da razão vã contra a alma; e, como se aquela fora um baluarte, defende esta dos ataques da tentação demoníaca. Além disso, a discretio é necessária à fé para que não queiramos aproximar-nos a ver a sarça ardente, «desatando a correia dos sapatos», e a investigar os segredos da Encarnação divina. Crê somente – conclui o Santo – e isso bastará (S, 59 b).» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap. I, p.30.
«O Santo representa por Benjamim a graça da contemplação e por Raquel a razão humana, explicando que, nascendo Benjamim, morre Raquel, porque, quando a alma, depois de elevada sobre si na contemplação, pretende indagar alguma coisa sobre a luz da divindade, toda a razão humana soçobra. E acrescenta que a morte de Raquel é o desaparecimento da razão, e, por isso, alguém (aludia a Ricardo de São Vítor) disse: «Ninguém com a razão humana chega ao ponto em que São Paulo foi arrebatado (II Cor., XII, 2-4). Seja, pois, o olfacto da discrição como que uma balança entre a vista da fé e o gosto da contemplação, para que o rosto da nossa alma resplandeça como o Sol.» (S, 59 b.)» Idem, Santo António de Lisboa, Volume II: A Espiritualidade Antoniana, Cap. I, p.31.
Duas perguntas sobre o valor da discrição (discretio) antoniana:
1) Como se distingue a discrição antoniana do conceito actual de discrição?
2) Haverá alguma conexão entre o «olfacto da discrição», que Gama Caeiro destaca em S. António e o «discernimento» dos místicos, segundo Carlos Silva?
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Balanço da influência de Gama Caeiro na minha perspectiva sobre a Idade Média na História da Filosofia
- A Idade Média sem descontinuidades abruptas no contínuo da evolução histórica.
Também sempre valorizei os laços de continuidade da filosofia medieval com a filosofia antiga, sem contraste disruptivo; e também aprendi a entender a novidade, ou a diferença, em resultado de longos processos de gestação. A título de exemplo, mencione-se a formação de um conceito positivo de infinito.
- A Idade Média como reserva de valores e compensação das carências espirituais do homem moderno.
Também me afeiçoei à filosofia da Idade Média como compensação das carências da filosofia contemporânea: o silêncio sobre o tema de Deus, a partir do decreto nietzschiano da morte de Deus; e a desarmonia entre as categorias ontológicas para uma compreensão unitária da realidade.
A primeira carência, o silêncio sobre o tema de Deus, conduziu-me à coordenação do projecto PTDC/FIL/64249/2006 «A Questão de Deus. História e Crítica»: https://aquestaodedeus.blogspot.com/
A segunda carência, a desarmonia entre as categorias ontológicas ou a percepção da filosofia como uma ontomaquia — ser (ontologia de Heidegger) contra o ente (metafísica tradicional); a existência (existencialismo, animalismo anti-especista) contra a essência (essencialismo tradicional); a existência objectiva (filosofia analítica) contra a existência subjectiva (fenomenologia); a subsistência dos universais contra a existência espácio-temporal (B. Russell); o outro (ética de Lévinas) contra o ser (ontologia de Heidegger); ... — conduziu-me a admirar a metafísica dos medievais, na qual todas estas categorias se encontram harmonicamente articuladas, e na qual tem origem o conceito moderno de ontologia.
Aula nº16 (4ª feira: 9/04/25)
4. Duas visões da Idade Média: Francisco da Gama Caeiro e Joaquim Cerqueira Gonçalves.
Joaquim Cerqueira Gonçalves e a moderna Idade Média: “A Modernidade nasceu na Idade Média” (1999); a grande viragem histórica da filosofia antiga para a moderna-medieval; a nova dimensão da historicidade; “Ditos de Joaquim Cerqueira Gonçalves” sobre o valor da história vs. natureza.
Joaquim Cerqueira Gonçalves e a moderna Idade Média
“A Modernidade nasceu na Idade Média”
«A Europa e a Idade Média. — A Ideia de Europa tende a confundir-se, para a sociedade do nosso tempo, com os valores e os feitos da Modernidade e a ampliar-se, num esforço de enraizamento de fundamentação, à cultura greco-romana, sobrevoando dez séculos pletóricos de história, a Idade Média. Mas esta bem pode considerar-se o epicentro histórico da Europa, logrando, neste caso, um sentido positivo a designação de Idade Média, ao indiciar uma posição central. A cultura greco-romana ter-se-ia certamente mumificado, por falta de húmus vital, caso os medievais não a tivessem assumido e metamorfoseado, com a intensidade e amplitude da sua existência e especulação.
Por outro lado, as grandes questões, em termos culturais, do início da Modernidade nada mais são do que prolongamentos dos grandes temas da medievalidade. Uma cultura perdura e enriquece-se abrindo-se a outras culturas, por acolhimento e irradiação, precisamente o que sucedeu na Idade Média. Seria impossível imaginar a dinâmica passada e presente da Europa, sem os ideais da cidade grega, sem a amplitude do império romano, sem a presença dos povos bárbaros, sem a mensagem bíblica, vivida e interpretada por judeus, cristãos e, em larga medida, pelo islamismo.
Todo este caldeamento teve lugar na Idade Média, e assim se fixaram em vectores que ainda hoje perduram, na sua configuração essencial. Deve-se, em parte, a essa capacidade de acolhimento, que a Idade Média manifestou, o poder de expansão que a Europa moderna veio a conhecer. A Europa das liberdades, do saber, dos valores universais e da fraternidade não se alimentou apenas da participação de dois extremos temporais, a Antiguidade e a Modernidade, tendo na Idade Média a fase de gestação, o momento que as vicissitudes da interpretação histórica por vezes ocultaram, mas que é sempre determinante, cuja importância vem sendo progressivamente reposta.» J. Cerqueira Gonçalves, “A Modernidade nasceu na Idade Média” (1999), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem. Lisboa: INCM, 2011,pp.98-99.
«A grande viragem histórica da filosofia antiga para a moderna‑medieval
A modernidade da Idade Média: «Nós vamos estudar a Idade Média porque estamos dentro dela.» FM 98/99; «Nós somos muito mais filhos da Idade Média do que da Idade Antiga.» FM 98/99
A unidade da filosofia medieval e moderna: «Há dois grandes autores a ler, que são Platão e Kant: Platão, um antigo; Kant, um moderno, um medieval, um cristão e um contemporâneo.» FM 83/84; «Quase tudo o que está na filosofia moderna, já estava mais ou menos explicitamente na filosofia medieval.» FM 83/84; «Sem o cepticismo tematizado do séc. XIV, não seriam compreensíveis os irracionalismos e os racionalismos modernos, nem o maquiavelismo.» FM 86/87; «É muito difícil compreender Kant, o maquiavelismo e o liberalismo moderno, sem o séc. XIV.» FM 87/88; «Não obstante a discordância de princípio com a divisão da história da filosofia em épocas, é preferível a divisão em duas épocas, antiga e moderna, marcada esta pelo legado bíblico‑cristão, à divisão em três épocas, antiga, medieval e moderna.» FM 98/99 Maria Leonor Xavier, “Ditos Filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves”, in Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, org. por DEPARTAMENTO e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Lisboa: Edições Colibri, 2001, p.89.
Novidades filosóficas da Idade Média
Novos focos temáticos, como a existência, a liberdade e outros: «A filosofia medieval foi marcada por dois horizontes cristãos: o da existência e o da liberdade.» FM 82/83; «Em Aristóteles, o saber tem de caber na formulação das quatro causas. Aristóteles não formulou a questão: por que é que as coisas existem? Porquê a existência?» FM 82/83; «A filosofia medieval pergunta radicalmente pelo porquê da existência, no horizonte cristão da Criação e da liberdade, o que era impensável na filosofia antiga.» FM 83/84; «A prioridade da existência nunca fora problematizada nem tematizada no mundo grego; o existencialismo tematizou-a apenas ao nível antropológico; o tomismo tematizou-a a um nível mais radical, o ontológico (contra Avicena, para quem a existência era um acidente).» FM 84/85; «Aristóteles preferiu a causalidade formal à material. Depois do cristianismo, pergunta-se pela causa das formas e pela da existência: porquê eu, porquê aqui, porquê agora (Pascal)?» FM 86/87; «S. Tomás de Aquino pôs uma questão que Aristóteles não pôs: a questão da causa da existência das coisas (Criação) e não apenas a da causa do movimento e do alimento das coisas, que eram eternas.» FM 98/99; «As principais novidades das filosofias medievais são acerca do infinito, da matéria, da vontade e da pessoa.» FM 83/84; «Mundo, liberdade e história são as três grandes categorias inovadoras da cultura medieval.» FM 86/87» Maria Leonor Xavier, “Ditos Filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves”, in Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, org. por DEPARTAMENTO e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp.89-90.
A nova dimensão da historicidade
«Não obstante a maioria dos humanistas ser inequivocamente cristã, haviam perdido, do horizonte religioso que os norteava, uma das mais significativas categorias, a da historicidade, que estimularia a mudança e a sensibilidade ao novo, em vez do regresso ao momento primordial. Nesta ausência de historicidade, os humanistas eram certamente mais pagãos do que cristãos. Nem só a Idade Média havia sido mensageira e protagonista de realidades — e linguagens — inéditas, mas, enquanto o entusiasmo com a linguagem antiga escamoteava, com a manutenção do seu vocabulário, supostamente imutável, as reais mudanças que lhe subjaziam, a mundividência medieval, por efeito do cristianismo, era de tal forma inédita e transformadora que, na própria linguagem, se viria a sentir essas inexoráveis descontinuidades, não sendo, então, possível disfarçar o novo com a pátina linguística do antigo, do atemporal.
No entanto, mais do que a insensibilidade ao novo, o que está aqui em causa é a relutância à aceitação de uma das mais importantes categorias bíblicas já referida, a historicidade, sendo tal resistência o maior sintoma da presença activa da cultura antiga nas mentalidades cultas ulteriores, ou, então, o índice da ausência da temporalidade no exercício da razão, seja ele de teor filosófico ou científico. Aliás, embora a Idade Moderna se considere vitoriosa pelo facto de a ciência por ela cultivada dissipar ou, pelo menos, atenuar a filosofia, uma leitura mais distanciada, como a do nosso tempo, estriba-se em boas razões para ver na racionalidade científica a continuidade da racionalidade filosófica ocidental. Mas precisamente este modelo filosófico e científico de razão dificilmente se concilia com a dimensão da historicidade, ao contrário do que sucedeu com a exegese e teologia cristãs, que tematizavam expressamente o Logos histórico, progressivamente manifestado, até atingir a plenitude em Cristo. Com efeito, quando o maniqueísmo, que rejeitava o Antigo Testamento, onde se descreve a criação, segundo essa doutrina obra da Divindade má, denunciava a incoerência dos cristãos, ao aceitarem os dois Testamentos, cujas mensagens são, ainda segundo a interpretação maniqueísta, claramente opostas, já que bom é somente o Deus redentor do Novo Testamento, os exegetas e os teólogos realçavam a unidade de toda a Bíblia, onde se sucedem, cadenciadas no tempo, reais, mas não opostas, diferenciações. Esta decisiva metamorfose da racionalidade diferenciava, flagrantemente, o modelo da racionalidade grega e da racionalidade moderna, relativamente à razão histórica, vivida pelo cristianismo. Este acentuava o sentido positivo da multiplicidade ontológica e histórica. A Idade Média, se bem em graduação diversa, com realce para a sensibilidade à temporalidade do augustinismo, desenvolveu, em diferentes domínios, a dimensão da historicidade, como, por exemplo, na questão da temporalidade/ eternidade do mundo e do intelecto universal/ individual. Ora, faz parte da razão histórica a inesgotabilidade de horizonte, que perturba uma das principais características da racionalidade científica, a determinação fechada e a previsibilidade, pelas quais aliás lutou a epistemologia antiga, consignadas no fatalismo — na moira —, fundamentalmente caracterizado pelo contingente cego, o imprevisível e o aleatório.» J. Cerqueira Gonçalves, “A Idade Média: Razão ou Mito?” (2009), in Itinerâncias da Escrita, vol. I – Cultura/ Linguagem. Lisboa: INCM, 2011,pp.90-91.
“Ditos de Joaquim Cerqueira Gonçalves” sobre o valor da história vs. natureza
«A valorização da história, por influência do cristianismo: «O cristianismo é a religião mais portadora de uma mensagem histórica.» FM 83/84; «A Idade Média tem uma ideia positiva de história, enquanto movimento que participa da eternidade.» FM 86/87
A valorização agostiniana da história: «O agostinismo é um grande movimento historicista.» FM 87/88; «Toda a tradição ocidental, que valoriza a história, é de estirpe agostiniana.» FM 98/99
A história para além da essência: «Para Aristóteles, a história nada acrescenta à essência; o medieval considera, com a essência, o estado da essência, isto é, a situação histórica, o que supõe a vulnerabilização da essência ao tempo.» FM 86/87; «A filosofia medieval introduz o tempo na essência e acentua a importância da relação entre as essências.» FM 86/87
O valor da história em oposição ao valor da natureza: «A tendência para a natureza corresponde normalmente a uma fragilização da categoria da história.» FM 83/84; «O mundo agostiniano é muito mais voltado para a história, enquanto o mundo tomista é muito mais voltado para a natureza.» FM 83/84; «O mundo de possibilidades infinitas é o mundo da história, não é o cosmológico.» FM 84/85; «São inversamente proporcionais os valores da natureza e da história, ou da cultura.» FM 85/86; «A Idade Média está muito mais centrada na cultura e na história do que na natureza. Deus manifesta‑se na contingência da história e essa contingência não é necessariamente irracional.» FM 98/99
A natureza em relação com a cultura: «Tem pertinência a ideia de natureza, desde que não a reduzamos a uma só natureza.» FM 86/87; «Não há nenhuma natureza fixa.» FM 86/87; «A cultura é expressão de natureza.» FM 86/87; «A Idade Média é responsável pela fragilização da ideia de natureza: esta é uma ideia cultural. Antes da natureza, há Deus criador.» FM 98/99» Maria Leonor Xavier, “Ditos Filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves”, in Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, org. por DEPARTAMENTO e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Lisboa: Edições Colibri, 2001, p.79.
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Tem sentido separar a filosofia moderna da filosofia medieval? Porquê?
2) Tem sentido separar a filosofia medieval da filosofia antiga? Porquê?
3) Como é que Cerqueira Gonçalves propõe dividir a história da filosofia?
4) Quais são as grandes novidades filosóficas da Idade Média?
5) Qual a importância do augustinismo para Cerqueira Gonçalves?
6) Como é que o valor da história afecta o binómio natureza-cultura?
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Balanço da influência de Cerqueira Gonçalves na minha perspectiva sobre a Idade Média na História da Filosofia
Nunca me preocupei com a aproximação da Idade Média à Modernidade, porventura: porque o magistério de Cerqueira Gonçalves tornou óbvia essa aproximação; e porque os meus estudos não se concentraram na Idade Média tardia e na transição para a Idade Moderna, pois recuei, por sugestão e orientação do Mestre, primeiro, ao estudo de S. Agostinho (Patrística), para avançar depois, na linhagem augustiniana, para o estudo de S. Anselmo (Pré-escolástica). Tendi mais a sublinhar as continuidades entre a filosofia antiga e a filosofia medieval, levando esta a participar da dignidade e da imortalidade dos clássicos.
Aprendi a estudar S. Agostinho e a reconhecer a importância do seu pensamento, não só na Filosofia Medieval como na História da Filosofia.
2ª feira: 14/04/25 — Páscoa
4ª feira: 16/04/25 — Páscoa
Aula nº17 (2ª feira: 21/04/25)
5. O valor da história da filosofia: Joaquim Cerqueira Gonçalves.
A questão da relação entre filosofia e história da filosofia: uma antinomia do estudo da filosofia; Martial Gueroult, sobre a história e a filosofia da história da filosofia. Joaquim Cerqueira Gonçalves em defesa da historicidade da razão e da filosofia: uma filosofia da razão histórica; historicidade da filosofia; história da filosofia, mas não cronológica.
A questão da relação entre filosofia e história da filosofia
Como qualquer atividade humana de considerável complexidade, a filosofia confronta-se, no seu exercício e comunicação, com problemas e contradições internas, sobre os quais não pode deixar de refletir. Esses conflitos de fundo, que sentimos com acuidade no estudo da filosofia, tendem por vezes a extremar-se como verdadeiras contradições internas da filosofia. Podemos, por isso, formulá-los como antinomias. Uma dessas antinomias é aquela que opõe o estudo da filosofia por disciplinas temáticas ao estudo da filosofia pela sua história. Tese: a filosofia estuda-se através da análise direta de temas e problemas, abstração feita da sua história. Antítese: a filosofia estuda-se através das filosofias existentes ao longo da sua história. Embora os currículos dos cursos de filosofia incluam disciplinas temáticas e disciplinas de história da filosofia, os agentes do ensino dos dois tipos de disciplinas disputam de facto entre si o próprio terreno da filosofia.
No século XX, esta antinomia tomou a forma explícita de questão da relação entre a filosofia e a história da filosofia, e desenvolveram-se exponencialmente, até aos dias de hoje, os estudos de história da filosofia. Não é, por isso, de admirar que, no âmbito das tensões internas que são inerentes à filosofia, o filosofar reivindique um espaço próprio, sobre o qual não se abata de pronto o peso da história da filosofia. É essa vindicação do filosofar, compreensível à partida, que se amplia em tendência e chega por vezes ao extremo de excluir a história da filosofia do espaço próprio da filosofia. A filosofia não é história da filosofia: esta é uma das posições antinómicas que se pronunciam na questão da relação entre filosofia e história da filosofia. A outra posição antinómica é: a história da filosofia é filosofia. Deste lado da antinomia, situa-se Martial Gueroult, filósofo e historiador da filosofia que centrou o seu pensamento filosófico na questão da relação entre a filosofia e a sua história. Esta questão deu mesmo origem à conceção de uma disciplina filosófica e de uma obra intitulada Dianoématique, que se divide em dois livros: o primeiro faz uma história da história da filosofia em três volumes de estudos, que só foram publicados postumamente entre 1984 e 1988 - Vol. I: Histoire de l’histoire de la philosophie, en Occident, des origines jusqu’à Condillac (1984); Vol. II: Histoire de l’histoire de la philosophie, en Allemagne, de Leibniz à nos jours (1988); Vol. III: Histoire de l’histoire de la philosophie, en France, de Condorcet à nos jours (1988) -; o segundo é um livro de filosofia da história da filosofia - Philosophie de l’histoire de la philosophie (1979).
Os volumes de história da história da filosofia mostram que, nas filosofias de todas as épocas, há sempre um olhar sobre o pensamento do passado. Esse olhar pode ser favorável ou desfavorável, mas, em todo o presente da filosofia, há um olhar sobre o passado da filosofia. Uma vez que há sempre uma consciência do passado que é parte integrante da filosofia do presente, não se pode separar, de facto, a filosofia da sua história: os estudos de Gueroult comprovam-no. Mesmo quando uma época da história da filosofia manifesta pouco interesse em refletir sobre a sua relação com o passado, isso não quer forçosamente dizer que essa relação não subsista, antes pode significar que essa relação está tão integrada no presente que não se constitui objetivamente como problema: tal é o que ilustra a filosofia medieval. Numa questão escolástica, a disputa convoca para o mesmo foro os contemporâneos e os antecedentes mais ou menos remotos, como se nenhuma distância temporal separasse uns dos outros. Deste modo, a filosofia do passado está presente de pleno direito na filosofia da época, e, por isso, Gueroult considera que a Idade Média é a época de ouro da história da filosofia (Martial Gueroult. Histoire de l’histoire de la philosophie, en Occident, des origines jusqu’à Condillac. Paris: Aubier, 1984, p. 112). Nem todas as épocas da história da filosofia produziram obras de história da filosofia, como aquelas que se começaram a fazer no séc. XVIII, com Johann Jacob Brücker - Jakobi Bruckeri Historia critica philosophiae a mundi incunabilis ad nostram aetatem perducta. 1ª ed. (5 tomos), Leipzig, 1742-1744, 2ª ed. (6 tomos), Leipzig, 1766-1767 -, considerado «o pai da história da filosofia» por Victor Cousin, mas, em todas as épocas, a filosofia comporta uma relação mais ou menos refletida com a sua história.
Por seu turno, no livro de filosofia da história da filosofia, Gueroult esclarece o conceito de filosofia que o conduz a valorizar as filosofias do passado: a filosofia não é uma cópia ou representação da realidade, mas antes uma criação de realidade; a filosofia não é uma teoria sobre o real, mas antes uma real criação teórica. Se a filosofia fosse uma teoria sobre o real, todas as filosofias seriam provisórias, como as teorias científicas. As filosofias, porém, permanecem disponíveis, como estrelas fixas no firmamento da história da filosofia, sem se anularem ou refutarem umas às outras, porque «realidades singulares não se contradizem, enquanto que verdades discordantes sobre um mesmo original são incompatíveis e destroem-se irremediavelmente» (M. Gueroult, Philosophie de l’histoire de la philosophie. Paris: Aubier Montaigne, 1979, p. 232. Trad. nossa). Gueroult valoriza as filosofias do passado, atribuindo-lhes um carácter absoluto, em função da índole criativa da filosofia:
«Eles [os sistemas] valem, como pretendem, de uma maneira exclusiva e absoluta, são verdades totais e não parciais, mas cada um na sua esfera. Ora esta absolutidade (absoluité) no interior de uma esfera própria não é possível senão porque não se trata, para cada um deles, de refletir uma realidade que lhe é exterior, mas de constituir cada um deles uma realidade que lhe é própria e interior.» M. Gueroult, Philosophie de l’histoire de la philosophie, p. 225. Trad. nossa.
Acompanhamos Gueroult no reconhecimento deste traço criativo da filosofia, mesmo que não alinhemos com a absolutização das filosofias.
Entre nós, aprendemos com Joaquim Cerqueira Gonçalves a valorizar a história filosofia, sobretudo, pela sua filosofia da razão histórica.
Joaquim Cerqueira Gonçalves em defesa da historicidade da razão e da filosofia
Maria Leonor Xavier, “Ditos Filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves”, in Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, org. por DEPARTAMENTO e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp.61-115.
Uma filosofia da razão histórica
Um cepticismo sadio: «Não dominamos nem o princípio nem o fim do conhecimento, ele está necessariamente em aberto. Todas as determinações são temporárias e destinadas a passos futuros.» FM 78/79; «Como nós não sabemos tudo, há que duvidar do que sabemos.» FM 82/83
A razão não se faz sem tempo: «Nós pensamos como se …, porque pensamos num processo e o processo ultrapassa-nos.» FM 82/83; «A razão não existe, faz‑se.» FM 87/88; «A razão não é intemporal. Pelo menos, a razão medieval, apoiada pela ideia de infinito, era uma razão aberta.» FM 98/99
A razão é vida: «A razão é vida, que se vai manifestando historicamente nas relações humanas.» FM 82/83; «A razão é um apelo da vida.» FM 82/83; «A razão, faculdade pura, não existe.» FM 83/84
A razão não é sem cultura: «A razão, em grande parte, é a organização da cultura.» FM 86/87; «Nós não temos a razão vazia; nós temos a razão cheia de tradição.» FM 86/87; «Há tantas razões quantas as culturas, quantos os mundos que organizamos.» FM 86/87
A razão não é substância, é organização: «A razão não é substantivo, mas adjectivo: a realidade é que é racional; a razão não existe.» FM 86/87; «Razão implica organização, coerência entre as partes; o que é racional, não é avulso.» FM 86/87; «A razão é um processo que se vai organizando na relação das razões finitas.» FM 86/87; «As coisas são racionais, quando estão relacionadas umas com as outras.» FM 86/87; «O conhecimento é a procura da mediação entre as coisas que não estão imediatamente articuladas.» FM 98/99
O centramento filosófico da razão: «A história da filosofia, porventura, nada mais é do que uma prolongada tentativa de definir e até de elaborar a razão.» FM 85/86; «Porquê o nosso fascínio pela razão? Porque estamos ligados a tudo; por isso, acreditamos naturalmente que tudo tem sentido.» FM 86/87; «Os critérios da razão podem ser ou mentais ou transcendentes (exs.: o Bem, em Platão; Deus, no cristianismo).» FM 86/87
A razão é histórica: «A historicidade da razão significa relativismo? A nossa razão não é relativa, mas histórica, participada.» FM 86/87; «A razão é englobante e histórica.» FM 86/87; «A ideia de progresso é outra característica inerente da razão, embora o progresso da razão não seja linear, estando sujeito a regressões.» FM 86/87; «A razão constrói‑se.» FM 86/87; «A razão é histórica, não pode quedar‑se em alguma das suas expressões.» FM 87/88
Histórias da razão contra a historicidade da razão: «A doutrina da dupla verdade, no séc.XIII, não atende à historicidade da razão.» FM 82/83; «A dupla verdade traduz a dificuldade de admitir uma verdade que é vida e que é histórica.» FM 86/87; «A história da razão, no mundo ocidental, esteve estreitamente associada à laicização da razão, que teve tendência para anular a própria história.» FM 83/84
Tendências cruzadas acerca da razão: «Toda a razão tende a ser universal, mas cada grupo tende a apossar‑se dela.» FM 86/87; «Ou se alarga o sentido de razão ou ficamos com a oposição do racional ao irracional.» FM 86/87;
A razão em relação com o amor: «O amor cria a razão, a hierarquização axiológica.» FM 86/87; «A razão deve limitar‑se por amor; quando assim se limita, não se limita.» FM 86/87
A razão admite diferenças: «Há três considerações diferentes de razão: a razão científica, a razão dialéctica e a razão mística. A primeira é horizontal, a segunda é em espiral, e a terceira é vertical.» FM 86/87
Historicidade da filosofia
Historicidade, uma propriedade essencial da filosofia: «A historicidade é co‑natural à filosofia.» FM 82/83; «Filosofia é história da filosofia.» FM 82/83; «Não há filosofia de direito; há filosofia de facto. A filosofia não é aquilo que ela deve ser, mas aquilo que ela foi e aquilo que ela é capaz de ser.» FM 82/83; «Se a realidade é mutável, a filosofia é mutável.» FM 85/86; «A historicidade faz parte da definição de filosofia.» FM 86/87
A filosofia em oposição à ciência, quanto à respectiva historicidade: «Se a historicidade é inerente à filosofia, tal não é óbvio para a ciência, embora seja mais fácil fazer uma história da ciência. A filosofia não prescinde do passado; a ciência vive renegando o passado.» FM 82/83; «Enquanto o cientista é muitas vezes insensível à historicidade, esta é essencial ao filósofo.» FM 83/84; «A historicidade é constitutiva da filosofia, mas talvez não seja, da ciência.» FM 83/84; «À filosofia é intrínseca a ideia de tradição, de historicidade; à ciência, não.» FM 85/86; «Todo o saber é insensível à história, o que não significa que o saber não seja histórico.» FM 86/87; «Em ciência, um paradigma substitui outro paradigma; em filosofia e nas ciências humanas, não há substituição, tudo é integrado, nada é esquecido.» FM 98/99
A questão do reconhecimento da historicidade da filosofia: «Por que é que não se discutiu durante tanto tempo o problema da historicidade da filosofia? Por causa do prestígio da filosofia grega, aliás pouco sensível à história.» FM 86/87; «A filosofia é considerada histórica ou não, consoante o sentido do nosso agir e conhecer.» FM 86/87; «Sem a vivência do tempo, da nossa unidade e da nossa diferença, não entendemos a história da filosofia, nem nos apercebemos de que a filosofia é estruturalmente histórica.» FM 98/99
História da filosofia, mas não cronológica
A filosofia tem o seu próprio tempo: «A filosofia cria o seu próprio tempo, a sua própria história.» FM 78/79; «Fazer história da filosofia é criar um tempo filosófico» FM 82/83; «Fazer filosofia é criar tempo, é encontrar o passado e apontar para o futuro.» FM 98/99
A história cronológica da filosofia não é a história do tempo próprio da filosofia: «Uma história cronológica da filosofia pode ter uma configuração completamente diferente de uma história em que a filosofia cria o seu próprio tempo.» FM 78/79; «A seriação cronológica dos filósofos não corresponde, não coincide com as respectivas inter-influências.» FM 82/83; «Em filosofia, não há anacronismo.» FM 98/99
A história da filosofia, como hermenêutica: «A história da filosofia é depoimento sobre a idêntica e perene filosofia.» FM 82/83; «É um facto que a história da filosofia tem sido um comentário à filosofia grega.» FM 82/83; «É um facto que a filosofia medieval é uma exegese da filosofia antiga.» FM 82/83
Em questão, os critérios de organização para uma história não cronológica da filosofia: «Em filosofia, é discutível o modelo heideggeriano de progresso, segundo o qual o progresso está no desvelamento do ser encoberto pela ciência; é talvez preferível o critério da grandeza do mundo construído pelo filósofo: quanto maior é o mundo tanto mais progressivo ele é.» FM 83/84
Exemplos: «O mundo de Parménides é muito mais excessivo do que o de muitos filósofos contemporâneos; estes passam depressa.» FM 83/84; «Por ser uma época de excesso, a Idade Média estava fadada para ser uma época de interpelação.» FM 86/87
Maria Leonor Xavier. “Ditos filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves.” In Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, organizado pelo Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Lisboa: Edições Colibri | CFUL | FCT, 2001, pp.80-82.
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Exercício sobre os “Ditos filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves”
1) Escolher um dito por convergência e procurar fundamentá-lo;
2) Escolher um dito por divergência e procurar refutá-lo.
Aula nº18 (4ª feira: 23/04/25)
5. O valor da história da filosofia: José Barata-Moura.
Dois pares de antecedentes da questão da relação entre filosofia e história da filosofia: Platão e Aristóteles; Kant e Hegel. José Barata-Moura e a solução dialéctica da oposição entre filosofar (Kant) e filosofia (Hegel): “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?” Philosophica 6 (1995): 51-69.
Dois pares de antecedentes da questão da relação entre filosofia e história da filosofia:
Platão e Aristóteles; Kant e Hegel
A antinomia do estudo da filosofia sem ou com história está hoje extremada, mas não é nova. A consideração de alguns antecedentes pode ajudar a compreendê-la, pelo menos, a todos aqueles que, como nós, incluem a história da filosofia na razão compreendente.
Recuemos aos clássicos Platão e Aristóteles, não porque eles tivessem formulado a antinomia, tal como nós a percebemos hoje, mas porque ambos, de certo modo a pressentiram.
Platão concebeu a filosofia como dialética, isto é, uma arte do diálogo (República, VII, 531 d - 533 d). O caminho metódico do conhecimento era o diálogo vivo entre dois ou mais interlocutores contemporâneos entre si e concomitantemente animados por esse propósito. Em consonância com esta concepção de filosofia, assente no método dialógico, Platão desprezou a escrita, como um discurso morto, que diz sempre o mesmo e que não pode defender-se sem o auxílio do seu autor (Fedro, 275 d - 276 b, 276 e - 277 a). Apesar desse desprezo, Platão não renunciou à escrita; mas, em virtude desse mesmo desprezo, o filósofo não deixou de cultivar o diálogo nos seus escritos filosóficos, instaurando e legando à posteridade o diálogo como género literário da filosofia. Aquém deste legado, retiremos as consequências da posição de Platão: a filosofia faz-se no diálogo entre contemporâneos, não nos escritos dos filósofos anteriores, pois o discurso deles já não pode ser senão um discurso morto. Portanto, Platão coloca-se do lado da filosofia sem história.
Já Aristóteles vem colocar-se do outro lado da antinomia, isto é, do lado da filosofia com história. Aristóteles já reconhece a realidade da escrita como uma linguagem segunda, que regista e imita a fala nas suas principais características, tais como a diferença das línguas e a relação com o mesmos estados de alma (Da Interpretação, 16 a 3 - 8). Em concordância com a sua maior sensibilidade à escrita, Aristóteles não só elabora um dicionário de termos filosóficos (Metafísica V), como termina o livro I da Metafísica com uma história da filosofia (983 b 8 - 993 a 25), isto é, com um discurso sobre o pensamento dos filósofos já mortos. Com que propósito? Repetição do já pensado? Carência de pensamento próprio? Exibicionismo de erudição? Não. Nada disso. Antes, com o propósito de perceber a diferença e o acréscimo do seu próprio pensamento. Aristóteles enceta a sua história da filosofia a partir do seu interesse filosófico por um tipo de princípios, que são as causas, as quatro causas — material, eficiente, formal e final — e encontra nos filósofos anteriores os descobridores de quase todas elas, menos da causa final, aquela de que ele próprio pretende dar conhecimento na ordem dos princípios do real. Aristóteles precisou de fazer história da filosofia para afirmar a novidade do seu pensamento quanto às quatro causas. Não é possível perceber o que é novo senão relativamente ao já feito ou adquirido. Por isso, não é possível a perceção da novidade, esquecendo os antecedentes. Numa época de adoração da novidade, como é a nossa, esquecemos frequentemente esta lição aristotélica.
Em suma, Platão e Aristóteles pressentiram a antinomia entre a filosofia sem história e a filosofia com história porque se colocaram realmente nos dois lados opostos da antinomia: Platão, do lado da filosofia sem história; Aristóteles, do lado da filosofia com história. Eles não tiveram a intenção de refletir sobre esta oposição, mas ela emerge já de forma nítida em consequência das posições que tomaram. Platão e Aristóteles constituem, por isso, uma dupla antinómica matricial na questão da relação da filosofia com a sua história.
*
Num outro tempo da história da filosofia, encontra-se uma outra dupla antinómica nesta questão, mas bem mais consciente dos dois lados da antinomia: trata-se de Kant e Hegel. Como indica, desde logo, o título do ensaio de José Barata-Moura — “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?” [Philosophica 6 (Lisboa, (1995): 51-69] — a antinomia entre a filosofia sem história e a filosofia com história tomou, então, a forma de uma oposição entre o filosofar e a filosofia.
Kant exortou a «aprender, não filosofia, mas a filosofar». O foco da aprendizagem é o próprio exercício do pensar filosófico, de modo que o ensino deve estar inteiramente apostado em estimular esse exercício pessoal e autónomo do pensar. A exortação de Kant é uma reivindicação da autonomia do pensamento. E quem discorda de tal? Não se encontra. Ainda hoje, uma das faces mais apelativas da filosofia é essa reivindicação. A tese do filosofar representa a autonomia do pensar filosófico na presente antinomia. E a autonomia do filosofar é o fundamento da autoria em filosofia. O discurso filosófico é sempre um discurso de autor.
Hegel não questiona isso, embora se coloque do outro lado na antinomia entre filosofar e filosofia. Em modo de antítese, Hegel adverte para «não filosofar sem filosofia», pois ensinar, não filosofia, mas a filosofar, seria como ensinar a carpinteirar, não a fazer uma mesa, uma cadeira, uma porta, um armário, etc; ou seria como viajar sem conhecer as cidades, os rios, as terras e os homens. De acordo com estas metáforas do carpinteirar e do viajar, ensinar a filosofar sem filosofia seria conduzir uma demanda sem conteúdo. O ensino da filosofia não pode abstrair do conteúdo, da matéria do pensar. É o requisito do conteúdo do filosofar que Hegel vem reivindicar. E, com este requisito, vem a história da filosofia, pois nela encontra o filosofar o seu próprio conteúdo em abundância. Ensinar a filosofar com filosofia é o mesmo que ensinar filosofia com história.
Deste modo, Kant e Hegel constituem um par antinómico de relevo na questão da relação entre a filosofia e a sua história. Kant e Hegel sentiram claramente a antinomia entre a filosofia sem história e a filosofia com história, e pensaram-na sob a forma da oposição do filosofar à filosofia. Na recepção de José Barata-Moura, a antinomia não se resolve senão hegelianamente, isto é, dialeticamente, através de uma síntese superadora da oposição entre tese e antítese: «Não há filosofia sem filosofar; não há filosofar sem materialização.».
José Barata-Moura e a solução dialéctica da oposição entre filosofar (Kant) e filosofia (Hegel)
José Barata-Moura, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?” Philosophica 6 (1995): 51-69.
A antinomia
«O tema — em diferentes registos e regimes, glosado — da oposição de «filosofia» e de «filosofar» ilustra bem como uma fixação antinómica, sem deixar de ser indício, carece, todavia, de músculo para dar conta adequadamente da plena concreção e desenvolvimento de uma relação dialéctica.
Abrindo a autoridade de Kant como sombrinha, há quem preconize a valorização em exclusivo de um «filosofar» desembaraçado da ganga bafienta, e da teia emaranhante, da «filosofia» constituída.
Invocando o profano nome de Hegel (em vão), pretendem outros — para efeitos de encómio ou de denegrimento — assacar-lhe a tese de que a filosofia não passa de história da filosofia, isto é, de que o filosofar a mais não aporta do que a um repisar rememorante do, no passado, pensado.
Ocorre, em alguma medida, com os posicionamentos tendenciais que acabo de esboçar o que tantas vezes acontece em produções cénicas grand standing quando há precipitação no enfarpelamento. O guarda-roupa destinado à função transmite aproximadamente uma ideia geral da época e do ambiente em que a acção se desenrola, mas logo por infortúnio o olho da câmara, ou do espectador mais propenso a minúcias, vai poisar num pormenor que só na aparência encaixa no conjunto: ao desenvolver plasticamente este plano do olhar apenas se está a distorcer o que era suposto aprofundar-se.
Impõe-se, por conseguinte, que examinemos esta questão com mais algum cuidado e detenimento, no sentido de procurarmos, designadamente, elucidar
— o teor genuíno das posições de Kant e de Hegel no que respeita ao tópico «filosofia» e «filosofar»;
— os objectivos polémicos e teoréticos centralmente perseguidos pelas respectivas concepções;
— a trama principal em torno da necessária materialização do pensar e da (filosoficamente exigida) apropriação pensante dos materiais.» José Barata-Moura, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?” Philosophica 6 (1995): pp.51-52.
Kant em defesa do filosofar: «aprender, não filosofia, mas a filosofar»
«Sempre que Kant entende pronunciar-se sobre o conceito de filosofia — em textos por ele próprio preparados para publicação, em anotações destinadas a serem utilizadas em lições, ou em apontamentos de aulas que por intermédio do registo de alunos até nós chegaram — deparamos com uma contraposição principial entre «filosofia» e «filosofar».
Penso que a tese central de Kant tem um alcance exortativo ou pedagógico. Como ele inscreve numa das suas Reflexionen (Reflexões sobre a Lógica): «Nicht philosophie, sondern philosophiren lernen.» (n.1: Immanuel KANT, Reflexionen zur Logik, n. 1629; Ak., vol. XVI, p. 50), «aprender, não filosofia, mas a filosofar»!
No entanto, também se nos deparam, noutros passos, recorrentes declarações de princípio:
— a filosofia não é ensinável — «die Philosophie nicht gelehret werden kann» (n.2: KANT, Vorlesungen über Logik. Logik Philippi; Ak., vol. XXIV.1, p. 321), «a filosofia não pode ser ensinada»;
— a filosofia não é aprendível — «Man kann keine philosophie lernen, wohl aber philosophieren lernen» (n.3: KANT, Reflexionen zur Logik, n. 1652; Ak., vol. XVI, p. 66), «não se pode aprender filosofia nenhuma, mas sim aprender a filosofar».
Por que não é a filosofia ensinável ou aprendível, segundo Kant?
Fundamentalmente, porque a filosofia não é uma mera informação que se adquire e acumula, mas um exercício de racionalidade que o filósofo tem de assumir originalmente como criação sua.» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, pp.52-53.
«No magistério filosófico ou na relação pedagógica, tal como Kant as entende, o próprio acto de filosofar passa, nestes termos, a assumir o papel central e estruturante.
[...].
É indispensável que uma experiência do pensar esteja também presente e possa ser comunicada/ensinada como método do filosofar, ou seja, é imperioso que «der Lehrer selbst philosophirt habe» (n.12: KANT, Vorlesungen über philosophische Enzyklopädie; Ak., vol. XXIX,1.1, p. 6), que «o próprio professor tenha filosofado». Revela-se, por conseguinte, incontornável «fazer uso de mais razão no método da razão», «in der Methode der Vernunft mehr Vernunft zu gebrauchen» (n.13: KANT, Vorlesungen über Logik. Wiener Logik; Ak., vol. XXIV.2, p. 797)
[...].
A uma «filosofia disciplinar» (Philosophia disciplinaris), capaz de reproduzir e de entender uma conexão ou um sistema de proposições (ein Zusammenhang, System, der Sätze), tem assim de sobrepôr-se uma «filosofia habitual» (Philosophia habitualis), uma destreza para poder filosofar (eine Fertigkeit philosophiren zu können) (n.16: KANT, Vorlesungen über Logik. Logik Philippi; Ak., vol. XXIV.1, p. 321).
A habitualidade não ostenta, neste contexto, qualquer rasgo de monótona rotina ou de reverberação costumeira, mas bem pelo contrário um sentido quasi-aristotélico (n.17: Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, Δ, 20, 1022b 4-6) de assunção interiorizada de uma proficiência pronta a irromper e a, a partir de si, determinar-se, qual «segunda natureza».
É, pois, esta «filosofia habitual» (habituelle Philosophie) que, segundo Kant, não pode ser ensinada — ou não pode ser ensinada como outras noções que integram outros saberes. Apenas se pode aprender a evoluir (evoluiren) nela: não há que ensinar/aprender definições, mas tão-só a poder encontrá-las ou descobri-las (erfinden können) — «Os livros filosóficos servem apenas de ocasião para expressar, segundo um método filosófico, pensamentos seus», «Die philosophischen Bücher dienen nur zur Gelegenheit seine Gedanken methodo philosophica auszudrücken.» (n.18: KANT, Vorlesungen über Logik. Logik Philippi; Ak., vol. XXIV.1, p. 322)» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, pp.54-55.
«Kant não exclui liminar e principalmente o saber da esfera da filosofia; apenas o relativiza e subordina a uma tarefa de maior fôlego e amplitude: «ohne Kenntnisse wird man nie ein Philosoph werden, aber nie werden auch Kenntnisse allein den Philosophen ausmachen» (n.42: KANT, Logik, Einleitung, III; Ak., vol. IX, p. 25), sem conhecimentos ou noções nunca ninguém se tornará um filósofo, mas também nunca apenas conhecimentos ou noções farão o filósofo.» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, p.59.
Hegel também defende a autonomia do pensar filosófico:
«Hegel cura meditadamente de sublinhar que a autoria é congenital e estruturante de todo o pensamento: «’O meu pensar próprio’ é, propriamente, um pleonasmo. Cada um tem de pensar por si; nenhum pode pensar pelo outro.» - «’Mein eigenes Denken’ ist eigentlich ein Pleonasmus. Jeder muβ für sich denken; es kann keiner für den anderen denken.» (n.55: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 80).
Mais: é esta conjunção de Denken e de Selbstdenken, radicalmente assumida, que inaugura e abre, do ponto de vista subjectivo e do ponto de vista cultural, o próprio espaço da filosofia.
A fonte da verdade não é mais o revelado por dispensação divina, o dado que naturalmente se constata, ou o positivo historicamente instituído. A filosofia emerge quando a autoria triunfa da autoridade: «A este subministrar de um outro fundamento que não o da autoridade chamou-se filosofar.» - «Dies Unterschieben eines anderen Grundes, als den der Autorität, hat man Philosophieren genannt.» (n.56: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 80-81).» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, p.62)
Hegel em defesa do conteúdo da filosofia: «não filosofar sem filosofia»
«Surgem, assim, três aspectos a fazer ressaltar:
a) Não há filosofia desprovida de um teor, ou de um contorno (objectivo) em que ganha corpo, e a partir do qual pode ser identificada e recuperada (para novos desenvolvimentos): «a filosofia há-de ter e de ganhar um conteúdo positivo; não filosofar sem filosofia» - «die Philosophie soll einen positiven Inhalt haben und gewinnen; nicht philosophieren ohne Philosophie» (n.64: HEGEL, Konzept der Rede beim Eintritt des philosophisschen Lehramtes an der Universität Berlin; TW, v. 10, p. 405), anota Hegel à margem do texto da sua lição inaugural na Universidade de Berlin.
b) Não há ensino de puras formas metódicas, vazias de conteúdo determinado em que se plasme. É significativo o recurso à metáfora da produção artesanal de que Hegel lança mão num dos seus aforismos de Jena: «Kant é citado com admiração (Bewunderung) por ensinar, não filosofia, mas a filosofar; como se alguém ensinasse a carpinteirar, mas não a fazer uma mesa, uma cadeira, uma porta, um armário, etc.» (n.65: HEGEL, Aphorismen aus Hegels Wastebook; TW, vol. 2, p. 559).
c) Correlativa e convertivelmente, todo o aprendizado envolve uma constitutiva referência intencional: aprende-se alguma coisa, ou melhor: a fazer alguma coisa, isto é, a feitura devém uma ingrediência do próprio saber efectivo. Num texto de 1812, é desta vez a metáfora da viagem que abre o passo à elucidação: «Segundo a mania (Sucht) moderna, em particular da pedagogia, não deve tanto ser-se instruído no conteúdo (Inhalt) da filosofia, como se alguém houvesse de aprender a filosofar sem conteúdo; isto significa, aproximadamente: há-de viajar-se, e de viajar-se sempre, sem conhecer [ou aprender a conhecer, kennenlernen] as cidades, os rios, as terras, os homens, etc.» (n.66: HEGEL, Über den Vortrag der Philosophie auf Gymnasien; TW, vol. 4, p. 410).
A conclusão — a um tempo teorética e institucional — a que Hegel pretende chegar é a de que «a filosofia tem de ser ensinada e aprendida, tal como qualquer outra ciência» o tem de ser também, «Die Philosophie muβ gelehrt und gelernt werden, so gut als jede andere Wissenschaft» (n.67: HEGEL, Über den Vortrag der Philosophie auf Gymnasien; TW, vol. 4, p. 411).
Só que esta tese hegeliana sobre o magistério e o estudo filosóficos não corresponde — contrariamente ao que por vezes costuma ser admitido — a uma opção pela «filosofia» (constituída) em detrimento do «filosofar».
É precisamente essa antinomia, e o modo metafísico e abstracto (não dialeticamente concreto) de com ela lidar, que Hegel principialmente rejeita como quadro em que o problema possa e deva ser tratado.
O aprender filosófico, para Hegel, é constitutiva e incontornavelmente um Selbstdenken, um pensar por si; mas é ainda algo mais: um Selbsttun (n.68: HEGEL, Über den Vortrag der Philosophie auf Gymnasien; TW, vol. 4, p.412), um agir por si.
No aprender da filosofia, aprende-se a filosofar e filosofa-se mesmo: «Assim, ao aprender a conhecer o conteúdo da filosofia, aprende-se não só o filosofar, mas filosofa-se também já realmente.» — «So, indem man den Inhalt der Philosophie kennenlernt, lernt man nicht nur das Philosophieren, sondern philosophiert auch schon wirklich.» (n.69: HEGEL, Über den Vortrag der Philosophie auf Gymnasien; TW, vol. 4, p. 410)» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, pp.65-66.
«É que o conteúdo que a filosofia nos dispensa devolve-nos essencialmente a um património de humanidade e a um pensar da própria historicidade do ser.
A história da filosofia não se limita a proporcionar «a galeria dos heróis da razão pensante» (die Galerie der Heroen der denkenden Vernunft) (n.70: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 20) para efeitos de piedosa reverência contemplativa; tão-pouco nos propicia um repositório de atafulhados ramalhetes doxásticos, destinados a adornar selectas conversações informadas, ou a alimentar uma bizantina tecelagem de «opiniões a partir de opiniões» (Meinungen aus Meinungen) (n.71: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 30).
A filosofia, na configuração múltipla de positividade histórica, abre aos humanos «um tesouro» (ein Schatz): «o produto que resulta do trabalho dos génios pensantes de todos os tempos» — «das resultierende Erzeugnis der Arbeit der denkenden Genies aller Zeiten» (n.72: HEGEL, Über den Vortrag der Philosophie auf Gymnasien; TW, vol. 4, p. 412).
Este património encontra-se disponível (vorhanden) para ser apreendido (fassen), a fim de que, pela sua frequentação pensante, com ele nos cultivemos (anbilden) num escopo, colectivo, de o continuar a desenvolver (weiterbilden) (n.73: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 22).
Para Hegel, a filosofia — como é sabido — forma um sistema; mas é imperioso não esquecer, sob pena de deturpação grave do seu teor, que ela é constitutivamente: «System in der Entwicklung» (n.74: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 47), sistema em desenvolvimento — na tripla acepção de que possui um passado (a ser conhecido e a fazer frutificar), de que mobiliza um presente de diversificados confrontos com ela, de que aponta a um futuro de tarefas de e em realização.
A filosofia, para Hegel, é sem dúvida filha do seu tempo, «elo em toda a cadeia do desenvolvimento espiritual» (Glied in der ganzen Kette der geistigen Entwicklung) (n.75: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 65); é uma limitação estrutural que carrega consigo enquanto penhor e testemunho da sua radical implantação mundana.
Mas a filosofia é também — no quadro de uma peculiar dialéctica hegeliana de entardecer que convida à re-colecção e de aurora que anuncia o raiar de novos sóis (n.76: Cf. K.L. MICHELET, Aus meinem Leben; Hegel in Berichten seiner Zeitgenossen, ed. Günther Nicolin, Hamburg, Felix Meiner, 1970, pp. 330-331) — «die innere Geburtstätte des Geistes, der später zu wirklicher Gestaltung hervortreten wird» (n.77: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p.75), «o sítio interior do espírito que, mais tarde, há-de adiantar-se em configuração real».
É por isso que a tarefa (Aufgabe) fundamental da filosofia se desenha como um conceber de aquilo que é (das was ist zu begreifen) (n.78: HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, Vorrede; TW, vol. 7, p. 26); não no sentido de uma mera conformação à positividade do existente, mas no horizonte de uma perscutação dialéctica (e, no limite: prática) da sua racionalidade.» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, pp.67-68.
J. Barata-Moura em defesa da dialéctica entre filosofar e filosofia
«O lugar que o ensino da filosofia ocupa no sistema educativo é função, explícita e implícita, de uma filosofia de ensino, e da representação que uma colectividade faz da sua relação com o pensar.
Aprender não é «importar» e repetir; é apropriar para desenvolver. Ensinar, não é «transferir» ficheiros, é criar condições e pasto para uma aprendizagem.
Educar, não é amestrar, nem adestrar, nem paramentar; educar é eduzir, é conduzir para fora na abertura a um destino de configuração histórica do real.
Não há filosofia sem filosofar; não há filosofar sem materialização. É precisamente a aprendizagem e o exercício que rompem e prolongam em prática um círculo só abstractamente vicioso.
A filosofia é, decerto, feiticizável; mas não é uma «coisa», é um acto de relação connosco, com os outros, com o mundo e com a história: envolve teoria e compromete prática.
Termino de maneira abrupta. Alguns entenderão que «à bruta».
Num tempo em que sucessivos despachos ministéricos apontam e apostam na menorização, no debilitamento, na asfixia do cultivo da filosofia em Portugal, importa meditar revitalizadamente algumas palavras de Hegel: «Temos de não acreditar que as perguntas da nossa consciência, que os interesses do mundo actual, se encontram respondidos pelos Antigos.» (n.81: HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; TW, vol. 18, p. 64).
De facto, somos nós que temos de responder, pensando e agindo.
Na sentença do insuspeito Henri Bergson: «Il faut agir en homme de pensée et penser en homme d’action» (n.82: Henri BERGSON, L’ Académie Française vue de New York par un de ses membres; Ecrits et Paroles, ed. R.-M. Mossé Bastide, Paris, PUF, 1959, vol. III, p. 613).» Idem, “Filosofia e Filosofar. Hegel versus Kant?”, pp.68-69.
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Exercício sobre os textos citados de José Barata-Moura:
1) Como é que Barata-Moura entende a máxima kantiana: «aprender, não filosofia, mas a filosofar»?
2) Seleccione os passos mais significativos acerca da solução dialéctica da antinomia entre o filosofar e a filosofia, segundo José Barata-Moura.
3) Que significa “materialização” na máxima de José Barata-Moura: «Não há filosofia sem filosofar; não há filosofar sem materialização»?
Aula nº19 (2ª feira: 28/04/25)
6. O problema do ateísmo contemporâneo: Manuel Antunes e Manuel da Costa Freitas
Manuel Antunes: «Deus morreu ... E depois?» (1972). As causas da morte de Deus. Falar de Deus com consciência dos limites humanos.
Manuel da Costa Freitas e o ateísmo contemporâneo: a compreensão de um problema. A «inevidência» de Deus: a autonomia da ciência, o problema do mal, a liberdade humana e a criação. As críticas ao cristianismo e a questão da origem dessas críticas.
Manuel Antunes: «Deus morreu ... E depois?» (1972)
Tomo IV — Religião, Teologia e Espiritualidade — da edição crítica da Obra Completa (= OC), coordenação científica de Hermínio Rico, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
«Deus morreu ... E depois?
Depois foi o que se sabe. Depois foi a sua substituição pelos ídolos: o ídolo da Vontade de Poder, o ídolo da Classe, o ídolo do Partido, o ídolo da Raça, o ídolo da Ciência, o ídolo da Técnica, o ídolo da Líbido, o ídolo do Valor, o ídolo da Mamona, o ídolo do Grande Dinossauro, o ídolo da Estrutura. Que sei eu? O processo das substituições está ainda em curso, sem que se lhe veja termo certo.» Antunes, OC, T.IV, p.81.
Longa citação de F. Nietzsche, Gaia Ciência (1882), §125.
«Pensa Heidegger, no comentário que, nos Holzwege [Caminhos de Floresta], dedica a esta página de Nietzsche, que o Deus aí declarado morto é, directa e imediatamente, o Deus cristão mas que, extensivamente, esse nome engloba também todos os «valores» da metafísica platónica da tradição ocidental.
[...].
Lida a passagem de Nietzsche e referida a linha-mestra da interpretação do seu grande comentador actual, encontramo-nos agora, porventura, em melhores condições de repetir a pergunta de há pouco: que se ganhou com isso? Que lucrou a humanidade com a morte de Deus? Lucrou sequer alguma coisa? Uma vez libertos do Pai, vivem os irmãos mais unidos e fraternos? Uma vez desaparecida a Grande Presença, incómoda, procedem eles, de facto, como adultos? Uma vez declarada írrita e nula a posição da Origem, conhecem eles melhor de onde vêm? Uma vez eliminadas da linha do horizonte a orientação do sentido e a significação do fim, sabem eles melhor para onde caminham? Ou nada disso lhes interessará, bastando-lhes apenas a dimensão do presente que eles admitem, sem poderem deixar de o fazer, ser transitória e sem inteira consistência?» Antunes, OC, T.IV, pp.83-84.
As causas
«Se quiséssemos enumerar as causas dessa extinção, dessa noite que parece ter desabado sobre tantas mentes humanas, reduzindo a questão de Deus quase a uma questão privada, talvez se pudesse dizer que as principais foram as seguintes:
- a multiplicidade e a imperfeição de representações do mesmo Deus;
- o abuso do Seu nome, para tudo e para nada o fazendo intervir, sem freio de correcção e sem pudor, mesmo em coisas e momentos bem humanos — bem demasiado humanos — de opressão do homem pelo homem;
- a ligação histórica da sua realidade ou da sua invocação a estruturas sociais que, embora de carácter transitório, pareciam participar da eternidade imóvel da própria essência divina;
- o reinado do princípio de verificação que, progressivamente e a uma cadência cada vez mais veloz, se foi substituindo, na mentalidade dos homens, ao reinado do princípio da significação;
- a suspeita, alimentada por uma perspectiva de convergências, de que a ideia de Deus outra coisa não era senão a projecção, num espaço ideal e portanto falso, dos sonhos, desejos, tendências, aspirações e instintos deste «animal», entre todos, symbolicum, que é o homem;
- a revolta, prometeicamente fomentada, contra toda a realidade — e até contra toda a aparência — do princípio de heteronomia;
- a indiferença, estabelecida por uma longuíssima série de substitutos, destinada a estender sobre o palpitar inquieto dos corações humanos o amortecedor dos tranquilizantes e sobre o interrogar natural dos seus espíritos o olvido, na aparência cómodo, das certezas materiais como únicas certezas.» Antunes, OC, T.IV, pp.84-85.
Falar de Deus com consciência dos limites humanos
«Neste tempo de grande desolação e de grande ausência, a primeira coisa a fazer é purificar a imagem ou representação que nos fazemos de Deus. Se algum benefício há a recolher do ateísmo contemporâneo, esse benefício situa-se precisamente na linha de força da vontade e da determinação de falar de Deus o menos indignamente possível. Decerto, a Deus nunca o poderemos exprimir como Ele é. Ou Deus deixaria de ser Deus ou nós deixaríamos de ser homens. Mas porque importa falar de Deus é necessário fazê-lo com a consciência dos limites humanos.
Tal consciência é imposta quer pela realidade em si mesma quer pela conjuntura histórica em que vivemos.
Pela realidade em si mesma, é óbvio, dado que, no limite, ela nos convida ao silêncio, na impossibilidade de a expressarmos capazmente. Visando-a, através da opacidade da nossa condição, estaremos a prestar-lhe a homenagem do nosso espírito e a fazer-lhe a adesão do nosso ser, recebendo, em retorno, uma fundamentação mais sólida para a nossa existência e um sentido mais claro para o nosso destino colectivo.
Pela conjuntura histórica em que vivemos é ainda óbvio, dado que essa conjuntura é, em grande parte, forjada por esses «mestres da suspeita» que se chamam Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud e Wittgenstein. A tais mestres importa, não segui-los numa atitude de cegueira, indigna deles e de nós, mas analisá-los com espírito crítico, dando-lhes razão onde a têm e mostrando aos seus seguidores as carências, as reduções arbitrárias e as consequências aonde conduzem as suas posições radicais. A «transformação do sagrado», representada no homo homini deus, pode encontrar-se, de facto, perto, muito perto, por um processo degradativo bem conhecido de sociólogos, psicólogos e historiadores, do homo homini lupus.» Antunes, OC, T.IV, pp.85-86.
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Manuel Barbosa da Costa Freitas (1928-2010)
O Ser e os Seres. Itinerários Filosóficos. Vols. I-II. Lisboa: Editorial Verbo, 2004.
“Fé e Ateísmo no Mundo Contemporâneo” (1971). Separata de Estudos Teológicos, 1971 (Actas da VII Semana Portuguesa de Teologia). Texto reeditado in Manuel da Costa Freitas, O Ser e os Seres, I, pp.645-655.
“Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia” (2000). In AAVV, Paternidade Divina e Dignidade Humana, Lisboa, UCP - Faculdade de Teologia, 2000, pp.165-182. Texto reeditado in Manuel da Costa Freitas, O Ser e os Seres, I, pp.500-511.
O ateísmo contemporâneo: a compreensão de um problema
A «inevidência» de Deus: a ciência e o mal no mundo
«[Deus] Cientificamente, é desnecessário, inútil. Mais, é um obstáculo, um tropeço no caminho do progresso. Moralmente, surge como um intruso, um usurpador, quando não como um déspota ou tirano, que limita ou rouba a liberdade aos homens — é, por isso, impossível. Relativamente ao mal presente no mundo, Deus mostra-se escandalosamente longíncuo, indiferente, de um silêncio tão profundo e pesado que apenas a sua inexistência o poderá justificar.» Manuel Barbosa da Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in O Ser e os Seres. Itinerários Filosóficos, vol. I, Lisboa, Verbo, 2004, pp.500-501.
«Resumindo, podemos dizer que o discurso ateu revela essencialmente uma dupla origem: uma reflexão sobre o conhecimento científico e uma meditação sobre a existência humana. A conclusão ateia de uma e outra origem só é possível pela inevidência de Deus — forma primeira e mais radical do seu silêncio.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.501.
«A existência do ateísmo é um dado irrecusável da nossa realidade sociocultural. A sua possibilidade assenta, por um lado, na inevidência de Deus e, por outro, na liberdade humana.» M. B. Costa Freitas, “Ateísmo”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.641.
«A ciência prescinde de Deus»
«A ciência é um conhecimento objectivo e verdadeiro na sua ordem própria, que a inteligência constrói com plena autonomia sem qualquer recurso a Deus ou à fé. Os fenómenos naturais obedecem a leis próprias que bastam à sua explicação racional. O comportamento do homem, animal racional, é também explicável segundo fins, princípios ou leis imanentes à sua própria natureza. A natureza e o homem são inteligíveis por si mesmos. Neste sentido, a ciência, como tal, goza de plena autonomia na sua esfera de investigação. De facto, Deus não se encontra no seu caminho, nem no princípio, nem no meio, nem no fim: de sua natureza, a ciência prescinde de Deus, é formalmente ateia.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.501.
«A autonomia da ciência fica assegurada, mas não é legítimo passar da autonomia necessária para uma independência total, dum método autónomo para uma doutrina racionalista. Com o racionalismo erigido em critério supremo de verdade, a esfera religiosa não passa de um sector residual que começa onde termina o vasto domínio das constantes descobertas científicas, quer dizer, a fé é relegada para o domínio do irracional, do inverificável, que, num futuro mais ou menos próximo, acabará por ser invadido pela ciência.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.508.
É possível demonstrar a existência de Deus?
«É certo que uma longa tradição católica afirma que a existência de Deus pode ser demonstrada pela razão natural chamada a preencher a ausência de um conhecimento directo e imediato. Mas não é menos certo que às dificuldades inerentes a semelhante demonstração, de sua natureza lenta e penosa e tantas vezes de êxito duvidoso, outras acrescem de índole social e cultural que tornam, em muitos casos, praticamente impossível a concretização dessa possibilidade abstracta e ideal. Compreende-se então que o ateísmo constitua uma possibilidade e uma tentação permanente do espírito humano capaz de se articular em discurso aparentemente sólido e coerente. Por isso mesmo, qualquer afirmação de Deus só pode triunfar do ateísmo doutrinal na medida em que for capaz de integrar nas suas razões o fundo de verdade que nele se contém.» M. B. Costa Freitas, “Ateísmo”, in Id., O Ser e os Seres, I, pp.641-642.
Criação
«Criar significa ao mesmo tempo fazer e separar e, portanto, pôr no ser qualquer coisa de diferente de Deus — algo que é ele mesmo, autónomo, dotado de consistência e identidade própria, a-teu.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.504.
«Para dar lugar à criatura, Deus como que se retraiu e encolheu.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.506.
«Deus não é um facto, entre outros, da natureza; não é um agente, entre outros, da história; como criador, é a possibilidade a priori de todos os factos da natureza e de todos os agentes que fazem a história.» M. B. Costa Freitas, “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in Id., O Ser e os Seres, I, pp.507-508.
O postulado existencial do ateísmo
«A negação de Deus impõe-se, neste contexto [do ateísmo moderno e contemporâneo], como um postulado da existência humana. Verifica-se, deste modo, que o processo contra Deus continua a desenrolar-se, tácita ou abertamente, segundo as categorias edipianas do antagonismo, da concorrência e rivalidade.» M. B. Costa Freitas, “Ateísmo”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.641.
O escândalo do mal
«Na Antiguidade pagã o escândalo do mal encontrou a sua expressão máxima na figura do justo e do herói perseguido pelo ciúme ou inveja dos deuses. No mundo moderno e contemporâneo é sobretudo no sofrimento dos inocentes e das crianças que ele atinge maior acuidade, tornando-se, de certo modo, insuportável. A revolta parece ser a única resposta digna do homem. É o momento em que Deus deixou de ser declarado inútil e incapaz para ser acusado como réu culpado de todos os males, inclusive da própria morte.» M. B. Costa Freitas, “Mal”, in Id., O Ser e os Seres, I, pp.515-516.
«Críticas e recriminações contra o cristianismo»
«Enumeremos as principais:
1) A fé, segundo o ateísmo contemporâneo, que neste particular se faz eco do racionalismo de Hegel e do positivismo de Comte, corresponde a um estádio inferior da evolução humana, felizmente já superado; denuncia, deste modo, uma mentalidade infantil, pré-lógica. [São citados ou mencionados autores, como Feuerbach, Bertrand Russell, Lévi-Strauss, ...].
2) Deus é um adversário, um inimigo, um concorrente do homem. «Se Deus existe, o homem é nada» (Sartre). [...]. O ateísmo afirma-se aqui como postulado e exigência de liberdade, como a condição sem a qual o homem não pode ser homem. [...].
3) Deus não passa de uma superestrutura ilusória e alienadora, proveniente, sobretudo, da miséria, da desordem económica em que vive a humanidade. [Citações de Marx ...; «a religião é a expressão da miséria real e ao mesmo tempo reacção contra essa miséria, é o suspirar da criatura oprimida, é o ópio do povo»; ... e são mencionados autores marxistas].
4) O cristianismo representa a floração mais refinada do ressentimento, da vingança dos fracos contra os fortes, dos escravos contra os senhores. É a consagração da degenerescência e perversão do homem, a inversão dos verdadeiros valores humanos. Assim falam Nietzsche, Bataille (Memorandum), Montherland (Solstice de juin). Quem não pode, inventa compensações para os seus fracassos. Quem não consegue triunfar na vida presente, consola-se e refugia-se numa vida futura. Deste modo, ter fé equivale a demonstrar fraqueza. [...]. — O mesmo pensam certos representantes da psicanálise. [...]. A religião moralizante torna a consciência prisioneira e doente (Freud, L’avenir d’une illusion).
5) É moralmente impossível admitir a existência de Deus: «se Deus existe, é responsável pelo mal»; «nada o desculpará perante o sofrimento de uma criança, de um inocente»; «o vosso (dos cristãos) único recurso consiste em apelar para o mistério, um mistério escandaloso e injustificável» (Roger Ykor, Dieu aujourd’hui). É o tema tão decantado e explorado do escândalo do silêncio e indiferença de Deus perante as desgraças que afligem a humanidade (doenças, injustiças, guerras, fome, peste e, sobretudo, o sofrimento dos inocentes).
6) A religião, por sua vez não serve para nada, não resolve nenhum problema, é ineficaz, de uma ineficácia total. Não passa de uma demissão da inteligência, de uma alienação das forças vivas do homem perante os mais graves problemas que se lhe deparam: [...]. A fé em Deus é puramente verbal, encobre um vazio, pois não é «operacional». É o tema tão glosado e tão comentado do «Deus cientificamente inútil». Esta concepção aparece representada de muitas maneiras. Um só exemplo. Num filme de Eisenstein, vemos, por ocasião de uma grande seca, um mujik a beijar a terra e padres a organizarem procissões em contraste com um operário soviético a construir barragens e a abrir canais de irrigação. Perante este quadro, um orador oficial comenta: «há milhares de anos que os crentes pediam a Deus o pão quotidiano; aos trabalhadores soviéticos cabe a glória de terem atendido a oração da humanidade».» M. B. Costa Freitas, “Fé e Ateísmo no Mundo Contemporâneo”, in Id., O Ser e os Seres, I, pp.648-650.
A pergunta de Costa Freitas
«Todas estas críticas só se justificam na medida em que a concepção de Deus e da religião aparecem falseadas e caricaturadas. Simplesmente cabe aqui perguntar: quem foram os autores desta caricatura, os ateus ou os cristãos? Até que ponto a apresentação tradicional e rotineira do cristianismo tem enfermado destes excessos em que Deus aparece identificado com um pronto-socorro, com um enfermeiro-mor e a religião reduzida a uma forma de superstição e de magia? É impossível responder com exatidão e objectividade absolutas. [...]. No entanto, não restam dúvidas de que os crentes tiveram e têm grandes responsabilidades na génese do ateísmo contemporâneo.» M. B. Costa Freitas, “Fé e Ateísmo no Mundo Contemporâneo”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.650.
«Um providencialismo absoluto e milimétrico»
«Os cristãos devem ter a coragem de se perguntar se não terão frequentemente deformado a imagem do verdadeiro Deus pela projecção n’Ele de um providencialismo absoluto e milimétrico, do qual tudo depende tanto na ordem natural como na ordem social, tornando desse modo impossível a relativa autonomia e liberdade do homem. Não terão concebido Deus, embora inconscientemente, como um proprietário da natureza, como um patrão todo-poderoso, que zela pela ordem estabelecida com o imperialismo da sua vontade, sancionando todas as situações mesmo injustas? De uma concepção estática do mundo, que não deixa lugar à liberdade e iniciativa do homem, a uma concepção piramidal da sociedade em que, por exemplo, a coexistência de pobres e ricos é apresentada como necessária à harmonia do conjunto, e, portanto, querida por Deus, vai um passo, que muitas vezes foi decididamente franqueado.» M. B. Costa Freitas, “Fé e Ateísmo no Mundo Contemporâneo”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.651.
Eutanásia da teologia
«Não será verdade que, de um modo geral, a teologia sofre de uma espécie de eutanásia, de um prolongado torpor ou sonolência do qual a custo parece agora começar a despertar? Por falta de contacto com as grandes interrogações, por ignorância dos problemas maiores da sua época, pela sobranceria e desdém com que olhava a filosofia, por carência de reflexão filosófica, a teologia ficou reduzida, muitas vezes, a um mero saber cumulativo, carregado de erudição histórica, teimando numa ruminação contínua de teses e tesinhas até ao fastio, ao esgotamento e à fome. Sem mordente na realidade e na vida, deixou o campo aberto, a estrada larga a todas as incursões cada vez mais impetuosas e avassaladoras de doutrinas estranhas, é certo, mas de perspectivas mais largas e aliciantes, porque mais razoáveis e humanas.» M. B. Costa Freitas, “Fé e Ateísmo no Mundo Contemporâneo”, in Id., O Ser e os Seres, I, p.652.
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Entre as causas do ateísmo, para Manuel Antunes, qual ou quais aquelas que mais valoriza?
2) Entre as causas do ateísmo, há alguma ou algumas que sejam preconizadas em comum por Manuel Antunes e Costa Freitas?
3) Que significa a aproximação entre as expressões homo homini deus e homo homini lupus?
4) Que significa a «inevidência» de Deus, para Costa Freitas?
5) Qual é a causa mais originária da «inevidência» de Deus?
6) Como é que Costa Freitas explica as críticas ateístas ao cristianismo?
Aula nº20 (4ª feira: 30/04/25)
7. O problema do valor da filosofia: José Barata-Moura.
«Traços do pensar filosófico»: vivência subjectiva, relacionalidade, exame crítico, compreensão e transformação, a propósito da Tese 11, de Marx.
O problema do valor da filosofia: José Barata-Moura
—. “Traços do pensar filosófico.” Philosophica. Lisboa: Departamento de Filosofia e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 45 (2015): 7-19.
—. As Teses das «Teses». Para um exercício de leitura. Lisboa: Editorial «Avante!», 2018.
Na Conferência Abertura de Filosofia, realizada no início do ano lectivo de 2014-2015 (6 de Outubro de 2014: vd. vídeos da conferência na pasta de Eventos deste sítio), na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o Professor José Barata-Moura caracterizava assim a diferença do pensar filosófico:
«Na diferença de todas as diferências [1], os cientistas pensam. Os poetas pensam. O engenheiro pensa. Os artistas pensam. O homem comum pensa. As crianças… pensam.
Não obstante, ocorre que é própria dos filósofos uma ocupação com o pensar.» José Barata-Moura, “Traços do pensar filosófico”, Philosophica, Lisboa, 45 (2015), 8.
[1] Nota sobre «diferências». Pode ser uma evocação de pensadores franceses da diferença na filosofia do séc. XX: Jacques Derrida («La Différance», Bulletin de la Société Française de Philosophie, 62 (1968), 73-101), pensador da diferância (différance), para sublinhar a dupla acepção da diferença como distinção e como diferimento, e atribuir à diferância a função de estruturar todas as diferenças emergentes no espaço e diferidas no tempo; Gilles Deleuze, autor de Différence et répétition (1968), pensador da diferença em si mesma, i.e., como irredutível a oposições tradicionais, como da identidade à negação e à contradição; Henri Lefèvre, autor do Manifeste différentialiste (1970), que projecta o valor da diferença, sobretudo, no domínio da filosofia social e política. Há uma reacção de fundo anti-hegeliana em todos estes pensadores, no sentido de salvar as diferenças do esquema de superação dialéctica do filósofo idealista alemão.
Não foi, decerto, ao acaso que Barata-Moura escolheu os termos da sua caracterização da filosofia: «uma ocupação com o pensar». Desde logo, a escolha do termo «ocupação» adverte-nos para o «embasamento» (para usar um termo recorrente na linguagem filosófica de José Barata-Moura, porventura em alternativa a “fundamento”, termo filosoficamente habituado a conotações estritamente teoréticas) do pensar filosófico na vida do filósofo, incluindo as condições reais da sua existência concreta. O pensar não é uma fumaça etérea desligada da vida, mas é uma dimensão constitutiva do ser humano, com a qual é «próprio» do filósofo ocupar-se. Como? De acordo com os «traços» de vivência subjectiva, de relacionalidade, de exame crítico, de compreensão e transformação, com que José Barata-Moura desenha o seu conceito de filosofia.
«Pensando, estamos junto de nós mesmos. No aconchego da nossa casinha.
É o momento subjectivo da «vivência» do pensar.» Id., “Traços do pensar filosófico”, p.10.
«O pensar é, todo ele, um acto de entregas à relacionalidade.
Pensamos em relação com o mundo. Pensamos desde, e na respiração de, uma cultura. Pensamos e vivemos sempre em comunidade – mesmo quando dela estamos fisicamente apartados, ou quando apetecemos apartar-nos do seu convívio directo. O nosso singularismo, a nossa individualidade – aspectos constituídos que não são para votar ao menosprezo –, somente ganham efectiva estação no incontornável contorno de uma trama complexa e lábil de relacionamentos.» Id., “Traços do pensar filosófico”, pp.12-13.
«Criticar não é dizer-mal; é procurar ver bem. Tão-pouco criticar é contrapôr, de um modo abstracto e mecânico, enunciações que entre si se excluem. A fim de preparar, não raro, uma saída airosa para o elegante salão dos cepticismos.
O assunto em causa é outro. A crítica é um exame: um fazer passar pelos crivos da racionalidade, e do discernimento, tudo aquilo que imediatamente se nos apresenta – ou que nos oferecem de presente na bandeja – como uma datidade inquestionável.
Por isso, o pensar filosófico – descendo uns lanços de escada no trabalho – aponta também a uma demanda de fundamentação.» Id., “Traços do pensar filosófico”, p.14.
Compreensão e transformação: a propósito da Tese 11, de Marx
Mas a filosofia é reposta em questão, quanto ao seu valor e futuro, com o materialismo de Marx. O marxismo pode ser entendido como não sendo uma filosofia e como tendo até declarado o fim da filosofia. É isso mesmo, o que pode sugerir a célebre Tese 11:
«Os filósofos têm interpretado o mundo apenas de diversos modos [verschieden]; trate-se, porém, de [es kömmt aber darauf an] o transformar. (Manuscrito 1845)» Id. As Teses das «Teses». Para um exercício de leitura, Lisboa: Editorial «Avante!», 2018, p.29.
Barata-Moura encontra filosofia no materialismo de Marx, e empenha-se em trazer à luz essa filosofia, como fora já o caso na obra Filosofia em O Capital. Uma Aproximação (2013), e como acontece também em As Teses das «Teses». Relativamente à Tese 11, o filósofo-leitor de Marx adverte:
«Lê-se de um trago, mas deixa travo.
O texto é arqui-conhecido, e foi poli-comentado.
Pleo-citado a torto e a direito, continua a ser, por vezes, mono-entendido em via reduzida: e no uni-direccional da suma, perdem-se-lhe as tortuosidades do sumo.» Id., As Teses das «Teses», “Tese 11”, p.609.
José Barata-Moura é um filósofo materialista, mas é também hegeliano no que concerne ao legado da dialéctica: como é que ele se confronta com a Tese 11? Como decorre da leitura da Tese em contexto:
«Na verdade, o problema não é a filosofia.
O problema é o tipo de filosofia que se cultiva, e o emprego que, a coberto do idealismo, com ela se cultua.» Id., As Teses das «Teses», “Tese 11”, pp.655-656.
«O problema não consiste, portanto, propriamente em arrumar com a filosofia. Mas em arrimar a filosofia a outros rumos, que a recolocam na pista.» Id., As Teses das «Teses», “Tese 11”, p.657.
Considerando a novidade do materialismo de Marx, que não é meramente uma nova doutrina, mais uma doutrina que se acrescenta e opõe a outras, mas um novo modo de cultivar a filosofia em estreita conexão com a prática, Barata-Moura lê a Tese 11, como um manifesto de «revolucionamento na forma de conceber e de fazer filosofia»:
«Não enuncia um qualquer acto de contrição em sussurro por pecaminosos desvarios filosofais exumados da catacumba de um passado remoto (de que se abjura); não anuncia, perante a pólis engalanada, e em festiva assembleia para o efeito reunida, uma solene e definitiva proscrição de todo o filosofar; não pronuncia, em tom grave e circunspecto, uma sentença de simples despedimento da filosofia, por envergonhante e recôndita causa ou por indecente e má figura.
Não estamos perante nenhum banimento em forma.
Mas estamos bem dentro de um revolucionamento na forma de conceber e de fazer filosofia.» Id., As Teses das «Teses», “Tese 11”, p.656.
Portanto, a Tese 11 não é o que parece, um banimento da filosofia, mas é, no fundo, um «revolucionamento» na filosofia. E em que consiste esse «revolucionamento» intra-filosófico? Consiste por certo numa vinculação da filosofia à prática, a fim de tornar a filosofia participante das forças que transformam a realidade. A vinculação da filosofia à prática significa, em Barata-Moura, uma dialéctica de compreender e transformar:
«Compreender, por si só, não transforma. Mas a transformação tem ela também que ser compreendida.» Id., As Teses das «Teses», “Tese 8”, p.503.
«Por isso é que, sob este ponto de vista, o marxismo não é nem um «empirismo» (em que a verdade devém mera comprovação de positividades), nem um «eticismo» (em que a proclamação do «dever-ser» dispensa a boa consciência de outros trabalhos), nem um «pragmatismo» (em que como verdade vale tudo aquilo que «funcione», ou que sirva um determinado propósito), mas uma concepção que, a partir da materialidade dialéctica do real, o procura compreender teoricamente (reflectindo, de modo adequado, na sua concreção, as dinâmicas de que se entretece), e transformar praticamente num sentido revolucionário (afinando, e confirmando assim, na e pela prática, o valor de realidade, o valor de verdade, do seu pensamento).» Id., As Teses das «Teses», “Tese 2”, pp.269-270.
«A ontologia materialista dialéctica não se confina a um saber fundamentado que — investigando, com minúcia e discernimento, nas apropriadas camadas do real — se procura. Abre — na unidade de um mesmo movimento vectorial — a todo um complexo programa histórico de transformações materiais.» Id., As Teses das «Teses», “Tese 10”, p.580
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Guia de perguntas para reflexão partilhada sobre os textos seleccionados:
1) Como é que José Barata-Moura define a filosofia?
2) Em que termos é que Barata-Moura diz, ou traduz, o binómio tradicional teoria/ prática, ou contemplação/ acção?
3) Como é que Barata-Moura resolve o problema do valor da filosofia, decorrente da Tese 11, de Marx?
4) Qual é a função da prática no saber filosófico?
Aula nº21 (2ª feira: 5/05/25)
Apresentação oral de trabalhos em projecto (e em curso): João Emanuel, sobre Manuel Antunes.
Aula nº22 (4ª feira: 7/05/25)
Apresentação oral de trabalhos em projecto (e em curso): Miguel Rodrigues, sobre J. Barata-Moura; Rafael Verde, sobre J. Barata-Moura; Lucas Sabino, sobre M. Costa Freitas; António Neves, sobre M. Costa Freitas.
Aula nº23 (2ª feira: 12/05/25)
Apresentação oral de trabalhos em projecto (e em curso): Leonor Serra, sobre Manuel Antunes e Gama Caeiro; Marta Boavida, sobre Cerqueira Gonçalves; Natacha Silva, sobre Manuel Antunes e Costa Freitas.
Aula nº24 (4ª feira: 14/05/25)
Apresentação oral de trabalhos em projecto (e em curso): Stephan Ribeiro, sobre José Barata-Moura.
Aula nº25 (2ª feira: 19/05/25)
Apresentação oral de trabalhos em projecto (e em curso): Rafael Marques, sobre Manuel Antunes; Domingos Pereira, sobre José Barata-Moura; Madalena Monteiro, sobre José Barata-Moura.
Aula nº26 (4ª feira: 21/05/25)
Apresentação oral de trabalhos em projecto (e em curso): Custódia Sousa, sobre Manuel Antunes; Ana Morgado, sobre José Barata-Moura.
Aula nº27 (2ª feira: 26/05/25)
Apresentação oral de trabalhos em projecto (e em curso): Mário Pureza, sobre J. Cerqueira Gonçalves; Gabriela Hossri, sobre Manuel Antunes; David Fernandes, sobre Manuel Antunes.
Data-limite de entrega de trabalhos.
Aula nº28 (4ª feira: 28/05/25)
Prova escrita.